Natal sem brilho: a vida oito meses após as enchentes na periferia de uma das cidades mais afetadas do RS
São Leopoldo chegou a ter 20 mil pessoas desabrigadas após a enchente; recuperação não chegou ao ‘lado de lá’ do Rio dos Sinos
São quase 60 anos passando o Natal morando na mesma casa, na Vila Brás, no bairro Santos Dumont, em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Mas, esse ano, vai ser diferente. A casa não é mais a mesma. Tudo que estava dentro dela se perdeu após a enchente que deixou o bairro – assim como tantos outros de mais de 400 cidades do Estado – debaixo d’água. O que ficou foi a gratidão pela vida. A esperança por trabalho e saúde. E o medo.
A casa de Ângela Maria Rodrigues da Cruz, que completou 60 anos no último dia 17, já aguentou muitas cheias do Rio dos Sinos, que contorna sua região. Mas, dessa vez, a casa quase cedeu, envergou. E Ângela não vê graça em comemorar as festas assim. “Fim de ano a gente não vai ter. A gente gastou muito, perdeu muito. Então, sei lá… Não tem graça, não tem como”, contou a mulher, que não colocou enfeites natalinos pela casa. Nenhum brilho, nenhuma decoração.
Agora, quando chove, as goteiras da casa de madeira fazem com que a água também molhe dentro. E quando o temporal aperta, Ângela é tomada pelas memórias, que seguem vivas.
“Quando é dia de chuva eu não durmo. A casa chacoalha toda. Não consigo dormir. Eu tenho medo de um vento desabar a casa e eu tá ferrada, dormindo, no sono. Aí quando dá vento muito forte, chuva muito forte, eu vou pra minha mãe. Fico ali, né. Até durmo com ela na cama”, disse ao Terra.
Quando a água subiu, nos primeiros dias de maio, ela não queria sair de casa. Nas outras enchentes, nunca foi preciso. “A gente não esperava, daí ficou eu e meu irmão. A gente tirou a minha mãe, a minha irmã. Eu tinha esperança, né, que ia abaixar a água”, relembra. Eles só deixaram a casa de madrugada, no escuro, com a água no joelho.
No fim, ela ficou com a irmã abrigada em um mercado da região e seus familiares se dividiram entre casas de conhecidos. “A gente até tentou ir para um abrigo. Mas era muita gente, muita confusão. Em uns teve até briga. A gente tava com um menor, neto da minha irmã. Então achamos melhor ficar ali, a gente não se incomodava”. Elas ficaram quase um mês no pátio do mercado, em uma barraca que receberam de doação, antes de voltarem para o que restou de suas casas.
“A situação está muito cruel. Não tenho muita opção. Não tenho onde ficar, por isso estou dentro da minha casa aqui”.
São Leopoldo foi a terceira cidade com mais desabrigados na primeira contagem registrada pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Segundo dados obtidos pelo Terra, no dia 12 de maio, nas primeiras semanas após o início da crise socioambiental, eram 61 abrigos com 12.003 pessoas na cidade.
Os outros municípios com números mais expressivos foram Canoas e Porto Alegre, que são próximos de São Leopoldo e interligados pela BR-116. Na mesma data, também de acordo com dados do Estado, em Canoas, eram 79 abrigos com 21.244 pessoas, e, em Porto Alegre, haviam 143 abrigos com 14.113 pessoas.
No total, se formaram 736 abrigos com 78.724 pessoas no Estado. E ainda há cerca de 1.200 pessoas que devem passar o fim de ano distribuídas em 27 abrigos de 17 cidades do Rio Grande do Sul, segundo última atualização do Estado, referente ao dia 18 de dezembro.
Em São Leopoldo, o último abrigo fechou no dia 2 desse mês, com 15 pessoas no local. A prefeitura explicou à reportagem que foi identificado que esse grupo de pessoas vivia em situação de rua antes da enchente. Por isso, elas foram "encaminhadas para a República para a População em Situação de Rua do município, encerrando as atividades do alojamento".
Ao todo, formam mais de 20 mil pessoas em cerca de 130 abrigos pela cidade, em contagem da prefeitura. Pessoas que, de forma ou de outra, voltaram para a realidade que viviam. A prefeitura conta que foram solicitados 5 mil laudos de vistorias de endereços e, nisso, 2.349 casas foram dadas como "completamente danificadas". São pessoas que, assim como Ângela, tem casa, mas, pelas condições que os imóveis ficaram após a enchente, seguem na busca de restabelecerem seus lares.
Sem opção
Ângela trabalha no ramo de auxiliar de limpeza. Quando ficou rodeada de água, também perdeu o emprego. Não conseguia chegar até o trabalho. Ela está tentando se recolocar, mas ainda segue parada, como conta. Nessa situação, a escolha é sair da casa e pagar um aluguel ou passar fome.
Para auxiliar quem não tem onde ficar nem para onde ir, o Estado do Rio Grande do Sul está pagando cinco lotes de Aluguel Social, ou Estadia Solidária, a 8.345 famílias inscritas no Cadastro Único (CadÚnico), em 52 cidades. O repasse é de R$ 400 por seis meses, totalizando R$ 2,4 mil.
No CadÚnico, são 1.612.761 famílias inscritas pelo Estado e, dessas, segundo o Mapa Único Plano Rio Grande (MupRS), 209.713 foram atingidas pela enchente.
São Leopoldo teve 1.641 famílias contempladas no quinto lote do programa, que saiu apenas em 23 de outubro, seis meses após as enchentes, e que ainda está com a primeira parcela para cair.
Foi um dos municípios que recebeu mais verba para esse fim, ficando atrás de Canoas – que teve 1.651 famílias beneficiadas no primeiro lote, em 27 de junho – e Porto Alegre – que foi listado no terceiro lote, em 16 de julho, com 2.980 famílias.
Além disso, por parte da prefeitura, foram disponibilizados 300 alugueis sociais para famílias em abrigos em junho e mais 500 benefícios em agosto, para famílias atingidas que se inscreveram pelo site municipal -- e foram 2.849 inscrições até o prazo, 10 de agosto.
Ângela conta que tentou receber o auxílio. Mas, em nenhuma das frentes, foi contemplada. Ela foi na prefeitura há cerca de um mês -- já depois do prazo comunicado pela prefeitura, tecnicamente -- e que os responsáveis ficaram de entrar em contato com ela para marcar o dia de fazer a vistoria em sua casa. Ela não teve retorno e diz estar esperando até hoje, tanto pela vistoria, quanto por um possível benefício.
Sem o laudo definitivo da casa, que indica que a moradia não está com condições para ser habitada, Ângela fica de fora da contagem das 2.349 famílias que já obtiveram o documento. Essas famílias, segundo a prefeitura, serão contempladas pelo Governo Federal, em parceria com o município, para saírem dessa situação. São três frentes de ação: auxílio na compra de um novo imóvel, por meio de compra assistida via agência da Caixa; construção de mais de 1400 casas via recursos da Caixa e do Ministério das Cidades; ou, então, ajuda para a construção de uma nova casa em um terreno da família na cidade.
Até o momento, Ângela está de fora da lista. O que ela ganhou foi o apoio financeiro de R$ 5,1 mil, recebido por cada família do Estado por meio de medida provisória do Governo Federal. Com ajuda de doações e familiares, ela tem seguido.
Mais ‘do lado de lá’
O município de São Leopoldo fica na região Metropolitana de Porto Alegre. É atravessado e contornado pelo Rio dos Sinos. Em maio desse ano, a combinação entre chuvas intensas, desligamento de casas de bombas e o transbordo do dique de contenção das águas do rio, que fica na divisa da cidade com Novo Hamburgo, afetou diversos pontos da cidade. No dia 3 de maio, o rio ultrapassou a marca de 8,17 metros. “Um dos piores dias da história nos 200 anos da cidade”, chegou a dizer o prefeito Ary Vanazzi (PT), em apelo publicado nas redes sociais para que as pessoas deixassem suas casas.
De um lado do rio, para o Centro, obras dão “uma cara nova” à região. A retomada, porém, tem sido mais lenta do ‘lado de lá’ do Rio dos Sinos, onde ficam regiões periféricas como a do bairro Santos Dumont. Basta adentrar poucas quadras para encontrar uma realidade que parece estar mais próxima daquele mês de maio. Segundo relatos de moradores ouvidos pelo Terra, por lá, ainda há muito lixo pelas ruas, casas comprometidas e um cenário de reconstrução feita pouco a pouco.
A casa de Ângela fica nessas redondezas. E, bem próximo dela, também mora Marilda Matheus, de 59 anos, que se mudou para sua casa quando tinha 8 anos de idade. A casa foi de seu avô, de seus pais e, agora, é sua. Muita gente deixou a região, mas ela, apesar dos pesares, diz não se ver longe de lá.
“Eu cresci aqui. Meu filho nasceu aqui. Eu sei que a gente corre risco de ter outra enchente, mas não tem como ir embora. Minha história tá toda aqui. Vou começar do zero de novo nessa idade.. não, né? Vou continuar a minha raiz”, conta.
Na redondeza, a relação com as enchentes perdura há anos. Ela relembra que, quando era criança, costumavam colocar uma varetinha no meio da rua. Quando a água passava da varetinha, sabiam que era a hora de sair. Mas a coisa foi se intensificando. No ano passado, por exemplo, ela conta que a água chegou a entrar no pátio da casa duas vezes.
“Quando começa a chover muito, o cérebro começa a trabalhar. Aqui na rua é assim. Todo mundo já começa a levantar os móveis. Eu não durmo. Passo o tempo todo espiando a janela, já é automático. Tô toda hora espiando pra ver se a água não tá vindo”. No dia em que conversou com a reportagem, Marilda pontuou que a previsão era de chuva para o dia seguinte: “Ninguém vai dormir. Garanto que o desespero vai bater”.
A enchente deste ano mudou a vida de Marilda – mesmo que dessa vez ela não tenha vivido a agonia de sentir, na pele, a água subir. Isso porque, quando sua casa ficou embaixo d’água, Marilda estava na Bahia. De longe, acompanhou tudo. E, com sua família à salvo, sua principal preocupação foram seus cachorros.
Quando voltou de viagem, precisou seguir por longe, pois não tinha como entrar na cidade. Ela ficou na casa de sua irmã, em Esteio, cidade há cerca de 12 km de distância, por uns 20 dias. Seus cachorros ficaram no telhado da casa, rodeados pela água, sendo alimentados por pessoas que passavam pela rua submersa de lancha.
Da casa, só ficou o que era de ferro. “Era muito triste olhar. A gente passa a vida inteira comprando as coisas pra, em segundos, ir tudo. Não ficou nada”. Mesmo assim, ela optou continuar na casa. E conta que só conseguiu se reerguer porque sua aposentadoria, que estava esperando desde 2019 para sair, chegou depois da enchente. Ela reconhece que seu caso é diferente de boa parte das famílias da região, que seguem com mais dificuldades.
Divorciada e com um filho de 30 anos, ela estava morando sozinha há 3 anos. Com a enchente, mesmo com as perdas, acolheu um tio de 79 anos. Os dois estão morando no espaço que ela chama de “pecinha”. É uma “peça” da casa que montaram com um fogão, uma pia feita de tijolos e com uma cama para cada um. Isso para que consigam viver enquanto o restante é ajeitado aos poucos.
As pessoas estão tentando se erguer. Ela sente isso por onde passa. As luzinhas pisca-pisca dispersas por algumas das casas são um sinal disso, acredita. “O povo aqui é muito guerreiro”.
Sua casa, assim como a maioria, não está enfeitada para o Natal. Ela assume que chegou a comprar um pinheiro, mas achou muito grande para a casa e acabou dando para sua irmã. Mas, para não deixar passar em branco, colocou uma guirlanda na porta.
Para que não se repita
O Terra perguntou à Prefeitura de São Leopoldo sobre o que está sendo feito com relação à recuperação da cidade e quais são os planos de contingência adotados para que a situação não se repita, tendo em vista possíveis novas enchentes e cheias no Rio dos Sinos.
"Além de toda a manutenção de todo o sistema de bombas fixas, também foram adquiridas 4 novas bombas anfíbias. Além disso, todos os taludes do dique da Vicentina, da Casa de Bombas da João Corrêa, e os taludes do dique da Brás, na região da Santos Dumont, já foram elevados em meio metro. O levantamento do talude na Campina já foi iniciado e deve ser finalizado nos próximos dias", informaram, em resposta.
Esses levantamentos são feitos com materiais específicos, como pedras, argila e terra compactada, que elevam os taludes -- como são chamados os montes de terra que garantem a proteção do dique. "Ainda foram captados R$ 196 milhões para construção do complexo do Dique da Feitoria e outros R$ 69 milhões para a construção da nova Casa de Bombas da Brás, na Santos Dumont, junto ao Arroio Gauchinho", complementou.
[Na terça-feira, dia 24, confira no Terra a segunda reportagem sobre a vida na periferia de São Leopoldo oito meses após a enchente].