Fundador ‘rebelde’ foi expulso do Greenpeace e criou ONG para proteger oceano
A ONG Sea Shepherd intercepta pesqueiros e denuncia exploração ilegal dos mares em todo o mundo
Na década de 1970, o canadense Paul Watson se infiltrava pelos mares em busca de caçadores de baleias. A veia pulsante de protetor ambiental vivia seu auge, o da coragem irracional típica da juventude revolucionária: ele tinha 20 anos e, junto de colegas empolgados em mudar o mundo, havia acabado de fundar o Greenpeace. No mar, se enfiava entre baleias e grandes embarcações que tentavam caçá-las, pacificamente, embasado pelos ideais de Gandhi.
Nesse mesmo período, Watson viveu um divisor de águas enquanto protetor de espécies marinhas: atracado, na companhia do ambientalista Robert Hunter, se deparou com um navio baleeiro soviético de 45 metros em alta velocidade. O mar estava agitado, e à frente do barco de Watson havia oito baleias cachalote, em fuga. Ele fez o que havia se proposto: a cada arpão lançado em direção às baleias, o barco dos ativistas se colocava na frente, interceptando os ataques.
Só que os baleeiros não gostaram do que viram. Um deles olhou para Watson, sorriu e passou o dedo no pescoço, simulando uma degola. “Foi quando percebi que Gandhi não funcionaria conosco naquele dia”, conta, em vídeo de apresentação do site da Sea Shepherd, ONG criada por ele com filiais no mundo todo, destinada à proteção de espécies marinhas.
“Segundos depois, houve uma explosão muito forte. Um arpão passou voando sobre nossas cabeças e cravou nas costas de uma das baleias, uma fêmea. Ela soltou um grito muito parecido com o grito de uma mulher, como um ser humano sofrendo”, conta Watson.
A baleia caiu em uma poça de sangue, enquanto a maior do grupo bateu seu rabo na água e desapareceu. Por baixo do barco de Watson, pulou em frente ao navio baleeiro na tentativa de proteger seu grupo, mas os caçadores já tinham outro arpão em mãos, lançado à queima-roupa sobre a cabeça dela. Ela caiu no mar, e um rastro de bolhas de sangue corriam na direção do barco de Watson. Ele imaginava o que estaria por vir: a baleia iria esmagá-los.
“Mas, quando ela saltou da água, seus olhos encontraram os meus. Naquele olhar, vi compreensão, e aquilo mudou minha vida para sempre. Ela poderia ter nos matado, mas ao pular, tensionou os músculos para se afastar do nosso barco. Ela caiu, morta. A partir daquele dia, me senti em dívida. Aquele olhar carregava pena, e não pena de si mesma, mas de nós, humanos: capazes de tirar vidas a qualquer custo. Dali para frente, tive certeza: seria pelo mar e pelos seus seres que iria agir.”
A caça das baleias cachalote se dá principalmente pela extração do óleo de espermacete, utilizado para fins diversos até hoje. À época em que Watson tentou salvar aquelas baleias do navio soviético, o óleo era extraído e utilizado em máquinas e em mísseis balísticos internacionais.
Paul Watson era membro-fundador do Greenpeace, e a atuação da ONG mundo afora vivia um ineditismo no fim dos anos 1970. Havia trabalhos de preservação em diversas partes do mundo e, depois dessa empreitada com as baleias, o marinheiro foi para o Canadá salvar focas. As focas do Ártico, quando filhotes, são bem peludas – o que as tornavam alvos de caça para produção de casacos de pele.
O ativista, então, inventou uma tinta orgânica que pintava de verde o pelo das focas, e mantinha a pelagem esverdeada até que caísse totalmente. A coloração incomodava os caçadores, uma vez que não era atrativa para o que a indústria da moda queria naquele momento. Essa ação teve muito sucesso, mas foi tão polêmica quanto, e culminou na expulsão de Watson do Greenpeace.
Em 1977, ele fundou a Sea Shepherd, ONG cuja missão é proteger o oceano e tem representantes em mais de dez países. A organização ainda leva em sua bandeira o estilo pirata e continua interceptando barcos de pesca e filmando ações de pesca ilegal mar adentro.
Quem conta a história do capitão Paul Watson é a presidente da Sea Shepherd Brasil, Nathalie Gil, em entrevista exclusiva a Planeta. Watson ganhou a alcunha de capitão aos 18 anos. Depois, se formou em comunicação, e uniu o útil ao agradável quando modernizou as ações da Sea Shepherd: uma das maiores aliadas dos voluntários hoje é a câmera, que expõe para o mundo o que acontece no oceano.
Segundo o último relatório apresentado pela ONG, que não tem apoio de qualquer entidade governamental, o ano de 2022 teve uma arrecadação superior a R$ 1,9 milhão (as doações são a principal fonte de renda da Sea Shepherd). Desde 2021, atuaram em mais de 100 cidades brasileiras e retiraram 17 toneladas de resíduos dos oceanos – sendo a maioria desse lixo, plástico e apetrechos de pesca.
Nathalie explica que a ONG atuava em alto mar, com embarcações, buscando baleeiros e divulgando o que acontecia. A divulgação em massa, segundo ela, surtiu efeito, culminando na proibição à caça de baleias em águas internacionais. “Mas, infelizmente, há países que ainda o fazem, que é a Islândia, a Noruega e o Japão”, conta.
Então, a Sea Shepherd ampliou seu olhar e começou a abraçar outras causas marinhas, como a do combate à pesca ilegal e à pesca predatória. “Hoje, 1/5 dos peixes retirados do oceano vem da pesca ilegal, não documentada e não reportada. E a pesca predatória é aquela que é legalizada, mas é realmente muito destrutiva, como uma pesca de arrasto – aquela que usa uma grande rede que raspa o fundo do mar", fiz
A gente vai expondo esses tipos de pesca, não só de arrasto, mas outras também tão destrutivas quanto, predatórias que prejudicam o ecossistema marítimo
Foi o próprio Watson quem fundou a Sea Shepherd Brasil, e segue à frente dela até hoje, diz Nathalie. Entretanto, o capitão abandonou a filial dos EUA por acreditar que ela “não era rebelde o suficiente”. “A gente se vê como rebelde com causa. Nunca vamos nos posicionar somente pelo grito, vamos nos posicionar sempre. O Paul sempre teve muito cuidado com isso, ele tem muito embasamento. Não estamos gritando à toa”, explica. Hoje, apenas Brasil, França e Reino Unido seguem sob comando de Watson.
A fama de rebelde vem junto ao posicionamento firme da ONG em combater a pesca predatória; é, ainda, uma organização independente, o que, segundo Nathalie, favorece na hora de se posicionar de forma ostensiva: “A gente nunca vai negociar”, ela diz. “Trabalhamos bem com o Ibama, com o Ministério do Meio Ambiente, mas também trabalhamos contra quando for necessário.”
Toda a grana que a filial brasileira tem é arrecadada aqui, não há qualquer incentivo financeiro da Sea Shepherd global para as redes locais. Cada ONG é independente. “Toda nossa campanha depende de arrecadação do Brasil, merchandising, patrocínio de empresas – e somos muito seletivos na hora de fechar essa parceria, porque tem de ser empresas que não usam nada de origem animal e que não são de setores poluentes. Além disso, devem ser empresas que abracem as causas do oceano”, explica a presidente.
No Brasil, hoje, são quase mil voluntários inscritos, sendo 100 deles superativos. Os principais projetos executados pela ONG no último ano foram a ação Ondas Limpas, que pautou a maior pesquisa científica sobre a situação dos resíduos costeiros. Foram 308 leituras científicas das praias do Chuí ao Oiapoque, de acordo com Nathalie.
“Implementamos uma solução piloto de logística reversa para cidades de médio porte em um local desafiador: Anori, no Amazonas, tem uma distância de 6 horas de lancha de Manaus, e já capacitamos 300 professores, alcançamos 3.000 alunos, e coletamos mais de 6 toneladas de plástico reciclado em uma cidade que até poucos anos não era consciente do assunto.”
Nathalie afirma que a causa do oceano ainda é pouco popular entre ambientalistas, e que acaba sendo distante à sociedade. O objetivo da ONG é, também, aproximar as pessoas da causa.
“O oceano tem sido essa causa tão distante, desconhecida, desconectada. Uma pessoa chega num litoral e diz ‘ah, o mar está limpo, as ondas estão ok’. Mas falta uma conexão profunda com o oceano, de fato. Então, a gente quer frisar a realidade, que é urgente. Se o oceano morre, nós morremos”, diz.
“E, ao mesmo tempo, o oceano tem sido ignorado nas pautas ambientais. No Brasil, principalmente. A gente tem a Amazônia, sim, como uma área que tem que ser preservada, tem que receber atenção total, sem dúvida. Mas a gente tem um oceano também como um grande aliado na mudança climática, que não pode ser ignorado.”