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O fogo está no quintal: produtores rurais relatam desespero em meio às queimadas em Goiás

Em um cenário de incêndios sem controle, o Cerrado goiano vive tragédia ambiental que afeta a todos

19 set 2024 - 05h01
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Especialista aponta que metade do Cerrado já foi perdido
Especialista aponta que metade do Cerrado já foi perdido
Foto: Mais Goiás

"Tinha fogo até dentro do quintal". A frase de Bento Batista Goulart, 48, produtor rural em Caiapônia, no sul de Goiás, revela o impacto devastador das queimadas que se alastram pelo Cerrado, atingindo terras, casas e sonhos. Bento não viu apenas o fogo destruir as cercas e pastagens de sua fazenda; ele testemunhou o desespero de vizinhos que correram para salvar o que podiam, enquanto o fogo consumia plantações e equipamentos.

"Queimou grade, cerca, foram vários incêndios aqui. Uma vaca ficou com as patas queimadas, outra perdeu o peito e vai precisar ser abatida", relata o produtor rural, que possui uma terra de 16 km² e viu a metade disso virar cinza.

O prejuízo, segundo ele, já ultrapassa os R$ 15 mil, e as dificuldades estão apenas começando.

"Com essa seca, mexer com leite já é complicado. Agora, com a palhada queimada, vai ser mais difícil ainda. Não sei até quando a gente vai aguentar", lamenta.

A intensidade e os danos das queimadas ficam ainda mais claros ao ouvir histórias como a de Gilmar José de Oliveira, de 55 anos, produtor rural que vive no assentamento Oziel, o maior de Goiás, com 573 famílias. As palavras de Gilmar revelam o caos que tomou conta do oeste goiano.

Produtor rural mostra propriedade destruída pelo fogo em cidade de Goiás:

"Eu tenho minhas dúvidas. O fogo começou na segunda-feira por volta das 9h da manhã, com alguns focos, como se tivesse gente colocando. Não tenho essa certeza, mas foi muito rápido. O vento espalhou o fogo de uma forma assustadora", conta ele, que há 22 anos mora no local, junto com a esposa, Leila Moreira.

O casal viveu momentos de pânico quando as chamas avançaram sobre as terras do assentamento.

"Não tinha para onde ir, a fumaça foi muito grossa, não dava para saber nem onde o fogo estava. A gente ficou com muito medo até de sair do lugar em que a gente estava, e o único lugar que pensamos foi correr para o córrego", relembra. "A gente ficou sem conseguir respirar direito".

As chamas consumiram boa parte de suas terras, queimando no mínimo cinco alqueires e destruindo pastagens essenciais para seu rebanho de gado de corte.

"Acabou com o meu capim tudo", lamenta Gilmar, que agora se preocupa em como alimentar mais de 50 cabeças de gado, sem ter para onde levá-las. "Vai precisar de feno, e eu creio que não gasta menos que cinco ou seis bolas por mês por uns três meses. Cada bola custa R$ 80, e ainda tem que ir lá buscar". 

Enquanto contava sua história, Gilmar consertava a carreta quebrada, que havia utilizado na tentativa de salvar parte do feno. Ao mesmo tempo, ele tentava lidar com o trauma. "O prejuízo mental é gigante, nunca passamos por algo assim, nessa dimensão", lamenta.

O fogo deixou feridas mais profundas na vida do casal, por ter se alastrado em meio aos planos de casamento, agendado para sexta-feira passada, 13 de setembro. Em meio à destruição, Gilmar e Leila trocaram votos inalando cheiro de fumaça no calor. "Já tinha marcado tudo, pago tudo. Não teve como adiar", disse, pesaroso.

Goiás em chamas

Goiás tem sido um dos estados mais afetados pelos incêndios, consequência direta de um Cerrado cada vez mais fragilizado. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o bioma já concentra mais de 50% das queimadas registradas no Brasil, e os números em setembro são alarmantes: até o dia 12, foram contabilizados 618 focos de incêndio apenas nas vegetações goianas, enquanto em todo o mês de agosto foram registrados 975.

Em várias partes do Cerrado, o fogo se espalha sem controle, atingindo áreas urbanas e rurais, destruindo propriedades e devastando a vegetação nativa. Manuel Eduardo Ferreira, vice-coordenador do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig), da Universidade Federal de Goiás (UFG), explica que o Cerrado, já desmatado em cerca de 50%, está cada vez mais suscetível às queimadas.

"O fogo tem sido usado historicamente como ferramenta de manejo agrícola, mas, atualmente, vemos uma escalada preocupante. O aumento das queimadas está diretamente ligado à pressão pela expansão agropecuária e ao desmatamento. Com menos cobertura vegetal, o bioma perde sua capacidade natural de resistir ao fogo", analisa Ferreira.

A situação é grave. Dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) indicam que 88 milhões de hectares do Cerrado foram destruídos pelo fogo entre 1985 e 2023, uma área equivalente a 43% de todo o bioma, superior ao território de países como Chile e França. A cada ano, segundo Ferreira, perde-se uma área equivalente ao tamanho do Distrito Federal

"Estamos falando de um milhão de campos de futebol por ano", compara.

O panorama se agrava com a previsão de chuvas irregulares para os próximos meses. A chegada das chuvas, geralmente esperada para aliviar a seca e apagar os incêndios naturais, não é mais garantia. O clima está cada vez mais imprevisível.

Questão de saúde pública

Além do impacto na vegetação e na produção agrícola, as queimadas representam um sério risco para a saúde pública. A fumaça espessa que encobre cidades inteiras, como Anápolis, Jataí e até Goiânia, tem levado a um aumento alarmante nos casos de doenças respiratórias.

A estudante de medicina Maria Eduarda Assis, que vive em Anápolis, descreve uma situação preocupante. "O ar está insuportável, estamos atendendo muitos pacientes com crises de asma, rinite e tosse. As crianças e idosos são os mais afetados, e as internações dispararam", conta.

Na última semana de agosto, Goiás, composto por 70% de Cerrado, apresentou um aumento de 30,4% nos casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), atingindo 120 casos. Na primeira semana de setembro, o número chegou a 101.

Consequências iminentes

"Chegamos a esse ponto da qualidade do ar, que esse ano foi extremamente grave. Aí a sociedade se lembra desse problema causado pelo fogo", pontuou Manuel Eduardo Ferreira, que ressalta uma série de consequências já em processo. 

"O fogo é utilizado para abrir novas áreas e acelerar o processo de conversão do cerrado em pastagens. Contudo, essa prática destrói o solo, transforma a fisionomia da área e afeta a disponibilidade hídrica", detalha.

A prática alimenta um cenário em que a vegetação remanescente se fragmenta e se torna ainda mais suscetível às queimadas. Segundo ele, se a situação persistir, o Cerrado enfrentará um déficit hídrico severo, com graves consequências econômicas, sociais e ambientais

"Isso afeta o Brasil todo. Estamos falando de disponibilidade de alimento. Os produtores vão se endividar fortemente e já estamos tendo quebra de safra", antecipa.

A solução, de acordo com especialistas, passa por uma mudança radical na forma como o fogo é tratado no Cerrado, com maior conscientização dos perigos e fiscalização. Entretanto, com a crescente pressão do agronegócio e a falta de uma resposta coordenada entre governo, produtores e ambientalistas, o Cerrado continua queimando.

Para pessoas como Bento, Gilmar e milhares de outros que dependem da terra, o futuro é incerto.

"A gente luta todo dia, mas tem hora que parece que não dá mais", desabafa Bento.

Fonte: Redação Terra
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