Picape do EcoSport teria salvado a Ford no Brasil
Ideia foi colocada para Detroit, que rejeitou. Picape do EcoSport seria o que é hoje a nova Fiat Strada ou a Toro. Veja outros erros da Ford
Depois da hecatombe que foi o anúncio vindo de Detroit de que a Ford Brasil não vai mais fabricar carros, muitas análises foram feitas e a busca por culpados continua. Não quero entrar aqui na discussão se a Ford está sendo ingrata com o país que lhe acolheu. Quero me concentrar nos erros históricos cometidos pela Ford nas últimas décadas, quase todos eles decididos nos EUA e não no Brasil.
É muito fácil ser engenheiro de obra pronta, por isso todos os erros estratégicos cometidos tiveram alguma razão de ser. O mais triste é que a maioria das decisões não foi tomada pelo time que defendia as cores da Ford aqui no Brasil, mas pelos executivos de Dearborn, em Detroit, sempre com um certo desprezo para o negócio no Brasil. Na minha opinião foram muitos os erros históricos que levaram ao desfecho triste do explosivo 11 de janeiro de 2021.
Não concordo com colegas que dizem ter sido um erro a substituição do Galaxie pelo Del Rey. Ora, o Ford Del Rey não tinha a potência e o tamanho do Galaxie, mas mantinha o requinte e o conforto que cabiam num Brasil -- e num mundo -- que havia passado por duas crises do petróleo. Um carro mais compacto, mais adequado aos anos 80. A união da Ford com a Volkswagen na Autolatina foi um erro? A união, não; a forma como foi conduzida, sim.
Se a própria Volks, que era líder de mercado, precisava reduzir custos no absurdo ambiente econômico do Brasil dos anos 80, com uma hiperinflação que exigia reajustes diários de preços e corroía de forma cruel os salários, que dizer da Ford? Autolatina foi uma saída para que as fábricas não fechassem. Porém, a Ford não soube manter seu DNA, foi demasiadamente subserviente aos interesses da Volkswagen e perdeu totalmente sua identidade.
Com a Autolatina, os Ford perderam requinte, conforto e qualidade no acabamento. Mesmo assim, como o mundo dá voltas, o lançamento do Ford Escort significou um novo alento. Melhor ainda quando o carro ganhou a versão XR3. Em pouco tempo o Escort XR3 se transformou em objeto de desejo. Não tinha um motor tão bom quanto o carro exigia, mas estávamos em um mercado fechado. Se tivesse um motor mais moderno, possivelmente o Escort XR3 não teria sido engolido pelo Gol GTi, da Volkswagen, que tinha motor 2.0 e injeção eletrônica.
A ida da Ford para Camaçari (BA) foi outro erro. A empresa optou pelas benesses fiscais do Governo da Bahia e abriu mão de ficar no ABC paulista ou no Rio Grande do Sul. Estrategicamente, do ponto de vista geográfico, a opção gaúcha seria mais interessante, por estar mais perto de outros pólos industriais e também do Mercosul. Isso, entretanto, não foi o principal, visto que anos depois a FCA foi para Pernambuco e isso não impediu seu sucesso.
A escolha de um câmbio ruim, o Power Shift, automatizado de dupla embreagem, foi decisivo para queimar um ótimo carro, que era o Ford Fiesta. Quando a questão da transmissão foi resolvida, o carro já estava queimado no mercado. Outro erro histórico foi abandonar o mercado de picapes pequenas. A Ford teve a Pampa, inclusive com versão 4x4 baseada no Corcel II. Essa picape foi uma ousadia e durante anos, após sua descontinuação, foi muito procurada no mercado de usados -- um sinal e tanto para o departamento de marketing.
A picape Courier, baseada no Fiesta, já tinha uma concorrência muito mais desenvolvida. Porém, ao invés de aproveitar o sucesso da Ranger, uma das pioneiras no mercado de picapes médias, fazendo uma dobradinha com uma picape pequena, a Ford preferiu investir só no modelo maior. O carro acabou sendo produzido na Argentina, uma decisão acertada, porém, sozinha, tornou a Ford irrelevante justamente no segmento em que ela é a número 1.
Justiça seja feita aos executivos brasileiros, que tinham a ideia de criar uma picape monobloco na plataforma do EcoSport. Ideia genial nascida aqui no Brasil, o EcoSport de primeira geração não foi boicotado pela matriz, em Detroit, e acabou criando o nicho dos SUVs compactos. Bastou pegar um Fiesta, levantar a suspensão, reforçar toda a estrutura e os itens de suspensão, dar uma cara off-road e criou-se um campeão de vendas. O EcoSport levantou a Ford nos anos 2000 e foi líder praticamente sozinho durante 10 anos. Uma década inteira.
Tempo suficiente para a Ford dormir sobre os louros do EcoSport. O carro se tornou mundial, porém a Ford Brasil ignorou a tendência de eliminar o estepe do lado de fora do porta-malas. Insistiu na teoria de que os clientes queriam aquilo. Eis um caso em que um sucesso estrondoso levou ao fracasso definitivo. Até a Land Rover e a Mitsubishi já tinham abandonado a ideia do estepe pendurado no porta-malas, mas a Ford Brasil insistiu e o resultado foi um carro apertado e com uma geringonça que a maioria dos consumidores rejeitou.
Pior: demorou demais para atualizar a multimídia do novo EcoSport e, com isso, ficou bem atrás de novos rivais que chegaram, como o Honda HR-V, o Jeep Renegade e até o Peugeot 2008. O maior erro relacionado ao EcoSport, entretanto, foi não ter servido de base para uma picape compacta. Detroit dizia que só aceitaria projetos que pudessem ser mundiais.
Enquanto a Ford ficou nessa discussão, a Renault lançou a picape Oroch e a Fiat lançou a Toro. Duas picapes maiores, quatro portas, monobloco (com dirigibilidade de carro e não de caminhão), derivadas do Renault Duster e do Jeep Renegade. Exatamente o que a Ford Brasil queria fazer com o EcoSport e a Ford Motor Company não deixou. Hoje a Fiat tem na nova Strada exatamente o que seria a picape do EcoSport, que provavelmente teria salvado a operação no Brasil.
Se formos aos detalhes, há muito mais. Podemos citar o preço do Ford Ka da primeira geração (muito alto) e a transmissão automática de quatro marchas para o Ford Focus de segunda geração (inadequada), então foi mais um ótimo carro queimado, pois a concorrência já tinha automáticos com cinco ou seis marchas. Podemos citar também a demora na aposta dos motores flex -- por que a Ford tinha que ser a última a aderir a essa tecnologia?
Até mesmo a segunda geração do Ford Ka, que é ótima, talvez tenha sido um erro estratégico. A Ford passou décadas tentando fazer um carro que derrubasse o Volkswagen Gol. Ficou tão fixada nessa meta que, ao conseguir (o Ford Ka é um Gol evoluído, assim como o Chevrolet Onix), os hatches compactos já não eram tão lucrativos. Havia movimento de migração para SUVs compactos e isso se estende até para a nova picape Fiat Strada. O Ka também optou pela multimídia Sync 2 e foi engolido pelo Onix, que trouxe o MyLink e realmente conectou os motoristas desse segmento. De novo, quando melhorou a multimídia, era tarde.
Até mesmo com o Ford Mustang a Ford Brasil dormiu no ponto. Antes de o Chevrolet Camaro se tornar uma febre de vendas no Brasil, o muscle car americano mais importado era o Mustang, por alguns anos. Em 2008 as vendas do Ford Mustang subiram para 148 unidades e o carro ficou em 2º lugar no segmento. Porém, ao invés de chamar atenção da Ford, o fenômeno chamou a atenção da GM. No ano seguinte, 2009, novamente o Mustang ficou em 2º lugar e atingiu 177 vendas no ano. A Ford cochilou e esnobou esse nicho, mas a GM entendeu o sinal do mercado e decidiu importar o Chevrolet Camaro, para concorrer diretamente com o Ford Mustang. Matou!
Diante de tudo isso, a Ford Brasil ainda teve que se adaptar às novas determinações de Detroit, que desistiu de fazer hatches e sedãs na maioria dos mercados. De uma forma geral, os executivos da Ford Motor Company não parecem ter pelo Brasil o mesmo carinho que a Ford Brasil tem. O pessoal daqui realmente é dedicado a fazer o melhor, porém é constantemente sabotado por Detroit. Todo mundo sabe como é difícil trabalhar com um chefe que insiste em coisas que não dão mais certo.
Uma pena. Mesmo com erros, a Ford criou uma linda história no Brasil. Se usou subsídios governamentais (como todos os outros fabricantes), também devolveu os impostos mais altos do planeta. Mas isso já é outro assunto.