O fim do conversível, mais uma ameaça no mundo dos carros
Assim como as peruas, os conversíveis começam a perder vendas de forma perigosa em vários mercados e seu futuro corre risco. Entenda
É do conhecimento de quase todo entusiasta automotivo (gearhead) que as peruas estão morrendo a cada dia. É só uma questão tempo até se tornarem algo do passado, como o design “rabo de peixe”, o teto de vinil, a janela quebra-vento, o tuning e por aí em diante. Mas há outro tipo de carroceria que também está perto de desaparecer. O conversível, tão desejado como um símbolo de liberdade (e da crise de meia-idade), parece também estar com os seus dias contados.
Historicamente, os primeiros veículos movidos a combustão interna, como o Patent-Motorwagen de Karl Benz, lançado em 1886, eram conversíveis. Sujeira de cavalo tornava-se coisa do passado, mas os passageiros ainda lidavam com a chuva, o sol, e o que caísse das aves logo acima. Somente após a adoção da linha de montagem (1913) o teto fixo tornou-se um padrão em automóveis; até aquele momento, o máximo que existia eram tetos retráteis de lona, que, ocasionalmente, eram cheios de infiltrações. A partir dos anos 1950, com a fusão de luxo e conforto, o conversível virou um imponente símbolo de status, tornando-o desejado entre o grande público. O puro ato de conduzir um conversível dizia: “Você é alguém importante. Por que? Ninguém sabe, mas você é”.
Na década de 1970, o medo de que novas leis de segurança banissem o conversível nos EUA, culminou com a criação do estilo targa. Embora o temor nunca tenha se concretizado, o design virou ícone entre os esportivos da época como o Chevrolet Corvette e o Porsche 911. Nos anos 1980, novas tecnologias e preparadoras independentes tornaram o estilo de carroceria mais acessível ao homem comum. Até um compacto popular poderia ser transformado num charmoso cabriolet. Em ruas brasileiras, um Ford Escort XR3 Conversível era tão admirado quanto um Mercedes-Benz SL. Quem tinha um, sequer penava durante a chamada “década perdida” (por causa das crises econômicas), o que explicava seu apelo aos playboys da época, vide a novela “Verão 90”, da TV Globo.
Entretanto, nos últimos 10 anos, a fama do segmento caiu vertiginosamente (mais do que o Neymar em jogo decisivo), diversos modelos encerraram a produção de suas variantes, mesmo entre as marcas mais luxuosas. No exterior, somente o Porsche 718 Boxster e o Mazda MX-5 Miata ainda mantêm sua relevância, talvez por isso continuem a ser lembrados pelo público. Segundo os índices da consultoria Car Sales Base, o tradicional Mercedes-Benz SL, conversível de referência há mais de 50 anos no mercado, chegou a registrar mais de 10 mil unidades vendidas nos EUA em 2005, enquanto sua última versão vendeu 7.007 unidades em 2013. Em 2019, o modelo emplacou apenas 1.791 unidades. Até mesmo roadsters consagrados, como o BMW Z4, sofreram na última década; em 2018, EUA e Europa emplacaram somente 129 unidades. A nova plataforma G29 ajudou a recuperar suas vendas, principalmente na Europa, chegando à marca de 9 mil unidades. Porém, o mercado americano, que correspondia por metade de seus compradores, não demonstra o mesmo interesse – em 2019, o número de vendas foi 80% menor do que no mercado europeu.
Embora o conversível tenha enfrentado tantos altos e baixos quanto a carreira de Tim Maia, dois fatores combinados o levaram à beira da extinção. O primeiro é evidente em qualquer histórico de vendas. A crise mundial de 2008/2009 abalou tanto a economia quanto algumas questões sociais e culturais. Só a General Motors, com um prejuízo de quase 40 bilhões de dólares, liquidou metade de suas marcas para fechar o caixa, o que significou menos empregos, menor produção e maior custo de vida (principalmente para pagar os bailouts mundo afora). Embora mais de 10 anos tenham se passado desde o episódio, especialistas defendem que a economia global não se recuperou totalmente, principalmente se considerar a crise do euro em 2014. Em ambos os casos, milhares de motoristas trocaram seus carros premium por compactos populares, algo frequente neste tipo de cenário. A mesma resposta se aplica ao porquê de todos os carros serem pintados de branco, prata ou preto ultimamente – quase ninguém está otimista a ponto de ter um Ford Ka na cor laranja.
Outro fator influente é ascensão dos crossovers e SUVs na última década, que agora são um sinônimo de exclusividade no mercado. Se antes eram carros destinados a grandes famílias ou aventureiros, hoje representam sucesso e pujança. Quem imaginaria há 10 anos um veículo como o Lamborghini Urus, ou o Rolls-Royce Cullinan? O tamanho, desempenho e requinte desses veículos pareia tranquilamente com a maioria dos segmentos ao oferecer uma combinação de vantagens. Até mesmo o Range Rover Evoque conta com uma versão conversível, o que é uma incoerência, considerando a queda nas vendas de cabriolets (ou um ousado teste de mercado). Embora a economia mundial ainda esteja trepidando, a expansão das ofertas de crédito ocorreu justamente quando o setor ganhou a atenção pública.
Porém, há um terceiro fator significativo para o cabriolet perder sua relevância no meio automotivo: o fato de ser um mau tipo carro. Pode parecer absurdo, mas a única vantagem de um conversível é o prazer, e nada mais. Há evidências objetivas que comprovam isso. Para começar, a capota móvel não é prática, exigindo trabalho manual para ser armada ou desarmada; e mesmo que opere eletronicamente, o porta-malas é sacrificado para acomodar o mecanismo, eliminando a capacidade de carga do veículo. Consumo elevado de combustível é um problema crônico dos conversíveis, pois o mecanismo de operação da capota adiciona muito peso, exigindo mais do motor, enquanto a ausência do teto piora a aerodinâmica do carro. Essa combinação força proprietários a se tornarem sócios de postos de combustível.
Por falar em desempenho, veículos de capota fixa possuem melhor rigidez no chassi, o que evita torções e garante estabilidade ao veículo, tanto em curvas fechadas quanto em longas retas. No quesito segurança, um problema relevante dos cabriolets é que, em caso de capotamento, há um grande risco de esmagamento dos ocupantes, se comparado com outras carrocerias. Embora tecnologias como o “suporte ejetável” e o próprio teto targa ajudem a remediar este risco, passageiros ainda podem ser atingidos por destroços em caso de acidente. Exposição a furtos e assaltos também colaboram para a baixa adesão do público, pois conversíveis chamam muita atenção nas ruas e são presas fáceis para os criminosos. Elementos da natureza também podem invadir o carro. O interior do veículo não tarda a acumular mofo ou ferrugem, principalmente em regiões úmidas ou poluídas, transformando o cheiro de carro novo em cheiro de cidade poluída.
Mas compilando tudo isso, significa que o conversível é um carro problemático e, portanto, um péssimo negócio? Não necessariamente. Ter um conversível demonstra comprometimento, quiçá mais do que com qualquer outro tipo de veículo, pois, mesmo com tais desvantagens, a dedicação pelo que você valoriza supera (quase) qualquer obstáculo. Mais do que outros carros, o conversível é um fetiche, mas se o prazer por algo lhe satisfaz, e você pode deixá-lo a qualquer momento sem grandes consequências, talvez valha a pena o esforço. Além do mais, nem todo veículo sem teto é obrigatoriamente complicado, pois vários roadsters evoluíram muito em termos de engenharia para amenizar seus malefícios.
Infelizmente, o conversível está perdendo seu charme, mas ainda há uma legião de gearheads que os valoriza, principalmente por seu simbolismo. Como tudo que existe na sociedade, o mundo automotivo é marcado por popularizações e decadências; mas, às vezes, há momentos de renovação. O futuro agora é incerto para o cabriolet, mas o domínio dos crossovers e SUVs também não durará para sempre. Haverá um dia em que sua glória chegará o fim (rápido, espero eu). Se esse dia chegar, talvez a perua e o conversível possam brilhar de novo aos olhos do público.
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Pedro Coelho é jornalista, fã de automóveis desde criança e faz produção de vídeos para o YouTube.