Secretário que firmou PPP de fundação estadual é sócio do grupo vencedor
Contrato de concessão que resultou em dívida de R$ 74 milhões para o governo de SP é alvo de investigação do MP e da Assembleia
Responsável por aprovar a concessão de uma fábrica de remédios à iniciativa privada, o ex-secretário Giovanni Guido Cerri é hoje sócio do mesmo grupo que venceu a concorrência durante sua gestão na Secretaria Estadual de Saúde paulista. O contrato de concessão resultou em uma dívida de R$ 74 milhões para o governo e agora é alvo de investigação do Ministério Público e da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp).
O caso envolve a Fundação para o Remédio Popular (Furp), ligada à secretaria, que é foco de denúncias de corrupção desde 2017 e motivou a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no início deste ano. Os deputados apuram uma suspeita de pagamento de propina na construção da fábrica, que consta em um acordo de delação premiada, e há também o diagnóstico de que os termos da Parceria Público-Privada (PPP) para administrar a unidade tenham dobrado o custo dos remédios comprados pelo Estado e criado a dívida milionária.
Agora, a CPI chegou à sociedade do ex-secretário Cerri com o Grupo NC, que controla o consórcio ganhador da licitação. Cerri saiu da Secretaria Estadual de Saúde em setembro de 2013, cerca de 15 dias após assinar o contrato que concedeu a fábrica de Américo Brasiliense, no interior paulista, a uma concessionária controlada pelo laboratório EMS. A empresa foi a única a participar da concorrência.
Em 2016, Cerri montou a empresa Clintech Participações S/A. O Grupo NC, dono da EMS, se tornou sócio meses depois e fez um aporte de R$ 1,5 milhão na Clintech - que, até então, tinha capital social de R$ 1 mil. Segundo registros da Junta Comercial de São Paulo (Jucesp), também são sócios do ex-secretário um dirigente do Grupo NC, Leonardo Sanchez Secundino, e o executivo da EMS Julio Cesar Borges.
Cerri diz que a empresa presta serviços de diagnóstico por imagem. Segundo o ex-secretário, o investimento de R$ 1,5 milhão seria para a compra de equipamentos de diagnóstico de imagem, que estariam na Santa Casa de São José de Rio Preto.
"São investimentos em equipamentos de diagnóstico (de imagem) na Santa Casa de São José do Rio Preto", disse Cerri, sobre o aporte. "A empresa está funcionando lá."
A ficha cadastral na Jucesp diz que a Clintech é uma "holding de instituições não-financeiras". O documento também registra que o grupo fez novos aportes de R$ 1,5 milhão e R$ 7,1 milhões no ano de 2018.
Os negócios do ex-secretário foram levantados pelo gabinete do presidente da CPI, deputado Edmir Chedid. Ele diz que a comissão pode encaminhar o caso para o Ministério Público para investigação. "Eu acho que a CPI tem de se debruçar em cima das respostas que ele deu, de como se deu esse negócio, para saber se não tem uma influência", disse. "Vamos encaminhar ao MP, à Corregedoria do Estado, à Procuradoria-geral, até para que ele possa se defender, se for o caso."
O ex-secretário e o Grupo NC se tornaram parceiros novamente em janeiro deste ano. Eles foram admitidos, no mesmo dia, como sócios da empresa Criva, que trabalha na área de diagnóstico por imagem. Além de Cerri e do Grupo NC, entraram na companhia outros cinco sócios na empresa, que passou a oferecer também os serviços de vacinação, laboratórios clínico, anatomia patológica e citologia.
Questionado, o ex-secretário disse que não há relação entre a PPP e suas parcerias atuais com o grupo. "Isso não tem nada a ver com a época em que estive na secretaria, foi um fato recente, e é um grupo que faz investimentos no setor privado. É uma parceria que foi feita muito tempo depois que eu já tinha sido secretário", disse. "Eles (laboratório EMS) foram os únicos que apresentaram proposta e a PPP correu por causa disso. Não tem nada a ver uma coisa com a outra, e eu não tinha nenhuma relação com eles na época em que era secretário."
Em nota, o Grupo NC disse que "seus investimentos nas empresas Clintech e Criva fazem parte da sua estratégia de diversificação em algumas frentes de atuação, incluindo a área de diagnóstico de imagem, em que o dr. Giovanni Guido Cerri, professor de medicina e presidente de instituições médicas, é um dos grandes especialistas". "O capital investido foi destinado à compra de equipamentos, ampliação da estrutura física e expansão das empresas. Esse negócio é independente, não tem nenhuma relação com a Furp". acrescentou.
Secretaria avalia extinguir fundação
A Furp está na lista de entidades que o governo João Doria cogita encerrar, segundo o atual secretário de Saúde, José Henrique Germann Ferreira, em depoimento na CPI. O assunto é analisado em uma comissão do governo que avalia as PPPs estaduais. Maior fabricante pública de remédios no País, a fundação produz quase 530 milhões de medicamentos por ano para a rede pública e tem quase mil funcionários.
Um dos motivos para o plano de extinção, a dívida da fundação é quase toda devida à concessionária controlada pela EMS e, indiretamente, pelo Grupo NC - são R$ 74 milhões de pagamentos devidos e outros R$ 20 milhões em juros, que representam cerca de 94% do total que a Furp tem de passivos atualmente.
Isso ocorreu por causa da distorção entre os preços cobrados no contrato da PPP e os preços no mercado de remédios. Entre maio de 2015 e julho de 2016, a Furp pagou à concessionária o mesmo valor de atas de registro de preço das compras de remédios feitas pelo governo com outros fabricantes do mercado. Na média, o valor era 53% menor do que o previsto no contrato da PPP. Após ser cobrada pela concessionária, a secretaria passou a fazer em 2016 repasses fixos à empresa de R$ 7,5 milhões por mês, independentemente da produção. A fábrica em questão atualmente funciona com 25% da sua capacidade.
Delatores citaram propina em construção da fábrica
Dois executivos da construtora Camargo Corrêa, em delações premiadas ao MP-SP, disseram que o consórcio responsável pela construção da fábrica em Américo Brasiliense pagava, em 2015, um total de R$ 2,2 milhões em propinas a dois representantes da Furp. Os pagamentos indevidos tiveram início, segundo os delatores, após funcionários da fundação pedirem dinheiro para que o governo paulista desistisse de recorrer de uma decisão judicial que obrigava o governo a pagar R$ 18 milhões às construtoras pelo reequilíbrio financeiro do contrato. O governo realmente deixou de recorrer da ação e pagou o valor determinado pela Justiça.
A Furp, no entanto, ainda não encerrou o contrato com o consórcio construtor, mesmo dez anos após a entrega da obra. Segundo um dos delatores, o ex-executivo Martin Wende, isso ocorreu por causa de um "saldo de dívidas" em propina.
Ele contou aos procuradores estaduais que enviou cartas à diretoria da fundação e, em todas as ocasiões, recebeu telefonemas de funcionários da Furp que marcavam encontro pessoal "para cobrar o pagamento de propina", como condição para atuar junto à diretoria da Furp para a formalização de um termo de encerramento da obra, segundo o depoimento obtido pelo Estado. A secretaria, responsável pela Furp, confirmou à reportagem que abriu uma investigação para descobrir por que o contrato ainda não foi encerrado.