Decreto põe em xeque existência do Comitê Gestor da Internet
Texto assinado por Bolsonaro no início do mês pode levar ao fim da entidade que supervisiona a governança da internet no País
O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), entidade responsável pela governança da internet no País, está em risco desde o início deste mês. A existência do órgão foi posta em xeque após o decreto presidencial 9.759/2019, assinado no último dia 11 de abril, acabar com conselhos da administração pública - ao todo, são 35 comitês, ligados a temas como direitos humanos e trabalho escravo. De lá para cá, entidades como Ministério Público Federal, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e a Coalizão dos Direitos na Rede, formada por grupos de defesa dos direitos digitais e do consumidor, manifestaram preocupação com a extinção dos conselhos, citando nominalmente o CGI, e pediram explicações ao governo sobre o tema.
O caso do CGI é mais delicado que os demais, no entanto, uma vez que há dúvidas se ele se enquadra no decreto, por sua composição sui generis - trata-se de uma entidade privada, mas com atribuições definidas por lei. O comitê foi formado em 1995, a partir de uma portaria do governo FHC, e reformulado em 2003, em um decreto assinado no governo Lula. É ainda um órgão multissetorial - seu conselho diretor tem 21 cadeiras, distribuídas entre governo, academia, empresas e sociedade civil.
Além disso, ao contrário de outros colegiados afetados pelo decreto, o comitê não está vinculado a nenhum ministério específico e não recebe recursos do governo para existir - o financiamento de suas atividades vem, em maior parte, dos valores arrecadados pelo comitê a partir da gestão dos 4 milhões de sites registrados sob o domínio ".br", que denomina a internet do País.
Para Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e representante da academia no comitê, o CGI não se enquadra na definição do decreto. "Na letra fria, o CGI não está no escopo do decreto. Ele não faz parte da administração pública, nem indiretamente. E não está vinculado a nenhum ministério", diz.
O que diz o governo
Procurado pelo Estado na noite desta quarta-feira, 24, o ministério da Casa Civil informou que o CGI não vai acabar, mas que aguarda por parte da entidade as justificativas para sua manutenção - uma exigência do decreto assinado no início do mês por Jair Bolsonaro e o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. Segundo o texto, os conselhos tem até 60 dias para apresentar razões para serem mantidos.
Essa informação, porém, parece não ter chegado aos membros do CGI - segundo apurou o Estado com fontes próximas ao conselho do comitê, até a noite de ontem havia a percepção de que o ministério deveria se manifestar sobre o assunto primeiro, para que depois a entidade se posicionasse. Além disso, de acordo com as fontes da reportagem, há o temor de que o silêncio da Casa Civil sobre o assunto estivesse pondo a entidade na mira do governo, com fim de controle da internet brasileira.
Com uma possível extinção do CGI, especula-se que parte de suas responsabilidades seriam transferidas para a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Se isso acontecer, pode haver um desequilíbrio nas decisões tomadas pelo comitê, uma vez que a Anatel está vinculada ao governo, sem participação dos outros setores hoje presentes no Comitê Gestor. Hoje, o Estado toma conta de 9 das 21 cadeiras existentes no órgão - estrutura pensada para refletir a importância do governo na internet brasileira, mas sem dar a ele maioria no Comitê.
Além disso, disseram fontes ouvidas pela reportagem e que preferiram não se identificar, a transferência de atribuições para a Anatel pode colocar a internet brasileira na mão das operadoras, afetando os direitos dos usuários e a competição com pequenos e médios provedores, hoje responsáveis por 30% do mercado de acesso à internet no País. Não é a primeira tentativa recente de mudanças no comitê: em 2016, as teles fizeram pressão sobre o recém-empossado governo Temer para alterar a composição do CGI.br, alegando que, por ter investido em infraestrutura, deveriam ter maior representação.
Cenas dos próximos capítulos
Agora, o próximo passo deve ser dado na sexta-feira, 26, quando acontece a reunião mensal entre os membros do conselho do CGI. Segundo apurou o Estado, porém, há um racha dentro do CGI: uma ala acredita que há conselheiros resistindo a colocar o assunto em pauta na reunião, deixando a decisão a cargo do governo federal - e possivelmente, em um aspecto mais político e menos técnico. Quem define os temas das discussões é o coordenador do CGI, posto atualmente ocupado por Maximiliano Martinhão, assessor especial do ministro da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações, Marcos Pontes. Procurado pela reportagem, Martinhão não respondeu às solicitações até a publicação.
Em carta publicada nesta quarta-feira, 24, a Coalizão Direitos na Rede pediu um direcionamento direto de Martinhão sobre o assunto. "A extinção do CGI representaria um enorme retrocesso para a governança da internet e para os direitos dos usuários", diz o texto. No texto, o grupo de ativistas também defende que o comitê não é afetado pelo decreto assinado por Bolsonaro. Procurado, o CGI por sua vez informou que não vai se posicionar sobre o assunto até a próxima reunião - uma postura comum do conselho, até por seu caráter multissetorial.
Tarefas
Além de dever ser consultado em questões acerca da regulação da internet e de recomendações técnicas, o CGI tem diversas atribuições. Uma delas é cuidar dos mais de 4 milhões de sites registrados e 120 domínios dentro do domínio ".br" e fazer a arrecadação financeira por trás disso - os recursos são usados para manter de pé outros serviços, como o IX.br.
Trata-se do quarto maior Internet Exchange do mundo, infraestrutura vital para a internet no País, usada por bancos, provedores, empresas de telecomunicações e gigantes da internet para otimizar o tráfego na rede. No ano passado, o IX ficou indisponível por algumas horas em razão de um problema de fábrica em um dos seus roteadores e vários serviços foram afetados no Brasil inteiro.
A entidade também é responsável pelo Cetic.br, que faz pesquisas anuais sobre o uso de tecnologia e internet em diversos setores do País, como educação, cultura e empresas, e pelo Cert.br, área especializada em segurança; entre outros. /COLABOROU TÂNIA MONTEIRO, DE BRASÍLIA