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"Pânico, boca seca, medo": ecoansiedade é realidade entre quem passa por eventos climáticos

Cheias no Rio Grande do Sul e enxurrada em Petrópolis (RJ) são exemplos de momentos traumáticos pra quem viveu em regiões afetadas

22 jul 2024 - 05h00
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Alagamento no Rio Grande do Sul, em 2024
Alagamento no Rio Grande do Sul, em 2024
Foto: Agência Brasil | Divulgação

Em maio, o Rio Grande do Sul viveu um período de chuvas e enchentes recordes, que trouxeram prejuízos diversos à população gaúcha. Muitas pessoas perderam parentes, animais e suas casas. Apesar da grande mobilização, dos brasileiros e do governo, para ajudar o Estado a se reerguer, existe um dano que ainda não pode ser mensurado: o mental. As angústias e medos com os quais as pessoas estão convivendo já tem até nome: ecoansiedade.

Ao Terra, Michelle Leite, mestre em psicologia e docente da Universidade Tiradentes, explica que a ecoansiedade se trata de um quadro de ansiedade gerado pela forma que as pessoas se sentem após passar por um evento climático extremo. Os sintomas podem variar de paciente para paciente, mas, de forma geral, se originam do medo desproporcional de passar mais uma vez por algo semelhante.

"É uma forma de ansiedade caracterizada pela presença de medo de uma possível catástrofe ambiental [...] esses sintomas podem se caracterizar pela preocupação desproporcional, ansiedade, episódios de pânico ou também se apresentar de forma física, como taquicardia, sudorese, sensação de falta de ar, tremores, entre outros sinais", lista.

"A água entrava pelas paredes, não só pelos ralos e janela"

Naira Santa Rita, de 27 anos, professora da PUC-MG e diretora executiva do Instituto DuClima, conhece bem o que é a ecoansiedade. Em 15 de fevereiro de 2022, ela morava em Petrópolis (RJ) e enfrentou a enxurrada que arrasou carros, pessoas e casas na cidade.

Na ocasião, choveu 259,8 milímetros em seis horas, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia. Foi a maior quantidade de chuva registrada desde 1952, quando choveu 168,2 milímetros em 24 horas.

Naquela terça-feira, Naira tinha que levar o filho a uma consulta, mas optou por cancelar. De acordo com ela, foi a sua maior sorte, pois no centro da cidade, onde seria realizado o atendimento, foi onde houve mais relatos de pessoas desaparecidas após serem arrastadas pela correnteza. Moradora do primeiro andar de um edifício, ela viu a água subir e entrar em sua casa. 

"A água entrava pelas paredes, não só pelos ralos, pela janela, entrava pelas paredes. Eu nunca tinha visto algo daquela natureza. E foi questão de tempo para poder se abrigar no segundo andar, na casa de um vizinho, e ficamos lá aguardando a chuva passar", relata.

Enquanto Naira se refugiava na casa do vizinho, deslizamentos eram registrados em áreas de risco. No dia seguinte, quando a água baixou, ela voltou para casa e começou a avaliar as perdas. Após análise, as autoridades informaram que a água danificou a estrutura do prédio, tornando-o inviável para moradia. Todos tiveram que deixar o local. 

Deslizamento em Petrópolis, em 2022
Deslizamento em Petrópolis, em 2022
Foto: Agência Brasil | Divulgação

A caminho do abrigo, nas ruas, o cenário que Naira descreve é algo que só se vê em guerras.

"O condomínio estava devastado. A gente começou a receber informações no celular. O número de mortos ultrapassava 200 pessoas. Centenas desaparecidas. Centenas de milhares também desabrigadas, desalojadas, como a minha família também passou a ser. E aí, depois daquilo, foi uma loucura. Um corre-corre para sair do epicentro do desastre, porque tudo ainda estava muito latente em relação ao contato com a água suja", lembra.

Contando com ajuda de amigos e familiares, Naira e o filho se mudaram para Juiz de Fora (MG). Foi lá, após restabelecer sua vida, que notou os sintomas da ecoansiedade. 

"Eu estava em casa com a babá do meu filho [ela também é sobrevivente das chuvas de Petrópolis] quando começou a chover. Nisso, todo mundo ficou desesperado. A gente apresentava sintomas de ansiedade, de crise de pânico, boca seca, coração acelerado, medo. Lembro que na hora eu só pensava: 'Minha mãe pode estar em uma área de risco agora e acontecer algo com ela. Pode estar em meio urbano e também acontecer…'. Afinal, em Petrópolis, ônibus foram arrastados pela correnteza. A partir daí busquei ajuda porque vi que foi um gatilho para mim, para a babá e para meu filho. Conversando com minha mãe e parentes que passaram pelo mesmo, notei que o sentimento é igual para eles também".

Todo mundo é refugiado climático, alguns só não sabem

Apesar de a ecoansiedade ser uma terminologia relativamente nova, a crise climática é algo estudado há décadas. Para Naira, é impossível falar sobre o assunto sem recorte racial.

Ela cita estudos de Benjamin Franklin Chavez Jr, pesquisador e ativista ambiental, que evidenciam como a população pobre, negra e feminina é afetada de formas desproporcionais na crise climática. Não só são mais afetadas, por muitas vezes residirem em periferias e áreas consideradas de risco, como possuem também mais dificuldade para reconstruir a vida, visto que não dispõem de reservas financeiras.

Naira critica a negligência do Estado diante de estudos e previsões sobre os eventos climáticos. Ela cita o caso do Rio Grande do Sul, em que um estudo de 10 anos atrás já apontava os riscos da região afetada pelas cheias de maio. 

Em Petrópolis, também, ela cita um dado da Defesa Civil segundo o qual 30% da população está em área de alto risco.

"A matemática é simples: se eu não quero que as pessoas morram ou passem por traumas, eu retiro elas dali, eu realoco e não permito que outras moradias sejam erguidas", conclui. "A verdade é que todo mundo pode ser o próximo refugiado climático e não está sabendo. Eu mesma não morava em área de risco e fui afetada. Muita gente acha que o concreto é seguro, mas quando a água sobe, não é. E eu posso garantir".

"Acolhimento e validação são essenciais no caminho da cura"

A ecoansiedade é uma condição com que as pessoas talvez precisem conviver pelo resto da vida. Porém, não trabalhar esse sentimento de medo, segundo a psicóloga Michelle Leite, pode resultar numa vida ainda menos tranquila, devido ao estado de alerta frequente.

"As pessoas podem ter alterações na sua rotina de sono, com a presença de insônia, sono muito frágil, o despertar frequente… E também existem os componentes comportamentais nisso tudo, que são quando as pessoas começam a ter prejuízos no seu funcionamento pessoal, no trabalho, por exemplo, ou nas relações", exemplifica.

Conforme orienta a mestre em psicologia, o ideal é que a pessoa recorra à psicoterapia, conte com o acolhimento de profissional especializado, de sua rede de apoio, valide e trabalhe seus sentimentos de forma natural. Em casos mais graves, pode também ser necessário acompanhamento psiquiátrico.

Projeto de lei

Como a parcela da população que tem recursos guardados para reconstruir a vida e investir no psicológico é pequena, Naira Santa Rita e outros ativistas ambientais se reuniram para tentar combater a negligência política diante da emergência climática com os menos favorecidos. Eles fundaram o Instituto DuClima, sociedade civil que realiza pesquisas, disponibiliza cursos e conteúdos sobre assunto, além de vender palestras de letramento climático para organizações.

Uma das maiores conquistas do Instituto DuClima foi a participação da equipe na redação de um Projeto de Lei apresentado pela deputada federal Erika Hilton (PSOL). A ideia da proposta é auxiliar, financeira e psicologicamente, as pessoas afetadas por eventos climáticos extremos, pensando para além da ajuda imediata que, por exemplo, o Rio Grande do Sul, por exemplo, recebeu.

O PL inclui acompanhamento dessas pessoas ao longo dos meses, evitar a evasão escolas por falta de sala de aula ou recursos, indenizar de alguma forma pessoas que perderam seus entes queridos, prover ajuda de custo e realocar civis que perderam moradias, bancar assistência psicológica a interessados, entre outras possibilidades que podem amenizar o trauma.

Confira alguns destaques do PL

  • Disponibilização de ajuda emergencial e apoio contínuo às populações afetadas por eventos ambientais e climáticos;
  • Investimento em tecnologias de investigação para prevenir o deslocamento ambiental e climático através de medidas de adaptação e mitigação;
  • Implementação de estratégias intersetoriais para reconstruir as condições de vida das pessoas deslocadas climáticas e ambientais, com foco na habitação, educação, saúde e empregabilidade;
  • Realização de estudos sobre as populações mais vulneráveis aos deslocamentos climáticos para implementar ações de proteção abrangentes e estruturadas;
  • Abordar as desigualdades que afetam a visibilidade e o apoio às comunidades afetadas;
  • Estabelecer centros de proteção para pessoas deslocadas climáticas e ambientais.

O texto foi apresentado em assembleia em maio de 2024, mas artigos dedicados a recortes raciais e sociais geraram debates entre os parlamentares. Segundo Naira, eles afirmaram que isso apenas segregaria mais o Brasil. Em tramitação, o texto deve ser alterado e retornar a votação.

"A nossa meta é que esse ano seja aprovado. A gente tem feito uma frente com o Instituto DuClima e com diversos parceiros para que o projeto caminhe", disse a professora e especialista em crise climática.

A ansiedade para que o PL seja votado vai além de uma satisfação pessoal de Naira. Conforme relatório divulgado pelo Banco Mundial, estima-se que 216 milhões de pessoas poderão ser forçadas a migrar para outra região por causa de eventos climáticos extremos até 2050. Na América Latina, estão previstos 17 milhões. 

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Fonte: Redação Terra
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