Veja como Bolsonaro e os filhos pagaram imóveis com dinheiro vivo
Escrituras registram compras feitas em 'moeda corrente contada e achada certa', em transações ao longo de anos; mesmo legal, prática gera suspeitas de órgãos de controle, mas presidente não vê problema
RIO - "Moeda corrente do País contada e achada certa." Com pequenas mudanças, essa expressão, que, segundo funcionários de cartórios, significa pagamento em dinheiro vivo, se repete em escrituras de compra e venda de imóveis pelos políticos da família Bolsonaro, obtidas pelo Estadão. A prática não é ilegal, mas é vista com desconfiança por órgãos de controle e investigação, como o Ministério Público. O motivo é que esses recursos aparentemente não passam pelo sistema bancário, o que torna difícil ou até impossível rastrear se sua origem é lícita. O presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição pelo PL, demonstrou não ver problema no procedimento. A família em geral atribui as denúncias a "perseguição".
Entre os Bolsonaros envolvidos com política, o comportamento vem de décadas. Em 12 de maio de 2006, por exemplo, o então deputado Jair Bolsonaro e Ana Cristina Siqueira Valle, sua então mulher, compareceram ao cartório do 17º Ofício de Notas do Rio. Foram fechar a compra de uma casa na Rua Divisória , 30, casa XV, e respectivo terreno. Os vendedores foram um dos irmãos do hoje presidente, Renato Antonio Bolsonaro, e sua mulher, Maria Aparecida Leite Bolsonaro. O preço de R$ 40 mil foi todo quitado no ato, em cédulas de reais. Se corrigido pela inflação oficial (IPCA) medida até julho de 2022, o total chegaria hoje a R$ 99,4 mil.
Três anos antes, em 3 de junho de 2003, o filho "Zero Dois" do presidente, vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), então com 20 anos de idade e no primeiro mandato na Câmara Municipal do Rio, foi ao mesmo cartório. Pagou, por um apartamento na Tijuca, na zona norte carioca, R$ 150 mil, em "moeda corrente do País, contada e achada certa", segundo a escritura. Corrigido pela inflação medida pelo IPCA, o valor, em julho de 2022, seria de R$ 441.501,34.
Já Eduardo Bolsonaro, atualmente deputado federal pelo PL de São Paulo, quitou quase um terço de uma transação imobiliária em dinheiro vivo, segundo escritura do 24º Ofício de Notas. Em 3 de fevereiro de 2011, Eduardo comprou um apartamento em Copacabana por R$ 160 mil. Pagou R$ 110 mil por cheque administrativo e R$ 50 mil "através de moeda corrente do País, tudo conferido, contado e achado certo". Onze anos depois, esse valor, corrigido pelo IPCA, quase dobrou: chegou a R$ 99.489,76 de acordo com os índices de inflação medidos até julho de 2022.
Eleito para seu primeiro mandato em 2014 e empossado em 2015, Eduardo Bolsonaro comprou, em 29 de dezembro de 2016, um apartamento em Botafogo por R$ 1 milhão. De acordo com a escritura do 17º Ofício de Notas, o parlamentar pagou, no ato da compra, R$ 100 mil. Em julho de 2022, seriam R$ 134.664,06, segundo correção pelo IPCA. Também financiou R$ 800 mil pela Caixa Econômica Federal e pagou um sinal de R$ 81,038,28 e uma parcela de R$ 18.961,72 - não há mais detalhes da maneira como foram pagos.
Um projeto do senador Flávio Arns (Podemos-PR) que proíbe o uso de dinheiro em espécie em transações imobiliárias está parado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. O texto tenta evitar lavagem de dinheiro nessas operações. Mas não deverá avançar pelo menos até o fim das eleições, apesar das notícias envolvendo a família Bolsonaro e imóveis adquiridos em dinheiro vivo.
Quando o projeto estava na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) votou contra a proposta, em 2021.Ele tentou pedir vista da proposição, o que a tiraria de pauta.
Presidente reage a questionamentos
Abordado por repórteres nesta terça-feira, 30, o presidente reagiu com irritação a perguntas sobre as compras de imóveis pelo clã, apontadas inicialmente em reportagem do UOL. "Qual é o problema de comprar com dinheiro vivo algum imóvel? Eu não sei o que está escrito na matéria... Qual é o problema?", questionou, impaciente, após evento promovido pela União Nacional do Comércio e dos Serviços (Unecs) em Brasília.