'Vinha uma bomba por cima do ônibus e o pessoal começou a cantar': os brasileiros que viveram a 2ª Guerra Mundial em Londres
Através de depoimentos encontrados em arquivos da BBC, podcast conta como foi vida de pequeno grupo de jornalistas, intelectuais e diplomatas que permaneceram na Grã-Bretanha quando guerra com Alemanha começou, em 1939.
"Vi o povo de Londres de siso grave e olhar preocupado. Li pela primeira vez nos seus traços o sentimento contido de cólera e achei que, desabafada, essa cólera deveria ser terrível."
Essa memória é do poeta Vinícius de Moraes, o primeiro brasileiro a ganhar uma bolsa de estudos na prestigiosa Universidade de Oxford no Reino Unido.
Em um texto escrito em 1959, para a revista Senhor, Vinícius faz um relato sobre o ano que passou em Londres e Oxford, de agosto de 1938 até o início da Segunda Guerra Mundial. "O sentimento contido de cólera" observado pelo poeta resume o clima de ansiedade e preocupação nas ruas da capital britânica e também no resto da Europa, onde reinava uma frustração generalizada com as fracassadas tentativas de conter um novo grande conflito militar.
Era um ano de grande tensão na Europa e o ano da primeira transmissão em português da BBC para o Brasil. Para contrapor a propaganda nazista que era transmitida em ondas curtas para a América Latina, a BBC criou o Serviço Latino-Americano da BBC, que, desde março de 1938 transmitia boletins de notícias em português.
Vinícius trabalhou temporariamente para a Seção Brasileira, que crescia e contratava brasileiros bilíngues. Alguns desses brasileiros deixaram depoimentos sobre essa época, recuperados dos arquivos da BBC e apresentados em um podcast da série Que História!, da BBC News Brasil.
Era um grupo de jornalistas e intelectuais que se lembram com carinho desse tempo e de terem testemunhado e participado do que viram como luta pela liberdade na Europa e no mundo.
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A primeira temporada de 'Que História!', produzida e apresentada por Thomas Pappon, terá dez episódios, que serão disponibilizados semanalmente nas principais plataformas de podcast, como Apple, Spotify, Overcast e Castbox.
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Independência e Blitz
Um ano depois da chegada de Vinícius de Moraes, em 3 de setembro de 1939, o governo britânico anunciava que estava em guerra com a Alemanha.
O próprio poeta — futuro diplomata e um dos mais importantes letristas da música brasileira — seguiu o exemplo da maioria dos brasileiros que, segundo um relato de Rachel Braune, primeira voz feminina do Serviço Brasileiro, deixaram o país assim que a guerra começou.
Em Londres, ficou um pequeno grupo: locutores e redatores da BBC, e funcionários da Embaixada e do Consulado. Segundo Braune, mulher do primeiro locutor dos boletins de notícias em português, Manuel Braune, o "Aymberê", boa parte dessas pessoas estavam reunidas em um coquetel na Embaixada para marcar a data da Independência, no dia 7 de setembro de 1940, quando começou a Blitz, a chuva de bombas alemãs sobre Londres e outras cidades inglesas.
"Assim que o champanhe começou a ser servido, não houve tempo de levá-lo aos lábios, explodiram as sereias (sirenes) de alerta", conta Braune em um depoimento gravado mais tarde.
"O champanhe dançou em várias taças, e ouviu-se a voz da embaixatriz, dona Belinha (Isabel Rodrigues Alves Moniz de Aragão, filha de Rodrigues Alves, o quinto presidente do Brasil) convidando todo mundo para o abrigo antiaéreo no porão da embaixada. Ali, no meio de camas de campanha e capacetes de aço, o champanhe continuou a sua ação benéfica. E o assunto só podia ser um: o que estaria se passando lá fora. Alguns foram ver. Eu fui atrás, até o terraço no telhado da embaixada. Era um tarde linda. E no céu alto, pela primeira vez os bombardeiros alemães avançavam contra Londres, em formação perfeita, cortando o ar com um ruído que não tardou em nos levar de volta pro porão por prudência."
"Quando saímos, já havia escurecido. Aymberê e eu aproveitamos o carro de uma colega do consulado para ver o estrago. Mas não conseguimos chegar nem perto. O calor dos incêndios era tal que não se podia avançar. Era o bafo do inferno."
"O céu era ainda um clarão vermelho. A nossa noite terminou no teatro da BBC, que pela ausência de janelas dava uma ilusão de segurança. Centenas de pessoas dormiram ali, sentadas ou encostadas pelas paredes ou deitadas no chão. Quem diria que a blitz havia começado."
Rouxinóis e 'doodlebugs'
Os intensos bombardeios de setembro de 1940 a maio de 1941 mataram mais de 40 mil civis na Grã-Bretanha e destruíram mais de 1 milhão de residências. Por duas vezes, as bombas atingiram Broadcasting House, a sede da BBC perto de Oxford Circus, matando sete pessoas. Por razões de segurança, vários serviços foram transferidos para o interior da Inglaterra.
O Serviço Latino-Americano foi transferida para Aldenham House, uma mansão no campo, ao norte de Londres, que pertenceu a uma família aristocrática antes de sediar transmissões do Serviço Mundial da BBC durante a guerra.
Um depoimento curioso e que dá uma boa ideia das angústias enfrentadas pelos brasileiros nesse período é o de Isabel do Prado, a primeira mulher contratada pelo Serviço Brasileiro, jornalista e grande amiga da escritora e poetisa Cecilia Meireles, com quem se correspondia.
"Uma noite, quase madrugada já, encerrados os trabalhos, voltava eu para casa, de bicicleta, como era o meu hábito, e vinha pedalando por uma estrada deserta ladeando um bosque. Ao alto, lá no céu ainda escuro, roncavam motores de avião. Amigos? Inimigos? Não sabia. Meu coração se apertava e se fazia pequenino."
"Nisso, de repente, do bosque silencioso, ergueu-se puro, claro, límpido, o canto de um rouxinol. Era tão inesperado, tão insólito, mas tão pungente aquele canto, naquele momento, que parei embevecida a ouvi-lo, o coração esquecido de seus temores. E pensei: Deus seja louvado por tanta beleza em meio a tanta destruição e tanto sofrimento. Enquanto houver um rouxinol na Inglaterra, haverá esperança para o mundo."
Depois da Blitz, os bombardeios em Londres passaram a ser esporádicos. Mas, em 1944, surgia nos céus uma nova ameaça, a das bombas voadoras V-1, lançadas pelos alemães do outro lado do Canal da Mancha acopladas em pequenos aviões não tripulados. A bomba caía quando o combustível do avião acabava.
Pelo ruído característico dos aviões, essas bombas voadores foram apelidadas de doodlebugs, uma expressão popular inglesa para insetos irritantes.
Cerca de 10 mil dessas bombas voadoras foram lançadas contra a Inglaterra. Em Londres, elas mataram mais de 6 mil pessoas. Outra brasileira que trabalhava no Serviço Brasileiro durante a Guerra, a escritora Lya Cavalcanti, contou, nos anos 1980, o inusitado encontro que teve com uma doodlebug.
"Eu me lembro de um dia em que nós voltávamos de noite, e tinha uma por cima do ônibus, passando, tu tu tu tu... Então o pessoal começou a cantar, aquelas canções inglesas, e eu ficava, meu Deus, que pena que eu não sou inglesa. Que coisa linda. Aquela bomba andando atrás da gente, e a gente cantando dentro do ônibus. Foi um tempo realmente de umas reações tão imprevisíveis."
A cebola no escrínio azul
Além de lidar com os ataques aéreos, a população também enfrentou o racionamento de alimentos, a forma encontrada pelo governo para garantir que todos tivessem o que comer.
O assunto é mencionado em um depoimento do jornalista e escritor Antonio Callado, contratado pela BBC e que chegou a Londres, de cargueiro, em 1941, em plena época de constantes blecautes e sirenes antiaéreas — tempos em que uma fruta ou um ovo eram itens cobiçados como joias.
"Cheguei a uma Inglaterra apagada, mergulhada no blecaute, preservando sozinha a liberdade da Europa", diz Callado em um depoimento gravado em 1963 para a BBC. "Hoje, é só com saudade que me lembro do grupo de brasileiros da BBC, da linda e calma Inglaterra em torno, e até do racionamento, que transformava um ovo de verdade num pequeno sol no prato do breakfast. Jamais esquecerei o joalheiro humorista de Regent Street, que um dia colocou uma cebola em um escrínio (pequena caixa estofada para guardar joias) azul."
"Cebolas eram muito disputadas", contou à BBC News Brasil a historiadora britânica Lizzie Collingham, autora de The Taste of War: World War II and the Battle for Food ("O Gosto da Guerra: A Segunda Guerra Mundial e a Batalha por Comida" em tradução livre). "Eram importadas da França, mas isso acabou no início da guerra. E o cultivo local foi um desastre. 1941 foi um ano frio e chuvoso, as cebolas estragaram todas. As pessoas ficaram loucas por cebola. As cebolas eram rifadas."
A partir de janeiro de 1940, o governo passou a controlar o estoque e a distribuição de alimentos básicos, como bacon, açúcar e manteiga — mais tarde, entraram na lista carnes, queijo, biscoitos, leites e ovos — para garantir que a população recebesse as calorias necessárias para enfrentar a guerra e o frio. Os cidadãos tinham ration books, cadernos que eram carimbados toda vez que faziam compras desses produtos. A cada semana, não podiam comprar mais do que 50 gramas de manteiga, 225 de açúcar, 100 de bacon ou presunto, 75 de queijo e dois ovos.
"Quando saía diariamente às compras, a dona de casa não tinha outra opção a não ser comprar carnes, verduras, legumes, frutas e ovos na mercearia onde estava registrada", explica Collingham. "Só ali é que ela podia comprar esses produtos, ou carnes e frutas enlatadas dos Estados Unidos, ou ovo em pó. Ela ia na padaria comprar pão, que era integral, pão branco não era mais produzido, porque o integral é mais saudável e aproveita melhor os grãos. Depois ia à mercearia, pegar sua batata, olhava se havia alguma verdura ou legume interessante, mas geralmente era batata, cenoura ou repolho, coisas bem sem graça."
A Segunda Guerra foi o conflito mais mortífero da história mundial, só no Reino Unido ele matou meio milhão de pessoas. Mas justamente o racionamento — que só terminou em 1954 — acabou tendo um efeito positivo sobre a saúde da população britânica. Lya Cavalcanti menciona, no depoimento colhido bem mais tarde, que "as crianças eram mais sadias".
"Engraçado, a guerra trouxe uma lição social , que se fosse aproveitada em tempo de paz seria uma maravilha. Precisava de uma guerra em Marte ou algo assim, para o mundo inteiro se unir e fazer o que fizeram na Inglaterra."
Para Lizzie Collingham, "não é exagero algum dizer que, naquele momento, os britânicos estavam em um de seus períodos mais saudáveis".
"Antes da Segunda Guerra, nos anos 30, havia grandes bolsões de pobreza no país. Muitos na classe trabalhadora comiam mal, não tinham acesso a leite, vitaminas ou carnes, tinham deficiências de nutrição. Mas o sistema de racionamento mudou tudo isso. Você tinha e direito a carne, manteiga, você tinha dinheiro, porque havia empregos na enorme indústria de guerra bélica. Isso melhorou a dieta das classes mais baixas. Mas também melhorou a dieta das classes média e alta, porque não era mais tão fácil se empanturrar de carne, manteiga e açúcar, essas coisas eram racionadas e as quantidades eram as mesmas para todos."
Segundo Collingham, uma forma que historiadores usam para avaliar a nutrição de populações é através dos registros de altura média de soldados em arquivos militares. Esses registros mostram que "a população cresceu, em especial a de classe baixa".
"Mas quando o racionamento terminou, foi tudo por água abaixo."
A guerra terminou em 8 de maio de 1945, com a rendição incondicional dos alemães — e muita celebração nas ruas e nos pubs ingleses.
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