Análise | Jogue OneShot e não julgue um livro pela capa
Quando se fala em jogos independentes, é muito fácil taxar alguns títulos como meras reinvenções de games do passado. Afinal de contas, como todos nós que adoramos joguinhos, os desenvolvedores indie também bebem da fonte de títulos clássicos e grandes franquias, acabando por expressar suas homenagens e preferências também em trabalhos próprios. A linha entre referência e perda de personalidade, entretanto, é tênue.
E ela parece ter sido ultrapassada por OneShot, um game exclusivo para PC lançado originalmente em dezembro de 2016, mas que ganhou atenção especial no final do ano passado pela tão aguardada chegada de sua localização para o português brasileiro. O título tem grande influência dos clássicos da série Zelda e, principalmente, de outros títulos antigos de aventura, com visuais que parecem tirados diretamente da era do MS-DOS.
No começo, enigmas simples dão o tom para que os jogadores se acostumem com o esquema enxuto de controles, que envolve apenas quatro botões, e a dinâmica desse mundo. E aí, isso acontece:
É simples entender como o título descobriu o seu nome, mas a surpresa de ver isso escancarado em um game, que está efetivamente conversando com você e dando instruções que não estão necessariamente disponíveis ao protagonista, é algo que fisga o jogador rapidamente. E é aí que a desenvolvedora Little Cat Feet aproveita sua atenção para inserir a história, onde tanto você quanto o personagem principal, Niko, são colocados em uma posição em que são os únicos responsáveis pela salvação de um mundo devastado.
O protagonista, uma mistura de humano e gato, é visto como o Messias nessa terra destruída, enquanto você, o jogador, sempre chamado pelo próprio nome, é o deus que o guia em sua jornada. A metalinguagem dá o tom de toda a aventura, expandindo as barreiras do próprio game e levando o usuário a quebrar a cabeça para resolver alguns enigmas durante a experiência.
No universo virtual, os desafios envolvem, na maioria das vezes, encontrar itens que permitem acesso a outros artigos, em um ciclo que segue desta maneira. Por exemplo, você encontra uma barra de ferro no ponto A, cuja ponta precisa ser afinada em outro lugar e usada para abrir uma caixa em uma terceira localidade, onde está uma bateria para energizar uma máquina. Antes disso, entretanto, é preciso encontrar um lugar para carregá-la, em um sistema de puzzles que também remete a títulos do passado, como Resident Evil, mas tem surpresas intrínsecas.
Em meio à busca por itens, por exemplo, você pode descobrir que a senha para abrir um cofre não está na realidade devastada de OneShot, mas sim no seu mundo, em um arquivo criado em seu computador. Em outro, novamente, a resposta não parece mais estar no próprio game quando ele altera o wallpaper de seu computador, outro susto daqueles para quem usa dois monitores ou joga em janela e vê a alteração acontecendo em tempo real.
Vamos parar por aqui para não entregar spoilers sobre um dos aspectos mais interessantes de OneShot e também um dos principais responsáveis por gerar o envolvimento com o game. Não é como se a metalinguagem fosse algo inédito, muito pelo contrário, mas vê-la utilizada dessa maneira, e acima de tudo, de forma tão natural, é algo que ainda surpreende bastante.
Seguindo em frente
Você e Niko não estarão sozinhos durante a aventura. Personagens como um profeta robô e uma desconsolada engenheira chefe, igualmente mecânica, ajudarão em alguns momentos ou darão dicas úteis para seguir adiante. O encontro com tais coadjuvantes, entretanto, é ao mesmo tempo bonito e triste por virem carregados de revelações e melancolia entregues de forma simultânea.
Em um mundo de robôs, muitas vezes percebemos que os personagens não possuem personalidade própria, tendo sido programados para, por exemplo, apresentarem tal emoção ao encontrarem alguém ou gostarem de um determinado tipo de passatempo. Como não sabemos nada deste mundo, não dá para não imaginar que nós, também, estamos sujeitos a esse tipo de controle, principalmente quando estamos, de fato, no comando de um protagonista que também conversa com a gente de maneira pré-desenvolvida.
Surgem aqui, também, outras questões relacionadas à robótica, consciência e existência. Estamos em um mundo devastado, sim, mas ele é habitado por criaturas de metal, em teoria inanimadas, mas que comemoram efusivamente assim que a energia é ligada e elas podem se mexer novamente. Sua posição em relação ao caráter desses seres não influencia nos rumos da trama, mas pode te deixar em uma posição desconfortável diante das responsabilidades adquiridas.
Mais uma vez, estamos falando da metalinguagem em ação, transformando o que poderia ser um título simples de coleta de itens e resolução de enigmas em algo muito maior. Além das surpresas com o envolvimento de aspectos extra-game durante a aventura, caso o usuário se envolva, verá a si mesmo pensando sobre questões filosóficas e existenciais mesmo depois de OneShot ser finalizado.
A aparente simplicidade de seus enigmas se reflete em praticamente todos os aspectos do título. Como dito, apenas quatro botões do teclado, além das setas que permitem a movimentação, são utilizados para a realização de todas as tarefas. O jogador tem uma tecla para realizar ações, outra para cancelá-las, uma terceira para acesso ao menu e a quarta para abrir o inventário e realizar combinações de itens.
Entra no caminho dessa objetividade toda, entretanto, enigmas que nem sempre se apresentam de maneira clara. OneShot é profundo e o jogador deve ler todos os arquivos de texto, checar todos os objetos do cenário e falar com todo mundo, mas, ainda assim, nem sempre fica claro o que deve ser feito a seguir. Em alguns momentos, a combinação entre itens para obtenção de um determinado efeito é óbvia, mas, em outros, pode derivar de um processo de tentativa e erro, além de muito tempo rodando pelo mundo.
Além disso, existem momentos em que a dinâmica do próprio game pode confundir. Em um determinado trecho, por exemplo, Niko está com a lâmpada que serve de mote para toda a aventura nas mãos e ela deve ser utilizada em um determinado local. Entretanto, ainda assim é preciso equipá-la no inventário para fazer isso, em uma dinâmica que soa como um deslize no desenvolvimento.
A trilha sonora também pode ser repetitiva, apesar de não apresentar um protagonismo tão grande em OneShot. Ainda assim, em um título que leva de quatro a cinco horas para ser finalizado, seria interessante ouvir uma variação maior de temas, bem como um cuidado maior com a arte, que muitas vezes parece descuidada e pouco refinada.
São elementos estéticos, entretanto, que tiram pouco da qualidade desta aventura. OneShot existe para mexer com a gente e, acima de tudo, romper a barreira entre os jogos e a vida real, ou, pelo menos, aquela que temos diante do computador. E é nesse aspecto que está sua maior força, suficiente para que o jogador deixe passar alguns deslizes técnicos e de estilo.
Este pode não ser o game que se tornará seu preferido, nem um dos melhores que jogará em sua vida. Mas, com certeza, OneShot será daqueles títulos que ficarão em sua cabeça por algum tempo, principalmente por conta de seu foco e questões abordadas. E, só aí, ele já abre larga vantagem em relação a muitas outras propostas faraônicas disponíveis no mercado atual, em mais um caso clássico de envolvimento que só títulos menores, independentes e modestos, mas com grandes ambições, são capazes de gerar.
* OneShot foi analisado com cópia digital cedida gentilmente ao Canaltech pela Degica Games.