Para evitar poluição do mar, empresa cria produtos com redes de pesca descartadas
Marulho foi criada por jovem oceanógrafa durante a pandemia e vende produtos costurados por pescadores de Ilha Grande (RJ)
Foi durante um período de veraneio em Ilha Grande (RJ) que a mergulhadora e oceanógrafa Beatriz Mattiuzzo, então com 24 anos, se deparou com uma maré de oportunidades para preservar o oceano e ainda fortalecer a economia local. O paraíso que encontrou ao pisar no arquipélago, em confronto com as tantas desigualdades entre ribeirinhos, fez apitar nela uma vontade de mudança ativa.
Beatriz é CEO da Marulho, uma empresa que ela afirma fazer parte do “setor 2 e meio” – não é ONG nem empresa privada. A Marulho, cujo nome é uma alusão a ‘barulho do mar’, tem como intuito aproveitar o descarte de redes de pesca para criar produtos por meio do artesanato local, sendo 40% do faturamento destinado às comunidades ribeirinhas da ilha.
O problema do descarte irregular de redes de pesca é real: pelo menos 640 mil toneladas desses materiais chegam aos oceanos todos os anos, segundo relatório divulgado pela ONG World Animal Protection. O mesmo documento mostra, ainda, que 45% dos mamíferos marinhos presentes na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da União Internacional para Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN) sofrem os impactos da pesca fantasma – como é chamado o fenômeno de peixes fisgados por essas redes descartadas. Além de mortos, não são aproveitados. Se perdem nos oceanos.
Foi sabendo de tudo isso e vivenciando o dia a dia dos pescadores locais da comunidade de Matariz, em Ilha Grande (RS), que Beatriz criou a Marulho. Mas a empresa não surgiu do nada. A jovem oceanógrafa chegou na ilha no fim de 2019 para ser instrutora de mergulho durante o verão, mas a pandemia de coronavírus a deixou ilhada.
Em entrevista para Planeta, ela relembra que, ao observar a comunidade em situação cada vez mais vulnerável devido à pandemia, decidiu criar o primeiro produto advindo das redes de pesca não aproveitadas: os saquinhos de mercado, que posteriormente ganharam o nome de “redeca”.
Beatriz queria reverter o valor das vendas em renda para a população, que, com o lockdown, estava à beira de um abismo. “O que mais abastece a população aqui é o turismo, e com a pandemia estava tudo suspenso. Então, tive a ideia de os próprios pescadores costurarem essas redes para transformá-las num produto final. Assim, eles ganhariam cerca de 40% do valor sobre as vendas, sendo mais uma fonte de renda dentro da comunidade”.
A ideia, inicialmente, não foi abraçada. Beatriz passou a ser conhecida entre os ribeirinhos como “a menina da rede”, uma vez que batia de porta em porta na tentativa de vender a ideia a pescadores. “Além de gerar renda para a população, a iniciativa atuaria no problema da pesca fantasma. Eu via como era difícil lidar com esse tipo de resíduo, os pescadores não sabiam o que fazer com as redes. Decidi juntar o útil ao agradável”.
O primeiro a topar costurar para a Marulho foi o Seu Filinho, hoje com 89 anos. Ela foi até a casa dele com um monte de redes e disse: “Me falaram que o senhor sabe costurar rede. Quer me ajudar?”. Ele começou a fazer dez, vinte saquinhos de mercado por mês, e Beatriz vendia na própria pousada para a qual trabalhava como instrutora de mergulho.
No primeiro ano, a Marulho faturou R$ 60 mil. Não havia lucro, e continua lucrando muito pouco hoje em dia: pouco mais da metade da grana que chegava virava investimento na empresa e o restante era distribuído entre os ribeirinhos. Nem a própria Beatriz se mantinha com o rendimento da empresa: ela, à época, ganhava uma bolsa de mestrado, o que garantia seu sustento. Seu sócio, Lucas, trabalhava meio período em outra empresa. Tudo o que a Marulho ganhava era para a comunidade.
Aos poucos, mais pescadores foram se interessando pelo projeto, que foi ganhando forma. Hoje, a Marulho oferece produtos personalizados a empresas que têm a sustentabilidade entre seus valores – elas encomendam da Marulho, que personaliza os produtos com seus logos, e os vende em grande escala. Mas há, também, a venda para o consumidor final.
Em quatro anos, a empresa cresceu: já produziu 140 mil produtos e gerou R$ 500 mil de renda à comunidade local. A quantidade de redes retiradas do oceano equivale à preservação de 600 mil vidas de animais marinhos, que seriam mortos proporcionalmente por essa quantidade de redes à mercê no mar.
As redes chegam a Marulho por diversas formas: o grupo realiza coletas tanto por cima (em praias e encostas) e por baixo d’água. “Quando a rede vai para o mar e afunda, é muito difícil e custoso recuperar. Então, a gente tenta coletar já por terra, para que isso não aconteça, parando o problema antes de ele existir”, conta Beatriz. “Cerca de 80% das redes que a gente coleta são encontradas antes de submergirem”.
Vira e mexe, pescadores batem na nossa porta com redes que eles teriam de descartar, mas não saberiam onde fazê-lo. Isso é bom para nós e para eles
A Marulho hoje tem três funcionários fixos, na gestão diária da empresa, e outras 17 pessoas que complementam a renda costurando. “Um exemplo: por cada 'redeca' nós pagamos R$ 5 aos produtores, e eles costuram cerca de 30 por dia. Então, eles já têm um ganho de R$ 150 por dia”, explica Beatriz. Elas são vendidas a R$ 11 cada.
As “redecas” foram as pioneiras, mas hoje a empresa tem mais de 20 produtos criados – de chapéus a redes –, e a maior parte das vendas é feita online. “Já trabalhamos com marcas grandes, como Osklen, Boticário e Corona. Em vez de, em um evento, entregar uma ecobag, por que não entregar uma bolsa feita de redes de pesca?”, diz Beatriz.
A(mar) à primeira vista
Beatriz nasceu no interior de São Paulo (SP) e não teve muito contato com o mar nem em seus períodos de férias. Os pais preferiam viagens a destinos históricos e pouco praianos. Aos 15 anos, no entanto, ela ganhou de presente uma viagem a Fernando de Noronha, onde mergulhou pela primeira vez. “Me apaixonei”.
Descobriu, então, o curso de oceanografia, e decidiu que se formaria nesta área. Beatriz se especializou como instrutora de mergulho e, desde então, se manteve perto do mar. “Por isso, sempre achei que a preservação do oceano e das espécies marítimas deveriam ser pauta para todos que querem viver em um planeta sustentável”, diz.
Os pais visitam a filha em Ilha Grande (RJ) e se orgulham de sua jornada, apesar de saberem que suas escolhas de vida são atípicas. “Eles entendem, sabem do impacto social que busco gerar”.
Marulho quer dizer barulho do mar. A ideia é fazer barulho e chamar atenção para as causas de conservação do oceano
A empresária explica, ainda, que um dos objetivos da empresa é mostrar que dá para utilizar algo nocivo e transformar em um produto útil, com a ajuda de pessoas que vivem daquele ambiente. “A gente faz palestras com os pescadores. Explicamos por que é importante aproximar as pessoas e o oceano, uma vez que a gente só cuida do que ama. Para cuidar do mar, é necessário amá-lo e conhecê-lo”.