CPI assiste a um festival de mentiras sem fazer nada
O general Eduardo Pazuello desferiu o mais grave ataque contra a democracia brasileira desde o início da CPI da Covid
O general Eduardo Pazuello desferiu o mais grave ataque contra a democracia brasileira desde o início da CPI da Covid. Um ataque que não foi suficientemente apontado. E um ataque que tem por cúmplice involuntário o presidente da comissão, senador Omar Aziz (PSD-AM). Não há gente o suficiente percebendo a gravidade da naturalização da mentira que está ocorrendo nestes depoimentos e com a qual a CPI é cúmplice. Não estão percebendo que é abrir mão da verdade no debate público que faz corroer a democracia.
O primeiro a mentir foi o ex-secretário de Comunicação, Fábio Wajngarten. Afirmou que nada tinha a ver com uma campanha desferida sob seu comando contra a política de isolamento social. O relator, Renan Calheiros (PMDB-AL), quis prendê-lo em flagrante. Aziz não topou — e a decisão é dele. Aí o ex-chanceler Ernesto Araújo negou ter atacado a China. Há tuítes, artigos assinados, vídeos. Não importa. Fez na cara dura, escondeu-se atrás da máscara, e simplesmente mentiu.
Nunca havia se mentido numa CPI de forma tão descarada, com provas do contrário a um Google de distância. E é por isto que o depoimento do ex-ministro da Saúde é muito mais grave do que o dos outros. Wajngarten e Araújo mentiram fingindo falar a verdade. Pazuello, não. Ao dizer que jamais recebeu ordens para não comprar vacinas do Instituto Butantã, foi confrontado com o vídeo em que afirmou "um manda, o outro obedece" perante justamente esta ordem. Dada pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. Pazuello não titubeou. Isto "é coisa de internet" feita por "agente político".
Ou seja, na lógica torta do ministro, o presidente mente para seus eleitores e fãs e isso é normal. Pazuello não fingiu que a mentira era verdade. Pazuello chamou a mentira de mentira e falou que é assim que se faz política.
Talvez esta seja a impressão que os generais tenham de políticos. Que seu trabalho é mentir. Se for, estão errados. O trabalho dos políticos é trazer à mesa as diversas correntes de opinião presentes numa sociedade e negociar as diferenças. Sim, sempre houve mentiras. Mas, quando pegos em mentiras, políticos sofriam consequências.
Quem estuda o assunto vem usando um termo - truth decay. Decaimento da verdade. Em química, decaimento é o processo pelo qual o núcleo instável de um elemento perde energia por radiação. Em biologia é o igualmente lento apodrecimento de um corpo pela ação de bactérias ou fungos. A palavra está em voga nas ciências humanas. Decaimento da verdade é quando lentamente uma sociedade deixa de ligar para a verdade, para o consenso a respeito de um conjunto básico de fatos. Já decaimento democrático é o que vivemos quando há decaimento da verdade.
Jair Bolsonaro mente. É sua prática corriqueira. Seus eleitores sabem - apenas não ligam. Para eles, é até engraçado. Mas para que a mentira se estabelecesse ao ponto de ameaçar a democracia, ela precisou antes ir lentamente se esgueirando até se legitimar. Na campanha dura, agressiva e canalha que foi a da eleição presidencial de 2014, Dilma Roussef tirou Marina Silva do segundo turno com publicidade de TV que mentia. Agora, Ciro Gomes, candidato à presidência em 2022, contratou o marqueteiro que produziu aquilo para ajuda-lo a chegar ao Planalto.
Políticos estão legitimando a mentira. Alguém precisa fazer algum gesto. O gesto é a prisão de quem mentir sob juramento escancaradamente dentro do Congresso Nacional. Sem um gesto grande, estamos entregues ao apodrecimento da democracia acelerado pelas redes sociais. É preciso ação. O decaimento lento da verdade está em suas fases finais.
*É JORNALISTA