Fiat matou o Uno e esqueceu de enterrar; Mobi não resolve
Betim errou ao desprezar potencial do Uno e investir no Palio e depois no Mobi, mas subcompacto não vale a pena. Veja a comparação e entenda
A versão mais barata do Fiat Uno custa R$ 44.990. Apenas R$ 2.300 o separam do Mobi Like (R$ 42.690), uma das duas versões que escaparam do recente facão de Betim (sede da FCA em Minas Gerais). O Mobi Like é responsável por 80% das vendas do modelo. Numa órbita isolada, como se fosse um planeta Plutão no sistema solar da Fiat, sobrevive o Mobi Easy (R$ 35.990), que custa R$ 9.000 a menos do que o Uno Attractive 1.0, o mais barato da linha.
Com uma diferença tão grande de preço para o Mobi Like e o Uno Attractive, o Mobi Easy é a prova de que esse carro não vale a pena. Um indício forte de que a Fiat errou ao desprezar o potencial do Uno para investir primeiro no Palio (que já estava em fim de carreira) e depois no Mobi. O subcompacto não é a reinvenção da roda e nunca foi, apesar de ter sido apresentado assim pela Fiat. Não colou. Assim como ocorreu com a primeira geração do Ford Ka e com o Volkswagen Up, um carro muito pequeno não serve às necessidades do consumidor brasileiro.
Até serviria, como opção de carro urbano, se fosse realmente acessível, na faixa de uns R$ 25 mil. Aparentemente, não é possível fazer um carro com esse preço, considerando todos os paradigmas seguidos pelas montadoras atualmente e, claro, a abusiva carga de impostos sobre os automóveis. Em comparação com o Uno, o Mobi é 25,4 cm mais curto e tem 7,1 cm a menos de distância entre-eixos. O impacto desses 32,5 cm (mais que uma régua escolar) é enorme em termos espaço interno, conforto, capacidade do porta-malas (-55 litros) e dirigibilidade em velocidades mais altas.
O Mobi também é 1,9 cm rebaixado em relação ao Uno -- e isso influi na versatilidade do carro em terrenos acidentados, estradas de terra, valetas nas ruas etc. O Fiat Uno, com seus 16,5 cm de vão livre para o solo, supera o novo Chevrolet Tracker nesse quesito; e estamos falando do SUV mais vendido das últimas semanas.
Para a Fiat, posicionar o Uno numa faixa de preços superior talvez tenha sido positivo em termos de faturamento. Talvez. Para o consumidor brasileiro, não. Não mesmo! Além da Attractive, o Uno tem mais três versões: Drive 1.0 (R$ 47.990), Way 1.0 (R$ 51.290) e Way 1.3 (R$ 55.290). São três motores diferentes para apenas quatro versões (!), o que mostra como Betim foi se perdendo ao longo do tempo na questão do Uno.
As versões Attractive e Way 1.0 usam o motor de quatro cilindros com 75/73 cv de potência (etanol/gasolina) e 97/93 Nm de torque. A versão Drive 1.0 usa o motor de três cilindros com 77/72 cv (e/g) e 107/102 Nm. A versão Way 1.3 tem 109/101 cv (e/g) e 139/134 Nm. Já o Mobi perdeu o bom motor de três cilindros e ficou apenas com o antiquado bloco de quatro cilindros. As duas versões do Mobi que tinham selo de eficiência energética do Inmetro saíram de linha. Veja no quadro abaixo a diferença de consumo entre as atuais versões do Mobi/Uno 1.0 de quatro cilindros e do Uno 1.0 de três cilindros.
ITEM |
MOBI EASY |
MOBI LIKE |
UNO ATTRAC. |
UNO DRIVE |
---|---|---|---|---|
Motor (versões 1.0) | 4 cilindros | 4 cilindros | 4 cilindros | 3 cilindros |
Ar-condicionado | não | sim | sim | sim |
Gasolina cidade (km/l) | 13,5 | 12,7 | 11,6 | 13,2 |
Gasolina estrada (km/l) | 15,2 | 14,3 | 13,4 | 15,2 |
Etanol cidade (km/l) | 9,2 | 8,8 | 8,0 | 9,1 |
Etanol estrada (km/l) | 10,2 | 9,9 | 9,4 | 10,6 |
Nota Inmetro (geral) | B | B | B | B |
Nota Inmetro (categoria) | C | C | E | C |
Pneus e rodas | 165/70 R13 | 175/65 R14 | 165/70 R13 | 175/65 R14 |
O quadro acima mostra que a Fiat escolheu as versões que têm o pior consumo para manter no mercado e que o Mobi Easy só consegue competir em consumo com o Uno Drive porque sua medição foi feita sem ar-condicionado. Resta saber quem ainda compra carro sem ar-condicionado no Brasil. Mas, caso alguém compre, então havia uma oportunidade para existir uma versão do Uno bem mais barata do que a Attractive de R$ 45 mil.
Há pelo menos 13 ítens de série que poderiam ser eliminados do Uno para ter uma versão “pé-de-boi” muito mais acessível: ar-condicionado, banco bipartido, brake light com sinalizador de frenagem de emergência, chave desmodrônica, check de luzes e portas, faróis com máscara negra, follow me home, lane change, luz de leitura com dimmer, tecido nas portas, calotas, trava automática e vidros um-toque. Num país com a renda média baixa, como é o Brasil, o Uno poderia ser oferecido sem esses itens. Isso também vale para carros de entrada de outras marcas, para dar ao consumidor uma opção realmente barata.
Finalmente, para mostrar que a Fiat privilegia o Mobi em relação ao Uno, o subcompacto de R$ 36 mil tem dois itens importantes que não estão disponíveis no compacto de R$ 45 mil: ajuste de altura do volante e vidros elétricos. Se pode ter no Mobi de entrada, por que não pode ter no Uno de entrada?
Tudo isso que vimos até agora é resultado de uma estratégia que começou errada alguns anos atrás, quando o novo Fiat Uno foi desprezado para que os investimentos fossem feitos no Palio e no Mobi. Quando a segunda geração do Uno foi lançada, em 2010, o modelo somava suas vendas com o antigo Mille e encerrou o ano com 229.300 unidades vendidas, atrás apenas do Volkswagen Gol. O Fiat Palio, por sua vez, vendeu 137.512 unidades. Essa situação perdurou em 2011 e 2012.
Em 2013, quando o Mille saiu de linha, o Uno caiu para 184.360 vendas, mas ainda terminou à frente do Palio, que teve 171.861. O jogo virou em 2014, quando a Fiat definitivamente desistiu do Uno, passando a apostar num Palio em fim de carreira e no projeto do Mobi. Foi o ano em que o Palio finalmente conseguiu derrubar a hegemonia do VW Gol, que liderou o mercado durante 27 anos (até 2013). Veja abaixo a sequência de vendas das linha Uno, Palio e Mobi a cada ano, segundo a Fenabrave.
Ano | Uno | Mobi | Palio |
2010 | 299.300 | - | 137.512 |
2011 | 273.535 | - | 105.792 |
2012 | 255.834 | - | 182.489 |
2013 | 184.360 | - | 171.861 |
2014 | 122.241 | - | 183.736 |
2015 | 79.461 | - | 122.364 |
2016 | 34.626 | 28.731 | 63.996 |
2017 | 34.165 | 54.270 | 20.138 |
2018 | 15.151 | 49.491 | 391 |
2019 | 19.928 | 53.444 | 40 |
2020* | 4.123 | 14.190 | 2 |
Quando foi lançado, a Fiat esperava vender pelo menos 70 mil unidades do Mobi. Tal fato nunca aconteceu. O Mobi só alcançou 77% de sua meta mínima original. Por tudo isso, parece claro que a Fiat matou o Uno e esqueceu de enterrar. Entretanto, existe a possibilidade de reverter essa situação. Segundo o Fiat Plan, que prevê investimentos da FCA em novos produtos de 2020 a 2024, a terceira geração do Uno estrearia ainda este ano.
Devido à pandemia e à terrível crise econômica provocada por ela, entretanto, é certo que o Fiat Plan terá seu cronograma atrasado. O próprio CEO da FCA, Antonio Filosa, já disse isso em lives na internet recentemente. Se o projeto do novo Uno não for cancelado, a Fiat terá a chance de recuperar a história do carro no Brasil. Por enquanto, mesmo como está, o Uno é uma compra mais interessante do que o Mobi.
- *Até 26/5.