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São Paulo, o santo que fez do cristianismo uma religião

Prolífico escritor do seu tempo, empreendedor de diversas viagens missionárias, perspicaz na resolução de conflitos e hábil em organizar e sistematizar o conhecimento, ele foi fundamental para tornar o cristianismo uma religião.

25 jan 2024 - 07h05
(atualizado às 07h12)
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Tela representando São Paulo, de autoria de Valentin de Boulogne
Tela representando São Paulo, de autoria de Valentin de Boulogne
Foto: Domínio Público / BBC News Brasil

Esta reportagem foi publicada originalmente em janeiro de 2022 e atualizada em 25 de janeiro de 2024, aniversário de 470 anos da cidade de São Paulo.

Naquela carta que pode ser considerada a certidão de nascimento da maior metrópole brasileira, o padre jesuíta José de Anchieta (1534-1597) escreveu sobre 25 de janeiro de 1554: "Celebramos em paupérrima e estreitíssima casinha a primeira missa, no dia da conversão do apóstolo São Paulo e, por isso, dedicamos a ele nossa casa".

Foi assim que a base daqueles missionários religiosos no planalto de Piratininga foi batizada com o nome do santo. Com o tempo, o nome seria emprestado à vila — São Paulo dos Campos de Piratinga —, até se tornar a denominação da cidade.

Quase que um acaso, poderia se dizer. Fosse outro dia, seria outro santo o homenageado, afinal a praxe do catolicismo de então era recorrer sempre ao santo do dia na hora das nomenclaturas.

Um feliz acaso, diriam os estudiosos do cristianismo. Porque se a cidade que comemora o 470º aniversário nesta quinta-feira (25/1) se tornou uma das mais importantes do mundo, este cidadão romano chamado Paulo que viveu 2.000 anos atrás também pode ser chamado de protagonista.

Não fosse Paulo, prolífico escritor do seu tempo, empreendedor de diversas viagens missionárias, perspicaz na resolução de conflitos e hábil em organizar e sistematizar o conhecimento, o cristianismo não teria se tornado uma religião — ao menos não uma religião tão importante, sobretudo para o Ocidente.

"Ele foi, sem dúvida, o primeiro grande teólogo do cristianismo", afirma o religioso Darlei Zanon, filósofo e teólogo, conselheiro da Società San Paolo, em Roma. "E ainda hoje pode ser considerado um dos maiores teólogos da história do cristianismo, porque as bases [que ele fundamentou] ainda são estudadas."

"Mais do que teólogo, diria que foi um grande pastoralista, porque ele dava respostas concretas às questões pastorais, da sociedade, daquelas primeiras comunidades cristãs. Assim, vejo-o como um teólogo prático, um pastor, já que suas cartas tentavam dar respostas concretas aos problemas de moral, de liturgia, de correção fraterna, de liderança…", enumera.

Nascido em Tarso, na atual Turquia, por volta do ano 5, ele se chamava Saulo. Cidadão romano, tornou-se um oficial encarregado de perseguir cristãos naqueles tempos em que, logo após a morte de Jesus, os primeiros seguidores de seus ensinamentos precisavam agir na clandestinidade.

Conforme relatos bíblicos constantes do livro Atos dos Apóstolos, foi em uma dessas missões que ele viveu uma experiência mística decisiva. Segundo o texto, depois corroborado pela tradição, o oficial estava saindo de Jerusalém a caminho de Damasco, onde deveria buscar prisioneiros para serem interrogados e, muito provavelmente, executados.

Sua jornada, então, teria sido interrompida por uma luz ofuscante, seguida de uma voz divina. "Saulo, Saulo, por que me persegues?", teria ele ouvido. "Quem és, Senhor?", foi sua resposta, atônito. "Eu sou Jesus, a quem tu persegues."

A partir desta experiência, Paulo resolveu mudar de lado. Deixou de perseguir cristãos para se tornar um deles. "Essa narrativa é uma espécie de rito de passagem, a mudança de perseguidor para perseguido", analisa o estudioso de hagiografias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.

E, num simbolismo de mudança de vida, adotou novo nome. Saulo passou então a ser Paulo.

Mais do que seguidor do cristianismo, tornou-se um protagonista da evangelização. Fundou comunidades, com as quais mantinha contato frequente por cartas, e sistematizou os ensinamentos de Jesus de forma a consolidar, além de uma doutrina, uma religião.

"Não fosse Paulo, talvez hoje não conheceríamos Jesus. Ao menos não o cristianismo como temos hoje", afirma Maerki. "Os escritos de Paulo e toda a reverberação posterior foram de fato uma espécie de raiz do cristianismo."

Uma teologia a partir da experiência

Vice-diretor do Lay Centre em Roma e doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, o vaticanista Filipe Domingues atenta para o ponto de que a teologia de Paulo "parte de uma experiência. "É importante frisar isso, porque antes de procurar entender o que é a fé cristã ou racionalizar sobre ela, os seguidores de Cristo, principalmente os primeiros, partiram de uma experiência de fé. No caso de Paulo, foi a conversão, que o tornou o maior anunciador", comenta ele.

"Nesse sentido, não se trata de um processo racional, político ou metódico, simplesmente. Ele teve uma experiência radical, fez uma interpretação e, a partir dali, começou a anunciar", complementa o vaticanista.

A importância é tamanha que a Igreja Católica, cujo costume mais frequente é celebrar como data festiva de um santo o dia da morte do mesmo, reservou para Paulo duas efemérides: enquanto o 29 de junho marca seu martírio, o 25 de janeiro recorda o episódio de sua conversão.

Ambas as datas, diga-se, foram inventadas a posteriori, pois não há registros precisos que atestem a exata ocorrência desses episódios. Segundo pesquisas de Maerki, a festa da conversão de Paulo começou a ocorrer na região da Gália, hoje França, no século 6. Em Roma, ela só começou a aparecer 500 anos mais tarde.

Fato é que mesmo não tendo convivido com Jesus vivo, Paulo acabou assumindo um papel importante no grupo dos primeiros cristãos — sendo que muitos deles, como Pedro, tinham vivido junto e acompanhado o mestre em vida. Não à toa, ele mesmo se autodenomina apóstolo — e é reconhecido como tal —, usando aqui um termo mais comumente reservado aos 12 primeiros seguidores, os "escolhidos" por Jesus no início de sua missão, que conviveram com ele.

Há um racha inicial desses primeiros anos do que viria a ser o cristianismo. E a queda de braço, vencida por Paulo, deixa claro que ele tinha poder argumentativo sobre os demais pensadores dessa igreja ainda embrionária.

"Ele abriu a Igreja para aqueles que não eram judeus. E esse foi o grande feito de Paulo", lembra Domingues. Era uma questão pertinente na época. Como Jesus era judeu e havia pregado o seu evangelho aos judeus, os primeiros seguidores eram todos previamente judeus — convertidos ao cristianismo. Esse modus operandi fazia com que alguns pensassem, inclusive Pedro — considerado o primeiro papa —, que para se tornar cristão era preciso, antes, ser judeu.

"Paulo tinha um entendimento diferente. Entendia que era preciso abrir para todo mundo", salienta Domingues. "Interpretava que, se Jesus tinha vindo para salvar a todos, o evangelho não deveria ser anunciado antes apenas aos judeus."

Como a visão dele prevaleceu, o cristianismo pôde se espalhar.

Escritor prolífico

De regiões no Oriente Médio a pontos importantes na Europa de então, cada viagem representava a evangelização cristã e o assentamento de comunidades do que viria a ser a Igreja Católica.

Para não perder o contato com tantos povos, Paulo escrevia cartas. Muitas cartas. Eram documentos nos quais consolidava o que ele entendia do cristianismo, por meio de orientações morais, recordações interpretativas das mensagens deixadas por Jesus e recomendações sobre como as lideranças deveriam se comportar.

Mas não era nada simples escrever naquela época. "Tratava-se de um processo lento e muito caro, muito custoso", comenta Zanon. Escrevia-se nos papiros ou nos pergaminhos e, segundo pesquisas, Paulo preferia os pergaminhos, preparados a partir de couro.

Para escrever, Paulo utilizava um instrumento cortante chamado cálamo. As letras eram riscadas e preenchidas a tinta. "Era um processo muito lento. Mesmo assim ele escreveu muito. Não sabemos quantas cartas. Catorze estão na Bíblia, sendo que alguns estudiosos consideram que 9 são dele e outras cinco de comunidades paulinas", diz Zanon. "Mas as próprias cartas trazem referências a outras que não temos hoje, então ele certamente escreveu muito mais. Escreveu muito."

"Como era um processo caro, tinha de ser feito com cuidado. Ele não podia errar nem reescrever, para não desperdiçar material. Escrevia com as letras muito próximas, muito juntas, ocupando o máximo possível o espaço do pergaminho", detalha.

Essas missivas foram escritas durante suas viagens e, principalmente, nos anos em que ele esteve preso — justamente por praticar o cristianismo. "Ficou parte do período em cárcere domiciliar e tinha a liberdade de escrever. Escrevia para animar as comunidades que ele fundou", conta Zanon.

O religioso lembra de outra característica das cartas de Paulo. "Ele conhecia o aramaico e o hebraico, mas escreveu as cartas em grego, o que deve ter tornado um processo ainda mais lento", aponta.

A escolha do idioma já denotava uma aspiração a universalizar cada vez mais o cristianismo. "O grego era a cultura predominante na época e foi assim que ele espalhou aquilo que era da cultura localizada naquela época onde a gente chama hoje de Terra Santa. Trouxe para a cultura grega, ocidental. Isso foi uma grande abertura. Por isso a Igreja Católica não existiria hoje não fosse o trabalho de Paulo", diz o vaticanista Domingues.

Zanon lembra que "a grande novidade" de Paulo foi a "inculturação do evangelho". "Ele fez uma 'tradução' da mensagem, adaptando os conceitos-chave para a linguagem e a mentalidade greco-romana", analisa. "Soube dar categorias teóricas, e adaptar a mensagem para outras culturas, para as exigências e os problemas concretos das comunidades. Trouxe imagens da guerra, do esporte, da cidade, coisas que Jesus não utilizava em suas parábolas, que eram calcadas em símbolos agropastoris."

"São Paulo fez a passagem para o mundo mais amplo, universal. Deu as bases para que o cristianismo se tornasse universal", afirma ele.

Zanon acredita que se Paulo tivesse vivido em tempos contemporâneos, teria se tornado "um grande escritor, talvez um jornalista". "Ele escrevia muito, conhecia muito os problemas do mundo. Hoje, tentaria dar respostas para as problemáticas atuais, expor as dificuldades e os problemas, denunciar as injustiças", compara.

Morte por decapitação

Todo esse trabalho, é claro, passou a incomodar os romanos, que viam no cristianismo um grupo de arruaceiros que, ao proclamar Jesus como um rei, poderia botar em risco a hegemonia política do sistema.

Tela representando decapitação de São Paulo, de autoria de Enrique Simonet
Tela representando decapitação de São Paulo, de autoria de Enrique Simonet
Foto: Domínio Público / BBC News Brasil

Há controvérsias sobre quantas vezes e por quanto tempo Paulo teria ficado preso, mas o mais provável é que tenha sido uma vez na atual Turquia e duas vezes, mais para o fim de sua vida, na região da cidade de Roma.

É certo que ele participou presencialmente de um encontro ocorrido entre os primeiros líderes cristãos, em algum momento entre os anos de 48 e 50, em Jerusalém — naquele que é conhecido como o primeiro concílio da história da Igreja.

E acredita-se que tenha ido evangelizar na região de Roma a partir do ano de 60. Ali teria sido preso novamente e, por fim, provavelmente no ano 67, condenado à morte.

"Não se sabe exatamente o dia da morte [a Igreja acabou, por convenção, adotando o dia 29 de junho]. O que temos veio por tradição: ele teria morrido durante as perseguições de Nero [imperador romano que governou de 54 a 68]. Foi decapitado com uma espada na então periferia de Roma", conta Zanon.

Era uma pena capital considerada mais branda, reservada aos cidadãos romanos. "Sua morte teria sido mais digna do que a dos outros cristãos. Os não-romanos, como Pedro, foram crucificados. A decapitação era algo menos doloroso, e Paulo tinha cidadania romana", explica.

No local onde acredita-se que ele tenha sido morto, depois foi erguida uma igreja, hoje a Basílica de São Paulo Fora dos Muros.

Protetor de muitas causas

Curiosamente, apesar de emprestar seu nome à cidade desde a fundação, São Paulo só passou a ser reconhecido como patrono da capital paulista em 2008, quando o cardeal arcebispo d. Odilo Scherer apresentou um pedido formal ao então papa Bento 16.

Mas o santo é tradicionalmente citado como protetor de muitas coisas e muitas causas. Zanon frisa que ele também é patrono oficial de Roma e de Londres, além de ser considerado o protetor dos escritores, impressores e editores — "por uma questão óbvia, já que foi ele talvez um dos maiores escritores da história da humanidade", ressalta.

"Também é o patrono dos evangelizadores e missionários", acrescenta. "E, não oficialmente, também podemos dizer que ele é o patrono dos imigrantes e dos viajantes, porque ele passou grande parte da vida viajando. É o santo da universalidade, conheceu muitas culturas e tem um coração universal."

O religioso ainda lembra que Paulo é acionado "contra as tempestades do mar e os naufrágios" e em casos "de picada de cobra", também conforme a devoção popular. "E padroeiro dos convertidos", diz.

"No mundo atual, ele pode nos ajudar muito porque foi alguém que sempre se abriu ao diferente. Precisamos de tolerância, de abertura ao diálogo, de aceitação das diferenças em busca de um denominador comum", comenta Zanon.

De olho nos problemas contemporâneos, o religioso ainda atualiza Paulo como "um modelo contra as fake news". "Porque Paulo, em suas cartas, era o defensor da verdade. Ele passou a vida toda escrevendo para as comunidades buscando combater a manipulação, criticando as pessoas que tentavam manipular os povos em benefício próprio. Nesse sentido, estava combatendo as fake news, o que hoje chamamos de fake news", acredita.

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