Luta ambiental liderada por três mulheres no Sul conduz romance de escritora gaúcha
'Água Turva', romance de Morgana Kretzmann, mistura elementos da realidade e da ficção: "Não fala unicamente de crimes ambientais", diz
O thriller ambiental de Morgana Kretzmann Água Turva mistura elementos da realidade e da ficção para conduzir o leitor na luta ambiental liderada por três mulheres -- imperfeitas, contraditórias e fortes. Lançado pela Companhia das Letras, a obra é o segundo romance da escritora gaúcha radicada na capital paulista, vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura como melhor romance de estreia do ano por Ao Pó (2020), da editora Patuá.
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Água Turva gira em torno da construção de uma hidrelétrica que ameaça alagar parte do Parque Estadual do Turvo, reserva ambiental e último reduto da onça-pintada no Sul do Brasil, em um complexo jogo de interesses políticos, econômicos e sociais. A história é ambientada no fictício município gaúcho de Dourado. Lá, a guarda-florestal Chaya, sua prima Preta, que lidera um bando de caçadores e contrabandistas que vive do lado argentino da fronteira, e Olga, assessora parlamentar de um inescrupuloso político, terão de colocar as diferenças de lado para proteger o local onde cresceram.
O tema é atual. Afinal, os impactos do aquecimento global, por exemplo, já afetam comunidades em todo o mundo e obrigam a sociedade a pensar no meio ambiente como condição fundamental para a vida humana.
Em entrevista ao Terra, Morgana explica como foi o processo de criação da obra, suas experiências durante imersões no Parque Estadual do Turo e a identificação dos leitores com as personagens. Confira a entrevista a seguir!
Terra - Você estava em meio à finalização do seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Gestão Ambiental, pelo Instituto Federal de Santa Catarina, quando surgiram as primeiras ideias do seu novo romance, Água Turva. Como foi esse processo?
Morgana - Quando chegou a hora de fazer meu TCC, eu o fiz totalmente ligado à literatura e meio ambiente. Era um TCC que falava da importância didática e pedagógica da literatura para tratar questões ambientais, que são as mais urgentes hoje, como aquecimento global e os crimes ambientais. O livro [Água Turva] acaba indo para esse lado [dos crimes ambientais].
Eu tive a ideia de visitar o Parque do Turvo e, lá, tive a certeza de que era a geografia perfeita, a localização perfeita para criar uma história ficcional. Primeiro, me surgiu a geografia do parque, com aquele monte de soja [plantações nos arredores], a pesca e caça ilegal, o agrotóxico [usado nas plantações que beiram o parque e contrabandeado pelo Rio Uruguai]... E, depois, a história foi surgindo no decorrer da escrita e das pesquisas.
É um livro que se passa numa fronteira, então, ele não fala unicamente de crimes ambientais, fala também de crimes fronteiriços. Não é só a caça que é um problema nessa unidade de conservação. O tráfico de armas, de drogas, de soja - as embarcações também trazem toneladas de soja mais barata da Argentina para serem vendidas no Brasil -, toneladas de agrotóxico... São muitos os problemas.
Foram quatro anos, entre pesquisa e escrita, para desenvolver o livro. Neste período, você fez pelo menos cinco imersões no Parque do Turvo. Quais eram os objetivos dessas visitas e como elas se traduzem no livro?
Eu sou, antes de tudo, uma artista. Para mim, o escritor é um artista também e a arte a gente não domina. A boa arte é aquela que nos domina e tem vida própria. Pode parecer quase fantasioso falar isso, mas é muito real. Então, no decorrer dessas minhas idas ao Parque do Turvo, eu normalmente estava pesquisando, buscando o que estava [desenvolvendo] naquele momento da narrativa do livro. Quando eu estava atrás dos acampamentos [de caça] é porque eu queria muito conseguir entender como eles eram, não queria apenas ouvir [como eram]. Às vezes só ouvir não é o mesmo de estar no local. Acho que o livro tem muito dessa sensação também de realidade na narrativa por isso.
Em outros momentos, eu entrevistei pessoas que viviam ali ao redor, há muitos anos, para perguntar sobre as diferenças que viam na região nos últimos anos. Também conversei com os guardas florestais do parque, porque no início a Chaya seria uma funcionária do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] ou do ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade], mas depois de conhecer os guardas florestais, os guardas-parques, como eles se chamam, percebi que era muito mais sensacional criar uma personagem que tem o mesmo cargo que essas pessoas.
A precarização do trabalho dos guardas florestais do parque e o descaminho de vinho via Rio Uruguai, também surgem como elementos importantes da obra. Como surgiu esse material?
Logo no início do livro, eu menciono dois personagens que estão com coletes duvidosos, comprados na Argentina. Esses exemplos foram relatos reais de guardas florestais daquela época, de quando eu fiz a pesquisa, para mim. Alguns [relataram] comprar as suas próprias armas e coletes usados. Isso porque a Secretaria do Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do Sul não mandava verba o suficiente para eles poderem trabalhar. São 17 mil hectares de área… A penúltima vez que fui [ao Parque do Turvo], tinham três guardas florestais, agora eu acho que são sete ou oito.
Eu queria colocar essa precarização do trabalho e da pessoa que está ali para defender os animais e o meio ambiente. Até que ponto você tem que amar de verdade o que você tá fazendo, sem nenhum tipo de romantismo, para conseguir trabalhar com esse tipo de falta de recurso e de apoio? Eu também busquei entender como o vinho saía da Argentina e vinha para o Brasil em barcas improvisadas. Em uma das visitas ao parque, eu estava com o meu fiel irmão, meu irmão mais novo, Manuel Kretzmann. Ficamos em um quiosque bem no alto de um morro, onde você vê o Rio Uruguai e do outro lado a Argentina. Eu levantava da mesa, caminhava para dentro do mato e olhava [o rio], depois de um tempo comecei a ver os barcos.
É inacreditável, é cinematográfico demais, aquele barquinho a remo no meio do Rio Uruguai, que é super violento. As pessoas traziam caixas e mais caixas de vinho, [acompanhadas] das famílias que deixavam a Argentina para viver no Brasil, nos barcos. Vinham famílias inteiras, com pais, avós e crianças, cachorro no ombro, trouxa de roupas, alimentos… e os vinhos. Tudo isso foi muito importante para eu poder chegar na narrativa que cheguei.
Ainda existe o mito do escritor que escreve 'sob uma forte inspiração', como se o ato de escrever não demandasse esforço, tempo. Como foi o seu processo de escrita?
Durante um ano e meio, dois anos, eu acordava todos os dias às 7h da manhã para fazer coisas da casa. Já às 8h, 8h30, eu estava sentada, na frente do computador [escrevendo]. Eu trabalhava, parava para almoçar e depois trabalhava até a noite, às 18h30, 19h, todos os dias. Às vezes falam que o livro tem vida própria, que a personagem tem vida própria, mas isso acontece porque você leu muito, reescreveu 20 vezes e, de repente, a personagem diz 'é por aqui'. Mas há um processo árduo para chegar até este ponto.
Como tem sido a recepção do livro?
Olha, eu não sou hipócrita, não gosto desse papo hipócrita de que eu escrevo para mim. Eu escrevo para ser lida. Quero chegar nos leitores, quero que o livro chegue no interior profundo do Brasil e ainda há um desafio para [a divulgação] a literatura contemporânea brasileira. Nos últimos 14 anos, tivemos uma safra de grandes escritoras e escritores contemporâneos brasileiros fazendo livros sensacionais. A gente precisa furar essa bolha. Recebo retornos pela internet, fico muito feliz quando recebo retorno dos leitores. Acho que a coisa mais sensacional são os clubes de leitura, principalmente os de cidades pequenas. Eles se identificam muito com o livro, porque ele também se passa no interior do Brasil. Tem acontecido muito essa identificação das pessoas em relação às personagens. As três protagonistas não são maniqueístas, têm qualidades, defeitos e cometem muitos erros. E acho que isso faz com que as pessoas se identifiquem.
- Água Turva, de Morgana Kretzmann, foi lançado pela editora Companhia das Letras. O livro tem 272 pgs e custa R$ 79,70.
Parque Estadual do Turvo
- Onde fica? O Parque do Turvo fica no município de Derrubadas, no Rio Grande do Sul, junto ao rio Uruguai, na divisa com a província argentina de Misiones, ao oeste, e com estado de Santa Catarina ao norte.
- Qual o tamanho? Com 174,9 km de área total, a área de conservação é um pouco maior do que a cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte.
- Importância: Ele concentra um dos maiores fragmentos da Floresta Estacional Decidual, um tipo de vegetação do bioma Mata Atlântica do estado gaúcho e é considerado um refúgio fundamental para a preservação de animais em extinção, como: o puma e a harpia (ou gavião-real), além de ser a única morada da onça-pintada no estado. O Parque do Turvo também é a maior floresta preservada do Rio Grande do Sul.
- Curiosidade: Lá fica o Salto do Yucumã, maior queda d’água longitudinal do mundo com 1.800 metros de extensão e quedas d'água com até 12 metros de altura, seguindo o curso do Rio Uruguai na divisa entre o Brasil e a Argentina.