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Às margens da poluição: a vida de moradores em volta do rio brasileiro sufocado por microplásticos
Rio dos Bugres, no litoral de São Paulo, foi classificado como o segundo mais poluído por microplásticos em todo o mundo
Quando era criança, o marmorista Felipe*, de 29 anos, teve uma infância feliz às margens do Rio dos Bugres. Ele se lembra de um cenário completamente diferente do que vê hoje em frente à sua casa: águas mais limpas, uma paisagem bonita e um rio cheio de vida. Atualmente, porém, o que ele vê é um reflexo da degradação ambiental — um rio poluído, repleto de lixo, que já não guarda nenhum traço do cenário que trás em suas memórias.
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22 de março é Dia Mundial da Água. Há muito pouco a se comemorar, mas muito a se fazer. E você o que tem feito para contribuir?
"Era tão bonito e, hoje em dia, ficou uma coisa feia", lamenta o morador. "Antigamente, tinha menos poluição e a gente nadava nesse rio sem preocupação. Hoje, é capaz de você estar nadando e bater em um fogão ou em um sofá".
O Rio dos Bugres, descrito pelo marmorista, margeia as cidades de Santos e São Vicente, no litoral de São Paulo. Com mais de 3.500 moradias em palafitas e uma população de mais de 12 mil pessoas vivendo de forma irregular, o rio foi classificado como o segundo mais poluído por microplásticos em todo o mundo.
A descoberta faz parte de uma pesquisa divulgada recentemente na revista científica Marine Pollution Bulletin, conduzida por especialistas do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) e do Instituto Ecofaxina, uma organização não governamental dedicada a ações de limpeza e conscientização ambiental.
Neste primeiro estudo, foram analisadas as concentrações de microplásticos em 10 pontos distintos ao longo do rio. Os resultados mostraram uma variação que vai de 6 mil até o pico de 93 mil partículas de microplásticos por quilograma de sedimento coletado.
Com a quantidade de microplásticos encontrados na areia e na lama do fundo do rio, o Rio dos Bugres ocupa o segundo lugar no ranking mundial de contaminação por microplásticos, ficando atrás apenas do Rio Pasur, localizado em Sundarban, no Paquistão.
A tristeza de ver um rio "morrer"
O Rio dos Bugres está localizado em uma região "esquecida". Enquanto Santos figura na lista das melhores cidades do mundo para se viver, segundo o relatório Global City Index 2024, pouco se mostra sobre as palafitas e a vulnerabilidade extrema que atinge as pessoas que moram ali. Como moradora da cidade, posso afirmar que essa região é quase "invisível" para o restante da população. Até o último dia 20, eu mesma nunca havia conhecido a área de perto.
Naquele dia, acompanhada pela equipe do EcoFaxina, peguei um carro de aplicativo até o Bairro São Manoel. Em cerca de 25 minutos, cheguei a uma praça próxima à entrada da comunidade. De lá, caminhamos aproximadamente 20 minutos até o ponto de embarque do barco. Já no local de partida, ainda no Rio São Jorge, era possível ver muito lixo acumulado nas encostas e na água. No entanto, à medida que o barco se aproximava do Rio dos Bugres, a situação se tornava ainda mais chocante.
Foi nesse percurso pelo Rio dos Bugres que a reportagem se deparou com uma paisagem angustiante: a água, transformada em um depósito a céu aberto, carregava de tudo. Sofás, madeiras, embalagens de alimentos, brinquedos infantis, isopor, sapatos, roupas... Descrever todos os resíduos que poluíam o rio seria uma tarefa impossível, mas esse é um retrato triste da realidade enfrentada naquela região.
Além do lixo visível, o aspecto sujo e a ausência de vida aquática evidenciam que o rio, que poderia ser uma fonte de sustento e lazer para as comunidades do entorno, está morrendo no trecho que passa pelas palafitas. A falta de saneamento básico agrava ainda mais o problema, transformando o que deveria ser um recurso vital para o meio ambiente e à população em um símbolo de abandono e degradação ambiental.
Essa falta de saneamento não foi apenas um problema destacado por moradores ouvidos pelo Terra, mas também uma questão confirmada pela pesquisa realizada pelo Ipen e pelo Ecofaxina, que investigou as causas ambientais e humanas por trás do acúmulo de microplásticos na região.
Segundo os resultados, os principais fatores incluem a ocupação irregular e densa em palafitas, a ausência de coleta de lixo e de saneamento básico para a população local, além do descarte de resíduos industriais nos afluentes do estuário. A hidrodinâmica da região, com seu fluxo e refluxo de água, marés e afluentes, também desempenha um papel importante na dispersão --ou na concentração-- desses resíduos.
"Como não temos saneamento, nosso banheiro vai direto no rio. E o pessoal joga de tudo dentro do rio: resto de vidro, móveis, algo quebrou joga, comida também", relatou a dona de casa Juliana*, de 31 anos. Ela se aproximou da reportagem enquanto eram feitos registros dos lixos, alertando sobre o perigo de se cortar com algum pedaço de vidro.
Mãe de um menino de quatro anos, a moradora citou a falta de opções de lazer para a criança, que, em outro cenário, poderia brincar nas águas do rio. "Eu não deixaria ele brincar nessa água. Quando a maré baixa, o cheiro fica insuportável, mas a gente acaba se acostumando, não tem outra escolha. Teve uma época em que teve surto de urticária porque ainda sim tem crianças que nadam na maré [forma como chamam o rio], e é contaminado".
Tudo o que ela descreveu foi confirmado pela reportagem, que flagrou moradores jogando embalagens plásticas de alimentos diretamente na água, das janelas de suas palafitas. A situação era tão crítica que até navegar pelo rio se tornou uma tarefa difícil: o condutor do barco precisou parar várias vezes para afastar o lixo com um pedaço de madeira, já que a quantidade de detritos era imensa. Em um dos momentos, o lixo chegou a quebrar uma pá da hélice do barco que transportou a equipe no local.
Felipe*, o marmorista que vive na comunidade desde que nasceu, compartilhou o que descreveu como a tristeza de ver essa situação do rio "morrer".
"Minha infância foi boa, vivi muito na maré. Do lado de lá [contrário de sua casa] não tinha barraco, era só mangue, a gente pegava até caranguejo. Hoje, tá tudo poluído, invadido, acabaram com os mangues, só tem bagunça, lixarada." -- Felipe*
Segundo ele, o poder público só vai até a região quando é do interesse. "É uma região que moram muitas pessoas de baixa renda, né?", pontua o morador que, apesar da situação lhe entristecer, ainda mantém o sonho de ver o rio limpo e restaurado. "Espero que eles [governantes] pensem no futuro, que são as crianças, que elas ainda possam ter qualidade de vida".
Esquecidos pelo poder público
Sasha Alves, morador da comunidade há cerca de 50 anos, falou com indignação ao reforçar a crítica à negligência das autoridades. "Quando eles falam da situação daqui, citam a questão das palafitas, mas há várias coisas incluídas, inclusive a falta de vontade do próprio governo. Nosso governo tem milhões em caixas todo ano e deveria fazer o que tem que ser feito: drenar, organizar, limitar", diz ele.
Sua colega, que estava sentada ao seu lado acompanhando a entrevista, também citou a necessidade de ações de conscientização. "Falta muita conscientização das pessoas. Houve, por muito tempo, um projeto implantado aqui que juntava plástico e trocava por cesta básica, e teve muita diferença na forma como o lixo era descartado na comunidade quando houve a ação. Você não via lixo jogado em qualquer lugar".
Sasha ainda relembrou que, há muitos anos, o rio era limpo e que era comum avistar botos e tartarugas em suas águas. No entanto, com o crescimento desordenado da população e a falta de controle, o cenário mudou. E não foi só isso, a contaminação do rio afetou também a saúde dos moradores e já provocou vários surtos de viroses na comunidade, de acordo com seu relato.
Os pescadores da região, que dependem da atividade para sobreviver, evitam pescar no local e se deslocam para áreas mais distantes, onde a água é menos poluída. Apesar disso, alguns moradores ainda recorrem ao rio para garantir sua própria alimentação, já que para muitos é a única fonte disponível.
"Agora, fezes, urina, resto de animais, resto de tudo é jogado nesse rio. E as prefeituras e os governos fingem que não veem, só fazem coisas para o lado rico da cidade" -- Sasha
Na opinião de Sasha, se o rio cortasse uma região de classe média, o poder público nunca deixaria chegar nesse nível de degradação. "Se fosse na Ponta da Praia de Santos não estaria assim."
É por tudo o que é descartado no rio que Natália*, de 23 anos, que carregava o filho de três meses no colo enquanto passava pela comunidade, afirma ter muito medo de que os filhos peguem alguma doença. Ela também tem uma filha mais velha, de 7 anos.
"Eu não deixo ela brincar na água porque é muita sujeira, muito lixo. Às vezes, os amigos dela brincam, mas, no caso deles, não acho certo, porque pode pegar uma bactéria". Sem o rio, as crianças, que já vivem em área de vulnerabilidade, quase não têm opção de lazer. "A gente tem medo de pegar infecção da água e do lixo. Já vi bastante rato e cobra", relata.
E o meio ambiente, como fica?
O biólogo William Rodriguez Schepis, diretor-presidente do Instituto EcoFaxina e responsável técnico pela coleta das amostras do estudo, explicou durante o percurso pelo rio que os microplásticos são fragmentos de plástico com menos de 5 mm, visíveis apenas em laboratório. Segundo ele, esses materiais podem originar-se da fragmentação de objetos maiores, como embalagens, fibras sintéticas de roupas e até pneus.
De acordo com ele, o Rio dos Bugres está localizado em uma área de manguezal, que serve como local de lazer para muitos moradores, especialmente crianças. No entanto, o cenário de poluição é preocupante. O lixo descartado diretamente no manguezal é carregado para o mar com a variação das marés, depositando resíduos nas praias diariamente. "Para nós, é um problema que associa a pobreza e a desigualdade social aos impactos ambientais, tanto no manguezal quanto no mar e nas praias", afirmou Schepis.
O impacto é ainda maior para a fauna. "O manguezal é um berçário da vida marinha, abrigando diversas espécies de crustáceos, peixes, moluscos e aves. É um hotspot de biodiversidade, mas o resíduo plástico causa grande sofrimento à fauna, que confunde o plástico com alimento", explicou Schepis.
Além disso, o plástico concentra poluentes orgânicos, que são transferidos para a corrente sanguínea dos animais quando ingeridos. Esses poluentes afetam também a saúde das pessoas que consomem esses organismos, como peixes, ostras, camarões e caranguejos. "Muitos moradores usam esses organismos como complemento alimentar, mas eles estão contaminados por poluentes que chegam ao estuário", alertou.
Schepis destacou que o Instituto EcoFaxina busca atuar tanto na questão ambiental quanto na social, conscientizando os moradores das palafitas e dialogando com o poder público e a iniciativa privada. "Trabalhamos com as prefeituras de Santos e São Vicente e empresas do complexo portuário, que têm responsabilidade compartilhada com o ciclo de vida das embalagens plásticas", afirmou.
Um dos projetos propostos é o Sistema Ambiental de Coleta de Resíduos, que visa formar uma frente de trabalho com moradores das palafitas para a limpeza e recuperação do manguezal, utilizando embarcações e ecobarreiras. "O projeto prevê a criação de bases operacionais em Santos e São Vicente, próximas às comunidades, para que os moradores possam destinar corretamente seus resíduos, fazer a triagem e comercializar os materiais, gerando renda", explicou.
O projeto já tramita na Prefeitura de Santos desde 2011, e o Instituto aguarda a regularização de áreas para implantar as bases operacionais. Schepis ressaltou que o projeto trará benefícios ambientais, sociais e econômicos. "Além de recuperar o manguezal, o projeto pode transformar a região em um ponto de ecoturismo, beneficiando o setor de turismo e a pesca, que hoje sofre com a captura de resíduos e a contaminação dos organismos. É uma iniciativa que beneficia diversos setores da economia, o meio ambiente e, principalmente, as comunidades que vivem em situação de vulnerabilidade", disse o biólogo.
Além do Rio dos Bugres, o Brasil tem outros seis cursos d'água entre os dez mais contaminados por microplásticos no mundo, todos localizados no litoral de São Paulo, de acordo com o estudo realizado pelo EcoFaxina e Ipen. A lista inclui a Ilha Barnabé (3º), o Rio São Jorge (4º), o Rio Casqueiro (5º), o Canal do Estuário de Santos (8º) e a Foz do Canal de Piaçaguera (9º).
Na Ilha Barnabé, situada na região do Porto de Santos, foram detectadas 36.300 partículas de microplásticos. Já no Rio São Jorge, que banha o bairro homônimo na Zona Noroeste de Santos, o número foi de 17.450 partículas. No Rio Casqueiro, em Cubatão, os pesquisadores identificaram 16.950 partículas — 10 mil a mais do que as 6.700 encontradas no Estuário de Santos. Já na Foz do Canal de Piaçaguera, localizada entre Cubatão e Santos, foram registradas 6.150 partículas de microplásticos.
O que dizem as prefeituras
Em nota, a Prefeitura de São Vicente, por meio da Secretaria de Meio Ambiente (Semam), afirma que monitora a situação referente ao índice de microplásticos no Rio dos Bugres constantemente, por meio de estudos e relatórios ambientais internos.
A Semam diz que toma ações frequentes visando minimizar grandes impactos, como a fiscalização de descarte irregular de resíduos e consequente multa dos infratores, investimento em recursos para melhoria da coleta seletiva e da reciclagem, além de mutirões de limpeza em rios, praias e áreas críticas do estuário.
A administração municipal também afirma ter compromisso com o meio ambiente e o bem-estar social, e que segue atenta a este cenário. "Além disso, o Município está trabalhando para melhorar esta situação, investindo no processo de regularização fundiária de quase 9 mil lotes na cidade. Também estão em construção mais 450 unidades habitacionais e outras 3 mil estão em aprovação, visando contemplar a população em situação de vulnerabilidade social", acrescenta.
Já a Prefeitura de Santos afirma que tem realizado diversas ações para combater a poluição no Rio dos Bugres e promover a recuperação ambiental da região. Além disso, informa que o município está entre as cinco cidades brasileiras escolhidas pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) para integrar um projeto nacional que visa reduzir ou até mesmo eliminar a circulação de plásticos de uso único, como canudos, talheres, pratos e embalagens.
A Prefeitura afirma que promove projetos de educação ambiental, como o Beco Limpo, que qualifica moradores como Agentes Comunitários de Resíduos, atuando como multiplicadores de práticas sustentáveis.
Segundo a administração municipal, Santos tem o projeto do Parque Palafitas, que visa reurbanizar a região do Rio dos Bugres. O projeto prevê a construção de 60 unidades habitacionais, saneamento básico, iluminação pública e espaços de lazer, além da regeneração do mangue. O município diz ainda que o programa habitacional Santos Mais prevê a construção de 1.740 novas unidades habitacionais, incluindo estações elevatórias e o desassoreamento do Rio dos Bugres.
Sabesp cita universalização do saneamento
Em contato telefônico, o governo do Estado de São Paulo informou que o rio é de responsabilidade dos municípios e que a falta de saneamento básico na região é uma questão que compete às respectivas prefeituras e à Sabesp, empresa responsável pelo fornecimento desse serviço nas cidades envolvidas.
A Sabesp informou ao Terra que vai antecipar em quatro anos a universalização do saneamento em sua área de atuação, levando água potável e coletando e tratando os esgotos para todos até 2029 - a meta estabelecida pelo Marco Legal do Saneamento é 2033. A Companhia também começou a levar saneamento para comunidades informais, que não podiam ser atendidas até o ano passado, quando foi concluída a desestatização.
Com autorização das prefeituras, a Sabesp afirma que atuará, em 2025, em 40 mil residências da Baixada Santista, que passarão a ter conexões de água e esgoto.
"Em Santos, a Sabesp vem trabalhando em conjunto com a Prefeitura no projeto municipal de urbanização Parque Palafitas, que permitirá que a Companhia regularize as ligações de água e esgoto nas casas às margens do Rio dos Bugres. A Sabesp anunciou ainda R$ 7,5 bilhões que serão investidos na Baixada Santista. As obras vão ampliar os sistemas de água e esgoto das nove cidades, beneficiando tanto os moradores quanto os turistas da região. Deste montante, R$ 3 bilhões já estão contratados e com serviços sendo executados", informou a companhia.
*A reportagem utilizou nomes fictícios para preservar a identidade dos moradores que preferiram não se identificar.