Catástrofes recentes são mesmo culpa do aquecimento global?
Estudos de atribuição tentam tirar a limpo a relação entre as alterações climáticas causadas pelo ser humano e eventos catastróficos
Desde incêndios florestais de costa a costa no Canadá até grandes ciclones e inundações no Sul do Brasil e a catastrófica cheia na Líbia, passando por ondas de calor no Hemisfério Norte, fortes eventos climáticos dominaram as manchetes nos últimos meses.
À medida que o planeta aquece por causa das ainda crescentes emissões de gases de efeito de estufa, as mudanças climáticas têm, em grande parte, levado a culpa por um aparente aumento de desastres climáticos.
"Os dias de cão do verão não estão apenas latindo: eles já estão mordendo. O colapso climático já começou", disse António Guterres, secretário-geral da ONU, reagindo à notícia de que entre junho e agosto de 2023 estiveram os meses mais quentes já registrados no Hemisfério Norte.
Mas até que ponto uma onda de calor ou uma tempestade violenta pode ser atribuída ao aquecimento global, e quanto isso se deve apenas à variabilidade natural do clima?
A atribuição climática, uma ciência relativamente nova, procura responder essa questão. Seu objetivo é avaliar até que ponto as alterações climáticas causadas pelo ser humano, impulsionadas principalmente pela queima de combustíveis fósseis, aumentam a probabilidade e a intensidade de um evento climático extremo.
"Nenhum furacão é 100% causado pelas mudanças climáticas, mas é impactado por elas de muitas maneiras diferentes", explica Delta Merner, cientista-chefe do centro científico para litígios climáticos da organização Union of Concerned Scientists (União dos Cientistas Preocupados). "A ciência da atribuição pode nos ajudar a realmente descobrir o papel das alterações climáticas nesses diferentes eventos."
Mudanças climáticas e o fogo no Canadá
Quando se espalharam da costa leste para a oeste, em meados de 2023, os incêndios florestais do Canadá queimaram quase o dobro da área do recorde anterior.
Em resposta, os investigadores da iniciativa World Weather Attribution (WWA), sediada no Reino Unido, realizaram um estudo tipicamente rápido para determinar até que ponto as alterações climáticas de origem humana aumentaram a probabilidade de um incêndio sem precedentes.
Focado na província do Quebec, o levantamento concluiu que as mudanças ajudaram a criar um clima seco e entre 20% a 50% mais "propenso a incêndios" do que a média, mais do que dobrando a probabilidade de incêndios extremos no leste do Canadá.
O clima mais quente e seco fez fez a neve derreter-se mais rápido, por exemplo, antecipando o início da temporada de incêndios e aumentando sua duração.
A WWA afirma que os avanços na modelagem climática e o melhor acesso aos dados meteorológicos aumentaram a confiabilidade e a precisão dos estudos para avaliar a probabilidade de eventos climáticos extremos com ou sem mudanças climáticas.
Mudanças não influíram nas cheias italianas
A crise climática nem sempre pode ser diretamente responsabilizada por fenômenos meteorológicos extremos. Em maio de 2023, na região de Emília-Romagna, no norte de Itália, três tempestades provocaram deslizamentos de terra generalizados e inundações consideradas as piores em um século.
Mas embora a subida das águas se alinhe com a maior incidência, em nível mundial, de condições meteorológicas extremas provocadas pelo clima, os pesquisadores concluíram ter-se tratado de um evento isolado.
Depois de analisar os registros de precipitação na Emília-Romagna, datando desde 1960, cientistas, incluindo Friederike Otto, climatologista do Imperial College London e cofundadora da WWA, concluíram que as chuvas da primavera na região não estão se tornando nem mais nem menos intensas com as mudanças climáticas.
Ou seja: esse período específico de chuva de 21 dias - único num período de 200 anos e com apenas 0,5% de probabilidade de acontecer anualmente - poderia ter ocorrido com ou sem mudanças climáticas.
As inundações foram causadas por condições climáticas únicas e incomuns, "impulsionadas por uma sequência sem precedentes de três sistemas de baixa pressão no Mediterrâneo central", explicou o autor do estudo Davide Faranda, pesquisador do Instituto Pierre-Simon Laplace.
Inundações na Líbia e Grécia
Depois da tempestade Daniel ter desencadeado inundações que causaram o rompimento de duas barragens e mataram milhares na Líbia no início de setembro, um estudo da WWA descobriu que o aquecimento planetário de causas humanas aumentou em até 50 vezes a probabilidade de chuvas torrenciais. As enormes inundações no centro da Grécia provocadas pela mesma tempestade eram até 10 vezes mais prováveis.
Após um verão de ondas de calor e incêndios florestais recordes com "uma impressão digital muito clara das mudanças climáticas, quantificar a contribuição do aquecimento global para estas inundações revelou-se mais desafiador", ressalta Otto.
Para descobrir se o aumento da temperatura provocara chuvas mais intensas na região, os cientistas compararam os dados meteorológicos do clima anterior à década de 1880 com o clima atual,1,2ºC mais quente.
O relatório registra que a análise inclui "grandes incertezas matemáticas", uma vez que os padrões climáticos cobriam áreas relativamente pequenas e "a maioria dos modelos climáticos não representa bem as chuvas nessas pequenas escalas".
No entanto, "os estudos projetam chuvas mais intensas na região à medida que as temperaturas sobem", e os dados da estação meteorológica local na Grécia, por exemplo, mostram uma tendência para chuvas mais intensas. Uma atmosfera mais quente retém mais umidade, então, com apenas 1,2ºC de aquecimento "esperaríamos um aumento de 10%" da intensidade das chuvas, exemplifica Otto.
Ondas de calor recorde em 2023
A conexão entre temperaturas extremas e aquecimento global costuma ser muito mais clara do que no caso das chuvas. A WWA publicou um estudo mostrando que o calor extremo em julho de 2023 em regiões dos EUA, do México e no sul da Europa "teria sido virtualmente impossível de ocorrer se os humanos não tivessem aquecido o planeta com a queima de combustíveis fósseis".
No mês em questão, mais de 6,5 bilhões de indivíduos - ou cerca de 80% da população mundial - foram expostos a um ou mais dias de calor pelo menos três vezes mais prováveis de ocorrer por causa das mudanças climáticas, de acordo com a análise de atribuição da Climate Central, um think tank climático com sede nos EUA.
A análise avaliou 4.700 cidades em 200 países, tendo descoberto que os residentes de 15 grandes cidades com populações acima de 6 milhões foram expostos a temperaturas médias mensais elevadas tornadas mais prováveis pelo aquecimento global. Entre elas, estão Cidade do México, Cairo, Calcutá, Lagos, Hong Kong, Miami e Cartum.
"As mudanças climáticas causadas pelos humanos influenciaram as temperaturas de julho para a grande maioria da humanidade", disse Andrew Pershing, vice-presidente de ciência da Climate Central. "Em todo o planeta, o ser humano médio esteve exposto a 11 dias em que a poluição por carbono tornou a alta da temperatura local pelo menos três vezes mais provável. Praticamente nenhum lugar da Terra escapou à influência das mudanças climáticas."