STJ mantém anulação do júri da Boate Kiss em decisão polêmica
Tribunal decide que condenação dos quatro acusados pela tragédia em Santa Maria perde validade devido a nulidades processuais
Nesta terça-feira, 5, a 6ª turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu manter anulado o Júri da Boate Kiss, realizado em dezembro de 2021, que condenou os quatro acusados pela tragédia em Santa Maria/RS. O incêndio na casa de shows, ocorrido em janeiro de 2013, resultou na morte de 242 pessoas e deixou outras 636 feridas. O Júri foi anulado no ano passado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS). Com essa decisão, tanto o Júri quanto as penas impostas perdem a validade devido a nulidades processuais.
O caso começou a ser analisado em junho, quando o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, votou pelo acolhimento do recurso do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP/RS) para restabelecer o Júri popular. Contudo, o julgamento foi suspenso devido a pedidos de vista dos ministros Sebastião Reis Júnior e Antonio Saldanha Palheiro.
Na sessão de hoje, com a retomada do caso, o ministro Saldanha inaugurou a divergência ao reconhecer as nulidades e manter o Júri anulado, sendo acompanhado pela maioria do colegiado.
Relembre
Em dezembro de 2021, o Tribunal do Júri condenou Elissandro Callegaro Spohr a 22 anos e seis meses de reclusão, Mauro Londero Hoffmann a 19 anos e seis meses, e Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão, ambos a 18 anos. O juiz determinou o regime fechado para todos os réus e a execução provisória das penas.
O TJ/RS, no entanto, anulou o Júri por quatro motivos principais:
Irregularidades na escolha dos jurados, incluindo um sorteio realizado fora do prazo estipulado pelo Código de Processo Penal (CPP);
Realização de uma reunião reservada entre o juiz presidente do Júri e os jurados durante a sessão de julgamento, sem a participação das defesas ou do Ministério Público;
Ilegalidades na formulação dos quesitos;
Suposta inovação da acusação na fase de réplica.
Nulidades absolutas também exigem comprovação de prejuízo
Na primeira sessão, em junho, o ministro Rogerio Schietti expressou solidariedade aos familiares, amigos e às centenas de vítimas da tragédia. Ele enfatizou a complexidade do processo, que já acumula mais de 68 mil páginas, e elogiou o comportamento de todas as partes, mesmo durante os dez dias de julgamento pelo Júri popular.
Schietti observou que a divisão tradicional entre nulidades relativas, que exigem comprovação de prejuízo e estão sujeitas à preclusão, e nulidades absolutas, que teoricamente não estão sujeitas à preclusão e podem ser reconhecidas de ofício pelo Judiciário, tem sido objeto de uma nova interpretação tanto pelo STF quanto pelo STJ. Isso se traduz na fixação de jurisprudência, segundo a qual mesmo as nulidades absolutas dependem da demonstração de efetivo prejuízo e podem ser afetadas pela preclusão.
Preocupação do juiz foi evitar o adiamento do julgamento
Quanto à escolha dos jurados, Schietti mencionou que o juiz presidente realizou três sorteios para selecionar 150 jurados, dos quais 25 seriam sorteados para compor o conselho de sentença. Segundo o TJ/RS, esse número foi excessivo, e um dos sorteios ocorreu em 24 de novembro de 2021, fora do prazo estipulado pelo CPP.
Para o ministro, no entanto, o juiz estava tentando evitar o "estouro de urna", que ocorre quando não há jurados suficientes para formar o conselho de sentença, devido às dificuldades de encontrar pessoas aptas para o julgamento e à pandemia da COVID-19. Ele também destacou que o juiz estabeleceu a forma de sorteio para evitar o adiamento do julgamento, o que teria consequências graves, não apenas em termos materiais e operacionais, mas também do ponto de vista emocional para as partes envolvidas.
O relator também salientou que nenhum dos quatro jurados sorteados em 24/11/2021 participou do julgamento, o que indica a ausência de prejuízo devido ao sorteio tardio.
Nulidades ocorridas durante a sessão do Júri devem ser contestadas imediatamente
Sobre a reunião reservada entre o juiz e os jurados, Schietti enfatizou que as nulidades ocorridas durante a sessão do Júri devem ser impugnadas imediatamente após sua ocorrência, conforme o artigo 571, incisos V e VII, do CPP. Além disso, é essencial que a alegação de nulidade seja registrada na ata da sessão.
De acordo com o ministro, não houve impugnação da reunião reservada na ata, apenas no recurso de apelação. Portanto, a matéria está preclusa.
Schietti também ressaltou que, como resultado da restauração da sentença condenatória, a decisão do juiz de primeira instância de prender imediatamente os réus também deveria ser restaurada. Ele considerou necessário devolver o processo ao TJ/RS para que, após a eliminação das nulidades, o tribunal possa analisar outras questões levantadas nas apelações.
Divergência
A sessão desta terça-feira começou com os votos-vista dos ministros Sebastião Reis Júnior e Antonio Saldanha Palheiro.
Saldanha Palheiro inaugurou a divergência ao reconhecer as nulidades e manter a anulação do Júri. Ele argumentou que, no caso do Tribunal do Júri, quanto mais controverso for o processo, maior deve ser o cuidado com a estrita observância da legalidade.
O ministro votou pela manutenção das nulidades referentes ao sorteio dos jurados, alegando que as circunstâncias apresentadas não justificam o número excessivo de jurados. Quanto à reunião reservada, considerou que o recurso não deveria ser conhecido e destacou a necessidade de extrema cautela do juiz durante o julgamento do Júri.
Saldanha Palheiro também apontou que a suposta inovação na fase de réplica poderia ter influenciado a avaliação dos jurados e, portanto, votou a favor do reconhecimento da nulidade. No que diz respeito à formulação dos quesitos, considerou que isso representa uma nulidade absoluta, afastando a preclusão.
Assim, ele rejeitou o recurso do MP/RS, mantendo a anulação do Júri, conforme decidido pelo TJ/RS.
O ministro Sebastião Reis acompanhou a divergência, resultando em um placar de 2 a 1 pela manutenção da anulação.
Terceiro a votar foi o desembargador convocado Jesuíno Rissato. Ele acompanhou o relator para afastar as nulidades relacionadas ao sorteio de jurados e ao suposto excesso de acusação. No entanto, ele seguiu a divergência ao negar provimento ao recurso do MP/RS em relação às ilegalidades na formulação dos quesitos e à reunião reservada do juiz com os jurados.
A ministra Laurita Vaz foi a última a proferir seu voto, também acompanhando a divergência, mas com uma extensão menor.
Processo: REsp 2.062.459