Mineração em alto-mar: como extração de matéria-prima de carros elétricos virou polêmica mundial
Prática pode impactar negativamente a vida marinha e preocupa especialistas
Hoje considerado quase uma extensão do corpo humano, o smartphone só existe graças a minerais como o níquel, material presente também em alternativas sustentáveis como os paineis solares e os tão falados carros elétricos. Além da presença em objetos essenciais do cotidiano, os inorgânicos estão no epicentro de uma corrida ambiciosa: a mineração em alto-mar. A discussão sobre a prática polêmica vem esquentando nos últimos anos e ganhou até uma protagonista brasileira no mês passado.
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Isso porque a oceanógrafa carioca Leticia Carvalho foi eleita a nova secretária-geral da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA) em agosto. O organismo da Organização das Nações Unidas (ONU) sediado na Jamaica congrega os países signatários da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e administra a exploração dos recursos minerais em águas internacionais.
Escolhida para a função por 79 votos a 34, a brasileira se tornou a primeira mulher, cientista e latino-americana a ocupar o cargo, conforme destacou o Itamaraty em nota.
"A oceanógrafa construiu sólida carreira profissional, acumulando 26 anos de experiência em cargos executivos na administração pública brasileira e em organismos multilaterais", complementou o comunicado.
Mesmo com os louros que o feito histórico traz, Letícia tem pela frente uma discussão cada vez mais calorosa sobre a mineração em alto-mar. A atividade visa a extração de minerais como o cobalto, zinco e o níquel, que ficam no fundo dos oceanos. E é esse o perigo apontado por grandes órgãos ambientais, que consideram um atentado à vida marinha.
O Terra conversou com a professora de recursos marinhos não renováveis Tereza Araújo, do departamento de oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), para entender o que é a mineração em águas profundas e quais o benefícios e os riscos desta medida controversa.
Como ocorre a mineração em alto-mar?
No século XVI, a história de que existia uma cidade coberta de ouro nas Américas atiçou os conquistadores espanhóis na busca pelas terras místicas de El Dorado. Mais de 500 anos depois, não soa tão exagerado assim dizer que as profundezas oceânicas estão se transformando em um novo eldorado tecnológico.
Isso porque a mineração em águas profundas se tornou uma alternativa para a extração de elementos essenciais para aparatos tecnológicos, inclusive na chamada "tecnologia verde", como na crescente indústria de carros elétricos.
Longe da atmosfera de lenda envolta na história da cidade de ouro, a "corrida" pela prática em alto-mar é cada vez mais real. Governos e empresas tentam regulamentar a atividade, enquanto ambientalistas alertam para os riscos na vida marinha.
Na operação, alguns dos principais minerais extraídos do fundo do mar são o cobalto, zinco, níquel, cobre e titânio. Esses elementos estão presentes nos nódulos polimetálicos, as pequenas rochas que ficam no fundo do oceano em profundidades de até 6 km.
"Eles são muito valiosos, pois algumas nações não têm os mesmos recursos disponíveis em seus territórios, além de serem essenciais para alimentar a tecnologia moderna", explica Tereza. "Esses minerais são usados, por exemplo, na indústria aeroespacial, na indústria química e de alta tecnologia, como células solares fotovoltaicas, supercondutores, sistemas avançados a laser e instrumentos para corte".
Para conseguir coletá-los, é preciso que um veículo de mineração arraste um trenó por uma parte do solo oceânico e sugue as rochas por um tubo, até a superfície. Os sedimentos, então, são separados dos nódulos polimetálicos e devolvidos ao oceano, criando a chamada pluma de descarga.
Apesar de estar no epicentro de uma discussão ambiental atual, esse processo não é recente. Já na década de 1960 se explorava a mineração em águas profundas. No entanto, o método não chegou a ser testado em grande escala e as atividades foram paralisadas na década de 1990 pela indústria mineradora.
A ISA foi criada nesse contexto, em 1982, após a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM). O motivo foi uma tensão envolvendo a disputa de minerais encontrados em alto-mar.
"Nos anos 1950 e 1960, pós-Segunda Guerra Mundial, alguns países mais desenvolvidos começaram a explotar esses recursos, sem ainda ter sido estabelecido as normas e critérios para tal atividade. Isso gerou muitos conflitos, quase levando a uma terceira guerra mundial, devido à explotação dos nódulos de manganês no Oceano Pacífico", explica a professora.
Quais são os riscos da prática?
Apesar de ser vista como uma alternativa à mineração terresre, a extração de minerais em águas profundas pode ser perigosa para o ecossistema marinho. A movimentação e as grandes instalações em espaços de plena vida marinha podem até mesmo acabar com a fauna local.
Tereza Araújo destaca que toda atividade de mineração, seja em terra, água rasa ou alto-mar, tem risco ambiental. No entanto, a professora faz questão de listar possíveis prejuízos na vida marinha: a destruição das formas naturais do fundo do mar, a destruição da vida marinha que habita o local (a micro e a macrofauna), a compactação do fundo do mar e a criação de plumas de sedimentos que perturbam a toda a vida marinha.
"Isso certamente causaria um distúrbio na diversidade ecológica da região, com impactos ainda não totalmente mensuráveis", alerta a professora da UFPE.
Em contrapartida, ela acrescenta que esforços para tentar viabilizar a prática de maneira sustentável estão sendo feitos há muitos anos. De acordo com Tereza, protótipos de máquinas que fariam a coleta dos minerais foram desenvolvidos, mas ainda não há nada que assegure uma extração de menos impacto para os oceanos.
"Nos anos 1990, quando eu estava cursando meu doutorado na Universidade de Kiel, na Alemanha, já se discutia a melhor forma para explotar esses recursos. E eram tantos efeitos contrários, que parecia tudo muito impossível àquela época. Atualmente houve avanços no sentido de diminuir esses impactos, porém acabar é impossível. Toda atividade de mineração tem impacto", ressalta.
Tema é polêmico e acompanha pauta ambiental
Para acompanhar as controvérsias em torno do tema, é preciso entender como fuciona a jurisdição sobre o mar. O mais recente documento é de junho do ano passado, quando a ONU adotou o Tratado do Alto-Mar, que define um marco legal para estender as faixas de proteção ambiental a águas internacionais.
Conforme a ONU, os países têm jurisdição sobre as águas que se estendem por 200 milhas náuticas, cerca de 370 km da costa.
"A partir dali, segue o alto-mar, com cerca de dois terços do oceano global, ou mais de 70% da superfície terreste", explica o documento.
A decisão segue o acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS) de 1982, quando foi definido que os recursos minerais no fundo do mar, fora do perímetro de jurisdição de algum país, são considerados "patrimônio comum da humanidade". Cabe, então, à ISA a administração da exploração dos recursos minerais nos oceanos.
O 'estica e puxa' dos países e empresas com um conflito de interesses em relação ao tema parte daí. Em 2021, Nauru, uma pequena ilha no Oceano Pacífico, solicitou à ISA a aceleração da regulamentação da atividade. O Estado de 12 mil habitantes tem uma parceria com uma empresa de mineração chamada DeepGreen.
No pedido, o governo local apontou uma cláusula na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar que permite que países ativem um "gatilho de dois anos" se considerarem as negociações muito lentas, o que gerou uma emergência no progresso da pauta para a organização.
Neste ano, a Noruega também entrou na causa e se tornou o primeiro país do mundo a avançar com a mineração em alto-mar em escala comercial. Através de um projeto de lei aprovado no país, as buscas submarinas por minerais foram permitidas em águas norueguesas. Agora, o país pressiona pela liberação de um acordo sobre a mineração em águas internacionais.
O avanço preocupa quase 200 países, como o Canadá, Nova Zelândia, Suíça, Alemanha e Chile, que pediram um adiamento preventivo da prática à ISA em 2023. Em carta divulgada pelo Itamaraty no mesmo período, o governo brasileiro se juntou às outras nações e solicitou uma moratória de, no mínimo, 10 anos para a mineração em águas profundas.
"O Brasil acredita que o atual nível de conhecimento e a melhor ciência disponível são insuficientes para aprovar quaisquer projetos de mineração no fundo do mar em áreas além jurisdição nacional. Os Estados Partes devem, portanto, abster-se de patrocinar quaisquer planos de trabalho para exploração", diz comunicado do Itamaraty.
De acordo com Tereza, é justamente pela falta de informações sobre possíveis impactos e pelo conflito relacionado à jurisdição que o tema se tornou polêmico.
"É uma atividade nova, desafiadora e ainda não está estabelecida, principalmente devido ao seu caráter desconhecido. Afinal, conhecemos muito pouco das áreas marinhas, principalmente àquelas em alto-mar", argumenta.
Para a professora, que acompanha a discussão há anos, as controvérsias e tensões fazem parte da complexidade do tema. No entanto, sua perspectiva a longo prazo é otimista.
"Acredito que com o avanço das pesquisas, da definição da forma da explotação, e da conscientização, a prática da mineração possa vir a ser estabelecida de forma sustentável. Até se alcançar esse patamar, vai demorar um certo tempo", afirma.