“A maioria dos abrigos não recebe pessoas em situação de rua”, diz ONG do RS
Centro Social da Rua existe desde 2016 e intensifica ações com pessoas em situação de rua durante catástrofe no estado
A ONG Centro Social da Rua, que cuida de pessoas em situação de rua em Porto Alegre (RS) desde 2016, viu a população de desabrigados sair de 5 mil e chegar a 75 mil em um mês devido aos estragos causados pelas chuvas que assombram o estado.
As ações da organização, que começaram oferecendo banhos a quem vive na rua e hoje, além dessa ação, também cria iniciativas de lavanderia solidária e aquecimento, precisou recrutar novos voluntários e trabalhar triplamente para atender à demanda que aumentou quinze vezes em um mês.
A organização começou antes mesmo de ter nome, CNPJ e a alcunha de ONG. Seus primeiros passos aconteceram quando sua fundadora, Letícia Andrade, decidiu repetir uma ação de higiene à população de rua que viu acontecer em outros estados do país. Ela, então, procurou os responsáveis por fazerem o ‘banho solidário’ na Bahia, e disse que queria replicar a iniciativa pelos bairros de Porto Alegre.
A ação foi um sucesso: ela conseguiu voluntários e, com um reboque com dois chuveiros, acessou por um fim de semana as ruas em que mais pessoas dormem na cidade. Mas, enquanto o banho solidário acontecia, Letícia percebeu que só oferecer isso era pouco para o que aquelas pessoas precisavam: as roupas seguiam sujas e elas não tinham onde lavar. E, nos períodos mais frios do ano, congelavam durante a madrugada.
O último registro do governo do estado do Rio Grande do Sul calculou que, em média, 5 mil pessoas dormem nas ruas da capital Porto Alegre. Letícia entendeu que precisava fazer mais que apenas iniciativas pontuais: decidiu criar a ONG e, para fazer parte dela, acionou quem já abraçava a causa das pessoas em situação de rua.
Jacqueline Junker é uma das pessoas que faz parte do Centro Social da Rua desde que foi criado. Ela falou com exclusividade a Planeta, e contou os desafios da ONG neste período de devastação do estado do Rio Grande do Sul.
A maioria dos abrigos que foram criados para receber pessoas desalojadas não recebe pessoas em situação de rua. São abrigos diferentes, distantes e com menos vagas. Existe essa segregação
Como tudo começou
Jacqueline conta que a ideia de levar o banho para pessoas em situação de rua surgiu devido ao preconceito que essa população sofre constantemente. A ação de banho solidário não oferece apenas o chuveiro, mas também toalha, kit higiene e doação de roupas limpas, e acontece pelo menos durante três fins de semana por mês.
As pessoas que participam da ação escolhem as roupas que quiserem, expostas em uma arara – roupas que, muitas vezes, são novas. “Elas ficam surpresas com a possibilidade de poderem escolher. Várias vezes já me perguntaram ‘mas eu posso pegar qualquer uma?’. As roupas íntimas que a gente distribui na ação são sempre novas, e isso também espanta quem participa”, conta Jacqueline.
Mas eu vou ganhar uma cueca nova, que ninguém nunca usou?
Na hora do banho solidário, ficou nítido que mais coisas deveriam ser feitas. Foi quando a ONG decidiu criar sua segunda ação, a lavanderia solidária, para que as pessoas em situação de rua também pudessem lavar suas roupas usadas. Isso só foi possível porque a organização ganhou o prêmio Viva Voluntário, do Governo Federal, e com a verba da premiação, conseguiu investir.
O Centro comprou seu próprio carro utilizado nas ações. Durante as ações de lavanderia solidária, o reboque carrega duas máquinas de lavar com secadora.
“Nossa terceira ação é a ‘Aquecimento solidário’, que a gente coloca em prática nos dias frios aqui em Porto Alegre. Inclusive, está acontecendo agora. Sempre que esfria, nos dividimos em carros com até três pessoas e saímos pelas ruas da cidade distribuindo cobertores, kits de higiene e meias quentinhas para quem não conseguiu vaga nos albergues. Vamos, inclusive, até lugares pelos quais ninguém passa, que a gente já mapeou. Às vezes, a pessoa está dormindo, encolhida, e a gente nem acorda. Só a cobre, bota o agasalho e o kit do lado, para, quando ela acordar, saber que foi cuidada.”
Sede alagada e ações com enchentes
Segundo Jacqueline, todo o dinheiro que a ONG consegue para a manutenção das ações vem de doações, de pessoas físicas e de empresas. Além disso, é com esse dinheiro que é pago o aluguel da sede do Centro Social da Rua, que também está alagada por causa das enchentes. A coordenadora se emociona ao contar:
“Provavelmente, perdemos os carros da ONG e as máquinas de lavar e secar com as quais trabalhamos para as ações. Se tivermos sorte, conseguiremos salvar os reboques. Quando fomos tentar tirar as coisas de lá, durante a cheia, não foi permitido que entrássemos na rua porque a água já estava muito alta."
Os voluntários tiveram de improvisar uma garagem para receber os mantimentos e doações de kits que têm chegado. O trabalho do grupo, em contrapartida, só aumentou. Além das ações que já fazia, agora há também a distribuição de cobertores e alimentos prontos para serem consumidos – como enlatados – para os tantos abrigos em atividade.
“Temos de pensar em alimentos que possam ser consumidos mesmo se não houver luz, nem água. Então, em vez de cestas básicas, optamos por sardinha, leite, pão, entre outros produtos facilmente consumíveis”, afirma Jacqueline.
“Neste momento, temos de mitigar o frio e a umidade, porque a chuva voltou aqui em Porto Alegre. As ruas, que haviam secado, voltaram a inundar. As pessoas que tinham conseguido limpar suas casas estão correndo para tentar salvar o pouco que tinham recuperado. E houve esse aumento exponencial na população de rua, porque há 70 mil pessoas desabrigadas, cujas casas foram totalmente perdidas.”
A ONG distribui, também, alimentos para a população das ilhas próximas à Porto Alegre que não quis deixar suas casas e ir para abrigos com medo de que fossem saqueadas. “Fizemos, então, uma ação com o corpo de bombeiros, pedimos ajuda para levar comida e cobertores para essas pessoas, que estão acampadas na rodovia próximas às suas casas, vigiando, com medo de roubo.”
O problema é que, com o passar do tempo e as pessoas tendo que se readaptar – voltar aos seus trabalhos, mesmo sem a situação estar sob controle –, a ONG tem perdido os novos voluntários que chegaram. “E a quantidade de trabalho só cresce”.
“O que nós queremos é humanizar e acolher pessoas em situação de rua, tratá-las com carinho, afeto e sem julgamento, com respeito às suas fragilidades e aos seus tempos. Essa é nossa busca”, afirma Jacqueline.