O que se sabe sobre o 'Dia do Fogo', momento-chave das queimadas na Amazônia
Investigadores apuram se produtores rurais de cidades do Pará se organizaram para botar fogo em áreas da maior floresta do mundo
O dia 10 de agosto poderá ser classificado como um momento-chave na história recente da Amazônia. Hoje, ele já é conhecido como o "Dia do Fogo", quando produtores rurais da região Norte do país teriam iniciado um movimento conjunto para incendiar áreas da maior floresta tropical do mundo.
Essa suspeita está sendo investigada pela Polícia Federal (PF) e pelo Ministério Público Federal (MPF). Nesta segunda-feira (26), a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, afirmou haver indícios de uma "ação orquestrada" para incendiar pontos da floresta.
De todo modo, os dados apontam que a partir de 10 de agosto houve um aumento substancial no número de focos de incêndio em diversas cidades da região Norte.
Mas o que se sabe sobre o "Dia do Fogo"?
A primeira notícia sobre ele foi publicada no dia 5 de agosto pelo jornal Folha do Progresso, da cidade paraense de Novo Progresso, a 1.194 quilômetros da capital do Estado, Belém.
A reportagem relatava uma conversa com uma liderança dos produtores rurais da cidade, sem identificá-lo. Ele prometia promover incêndios florestais no dia 10.
"(Os produtores) querem o dia 10 de agosto para chamar atenção das autoridades. (...) Na região, o avanço da produção acontece sem apoio do governo. 'Precisamos mostrar para o presidente (Jair Bolsonaro) que queremos trabalhar e o único jeito é derrubando. Para formar e limpar nossas pastagens é com fogo'", dizia o texto.
As queimadas aumentaram de fato no 'Dia do Fogo'?
No Pará, sim.
Dados de satélite colhidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e compilados pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Pará mostram que, a partir de 10 de agosto, houve um aumento significativo nas queimadas em áreas de floresta.
Esse crescimento ocorreu principalmente em reservas florestais das cidades de Novo Progresso, Altamira e São Félix do Xingu - todas cortadas pela rodovia BR-163.
No dia 10, Novo Progresso tinha 124 registros de focos de incêndio ativos, um aumento em 300% em relação ao dia anterior.
Altamira registrou 154 focos de queimadas entre os dias 6 e 8 de agosto. Nos três dias seguintes, de 9 a 11 de agosto, havia 431 pontos de fogo na cidade. Ou seja, alta de 179% em três dias.
São Félix do Xingu apresentou um aumento mais significativo: entre os dias 6 e 8 de agosto, o município registrou 67 focos. Nos três dias seguintes, foram 288 - aumento de 329% em três dias.
Nesta terça-feira (27), em reunião com o presidente Jair Bolsonaro, o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), afirmou que apenas na Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu, em São Félix, cerca de 3.000 hectares foram perdidos para o fogo nos últimos dias.
"É queimada de floresta para fazer pasto", disse Barbalho. "O sujeito vai lá, desmata, queima, faz um pasto e aluga a área para um produtor rural."
Como as autoridades reagiram às ameaças?
A publicação da primeira notícia sobre o "Dia do Fogo" chamou a atenção do Ministério Público Federal. E em 8/8, dois dias antes da ação prometida, a Procuradoria em Itaituba (PA) enviou um alerta "urgente" ao Ibama, pedindo reforço na fiscalização de áreas de preservação.
O Ibama não aumentou a fiscalização, segundo um documento do próprio instituto, e só respondeu ao MPF em 12 de agosto, dois dias depois do "Dia do Fogo".
"Devido a diversos ataques sofridos e à ausência do apoio da Polícia Militar do Pará, as ações de fiscalização no Estado estão prejudicadas por envolverem riscos relacionados à segurança das equipes de campo", escreveu Roberto Victor Lacava e Silva, gerente-executivo-substituto do Ibama, em documento enviado ao MPF.
Lacava afirmou no texto ter pedido reforço de segurança à Força Nacional, mas esse braço do Ministério da Justiça também não participou de ações de prevenção aos incêndios.
O Ibama também informou ter enviado uma viatura para ajudar na fiscalização, mas para outra cidade, Itaituba, a cerca de 400 quilômetros de Novo Progresso.
A reportagem apurou que agentes do Ibama relataram ameaças de morte na região de Novo Progresso nos últimos meses, aumentando a tensão entre grileiros e funcionários públicos. Procurado pela BBC News Brasil, o instituto não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Algum suspeito já foi identificado?
Os investigadores do MPF e da PF ainda não identificaram responsáveis por incendiar a mata, que podem ter se articulado em grupos de Whatsapp, principalmente no Pará.
Para o procurador Paulo de Tarso Moreira Oliveira, um dos membros da investigação do chamado "Dia do Fogo", será uma tarefa árdua individualizar a conduta de cada uma dos incendiários, tendo em vista a extensão dos territórios sob investigação.
Segundo ele, os dados apontam que houve uma ação coletiva e premeditada para colocar fogo na floresta. "É possível que centenas de pessoas tenham participado desse crime", disse à BBC News Brasil, falando por telefone de Itaituba.
Depois do anúncio do "Dia do Fogo" no jornal de Novo Progresso, a delegacia da cidade, que tem apenas um delegado e três agentes, ouviu três pessoas - uma delas foi o jornalista que escreveu a notícia - para tentar apurar se houve uma ação coletiva e organizada.
Outro dos ouvidos pela polícia foi Agamenon Meneses, presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Novo Progresso.
À BBC News Brasil Meneses negou que tenha existido um "Dia do Fogo" e que agricultores tenham sido responsáveis por ele. "É uma mentira. Um infeliz de um jornaleco, que não gosta da cidade e faz oposição ao governo, colocou essa notícia no ar, sem provas", disse.
"Não há um sequer comentário sobre isso, não conheço esse tipo de coisa. O que houve aqui foram queimadas como ocorrem todos os anos. A seca foi maior esse ano e ocorreram esses incêndios, natural. Mas isso é uma mentira que está causando um barulho medonho", afirmou, por telefone.
Segundo o procurador Paulo de Tarso Moreira Oliveira, a investigação em curso pode envolver também pessoas ligadas a desmatamento e fraudes fundiárias.
"Nós sabemos que existe uma pressão em torno das áreas que foram objeto do fogo. Há pessoas da região que há muito tempo exercem pressão nessas áreas (que foram queimadas). Essas pessoas são naturalmente alvos prioritários para nossa investigação", disse.
Áreas em disputa
Em Novo Progresso, o local que mais sofreu com queimadas neste mês é um alvo tradicional de grileiros, a Floresta Nacional de Jamanxim, reserva nacional de 1,3 milhão de hectares, criada em 2006. Entre 9 e 11 de agosto, foram registrados 136 focos de incêndio no local.
Segundo estudos da ONG Iamazon, a floresta de Jamanxim era a segunda mais desmatada da Amazônia em 2016.
Nos últimos anos, o MPF e a Polícia Federal realizaram uma série de operações para investigar desmatamentos e queimadas na região. Produtores e empresários locais já foram condenados a pagar multas milionárias por promover a destruição de milhares de hectares em Jamanxim e outros pontos da região.
Perto dessa floresta, também em Novo Progresso, existe o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa, que também sofreu com incêndios neste mês. A área é gerida pelo órgão federal Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e ocupada por pequenos agricultores. Recentemente, o PDS também vem sofrendo com desmatamento, invasão de grileiros e queimadas - o intuito é diminuir sua área para implantação de pastos.
Mesmo com esse histórico, Novo Progresso sequer tem um Corpo de Bombeiros - a brigada mais próxima fica em Itaituba, a mais ou menos seis horas de viagem de carro dali.
Impunidade como incentivo
Para o procurador Luís de Camões, a impunidade para crimes de grilagem e desmatamento serve de incentivo para que novos episódios como o "Dia do Fogo" continuem a ocorrer. A lei 9.985 prevê multa e prisão de dois a cinco anos para quem promover incêndio em mata ou floresta.
"Hoje, se você furtar um celular, talvez fique mais tempo preso do que se botar fogo em floresta", disse, por telefone.
"Há processos de desmatamento e queimadas de 2003 e 2004 e que estão sendo julgados só agora", explica Camões. "O tardar da resposta do Estado também é um incentivo para essas ações."