Tarcísio promete regularização fundiária de terras quilombolas de SP; Conaq reage
Atualmente há 63 comunidades apontadas como remanescentes de quilombos, 36 reconhecidas pelo Estado e apenas 9 tituladas
"Estamos trabalhando na regularização fundiária de todas as áreas quilombolas no estado de São Paulo". Foi o que prometeu Tarcísio de Freitas, governador paulistano, nesta sexta-feira, 17, na abertura da 9° edição do Fórum Brasil Diverso. Com apenas nove comunidades quilombolas com títulos de propriedade emitidos no estado, ainda é preciso que 27 das demais terras já reconhecidas sejam regularizadas. Em meio a isso, a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) não reconhece o esforço governamental pela causa.
Em seu discurso, no evento, Tarcísio se posicionou contra a perpetuação do racismo e se comprometeu com políticas voltadas à população negra. O governador, inclusive, citou a política de cotas: "É um avanço que está produzindo resultados". Junto com ele estavam a procuradora-geral do Estado, Inês Maria Coimbra; a secretária de Comunicação, Lais Vita; e a secretária de Justiça de São Paulo, Eunice Prudente.
Além do destaque que deu ao trabalho direcionado ao povo quilombola, Tarcísio também citou a doação, em andamento, de um terreno no Centro da cidade de São Paulo para a construção de um campus da Universidade Zumbi dos Palmares. O Terra acompanhou o fórum, mas o governador não deu entrevistas.
Apesar do comprometimento expresso por Tarcísio, a comunidade quilombola diz não reconhecer ações práticas em prol do processo de regularização de terras, nem da efetivação de políticas públicas voltadas às suas necessidades reais.
"Dizer que o governo do Estado está resolvendo a questão fundiária para nós é balela. Isso pra nós aqui não é visível na prática", afirmou ao Terra Nilce de Pontes Pereira, moradora em quilombo e coordenadora estadual da Conaq por São Paulo. "Nós estamos com todas as comunidades praticamente desassistidas por parte do Estado. Não tem nenhuma ação concreta acontecendo dentro dos territórios e o nosso principal desafio é resolver a questão fundiária. Falta orçamento, falta diálogo com as comunidades".
Dificuldades no trâmite
A coordenadora também citou a questão da sobreposição de terras, referentes às regiões classificadas como unidades de conservação, parques, de uso da Marinha e que sobrepõem comunidades quilombolas.
"Cada um faz a sua gestão no seu formato e acaba atropelando o processo organizativo das comunidades. Isso gera um desgaste emocional muito grande pra gente", diz.
Procurada pelo Terra, o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Fundação Itesp), responsável pela regularização fundiária de quilombos na instância estadual, afirmou que nas terras cujo domínio é particular, a regularização fundiária é feita sob os cuidados da União, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Levando em consideração a questão da sobreposição, o instituto explicou que, por enquanto, não há como separar as comunidades reconhecidas que estão sob tutela do governo do Estado e quantas são da União, já que os lotes de terra podem ter parte das áreas compostas por um perímetro devoluto (terras públicas sem destinação pelo Poder Público) e parte particular. Nesses casos, então, é demandado tanto trabalho estadual quanto federal para a regularização.
Atualmente, as nove terras tituladas em São Paulo são:
- Pilões - Iporanga;
- Maria Rosa - Iporanga;
- São Pedro - Eldorado/Iporanga;
- Galvão - Eldorado/Iporanga;
- Ivaporunduva- Eldorado;
- Pedro Cubas- Eldorado;
- Nhunguara- Eldorado/Iporanga;
- Sapatú - Eldorado;
- Ostras- Eldorado.
Todas as áreas apresentam sobreposição, exceto a terra Maria Rosa, cuja totalidade do território foi legitimada apenas pelo Governo do Estado.
Sobre o que está sendo feito, o Itesp informou, em nota, que além do trabalho empreendido no reconhecimento e na regularização fundiária dos territórios quilombolas, a fundação presta assistência técnica a mais de 1,4 mil famílias, localizados em 14 municípios. A entidade também afirmou que capacita os beneficiários quilombolas em atividades agrícolas, manejo florestal, produção artesanal e comercialização.
Além disso, informou que o governo segue trabalhando para a efetividade das normas que permeiam os processos de reconhecimento e legitimação dos territórios quilombolas.
A reportagem solicitou à assessoria do governador mais detalhes sobre o andamento do processo de regularização fundiária das terras do Estado, a partir do que foi afirmado pelo próprio Tarcísio, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria. O espaço segue aberto para manifestações.
Falta de transparência
Ainda contrariando o que foi informado pelo governo do Estado, a Conaq afirmou que não há diálogo e construção participativa com as comunidades quilombolas. Nilce, coordenadora de São Paulo, deu como exemplo o 'Vale do Futuro', um programa estadual de desenvolvimento do Vale do Ribeira. Apesar da proposta, a comunidade quilombola ainda não está a par de como a iniciativa, realmente, irá funcionar.
"Uma das propostas é o lançamento de um plano de turismo de base comunitária. Colocaram nossos nomes como integrantes dessas atividades, mas nossa comunidade não tem ideia do que isso significa na prática", complementou.
Para ela, se não existem condições mínimas de segurança, saúde e saneamento para a comunidade, não é possível trabalhar o local dentro de uma lógica de turismo de base comunitária. Ela mencionou também o que chamou de má vontade para regularização dos territórios, reforçado pela nomeação de Guilherme Piai ao Itesp. Tarcísio o nomeou diretor executivo no início do ano e, em entrevista à Folha de S.Paulo na época, admitiu inexperiência na área.
Apesar de ter sido cabo eleitoral de Jair Bolsonaro na campanha de 2022, Piai chegou a afirmar que gostaria de ir na contramão do ex-presidente, e se comprometeu com a entrega dos títulos pendentes às comunidades quilombolas. A meta que recebeu, enquanto ocupava o cargo no Itesp, era de que a regularização fundiária total aos territórios quilombolas ocorresse em três anos.
Agora, ele é secretário de Agricultura e Abastecimento, pasta à qual o Itesp é subordinado, e, foi substituído por Lucas Bressanin, antes chefe de gabinete. A representante do Conaq de São Paulo disse que não foram informados sobre quem passou a assumir a pasta.
Primeiro Censo
De acordo com o Censo 2022, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) neste ano, há 10.999 pessoas quilombolas no estado de São Paulo, o que o torna o 19º mais populoso em relação a pessoas desse grupo. Esta foi a primeira vez que o instituto fez um recorte voltado aos quilombolas, integrantes dos povos e comunidades tradicionais reconhecidos pela Constituição de 1988.
Dessas pessoas, segundo o Censo, 3.936 (35,79%) estão dentro de territórios quilombolas oficialmente delimitados e 7.063 (64,21%) estão fora de áreas do tipo no estado. Já quando o assunto são territórios titulados, 875 (7,96%) está dentro e 10.124 (92,04%) estão fora.
Em paralelo, o Itesp indica que há 63 comunidades apontadas como remanescentes de quilombos no Estado de São Paulo, em que 36 são reconhecidas pelo instituto e 9 são tituladas. Do reconhecimento à regularização da terra como propriedade do quilombo, emitindo o título de prioridade, há um trâmite.
Já no Brasil como um todo, o Censo indica que a população quilombola do país é de 1.327.802 pessoas, 0,65% do total de habitantes. O levantamento também encontrou 473.970 domicílios com pelo menos um morador quilombola. Dos 5.568 municípios do Brasil, 1.696 tinham moradores quilombolas - sendo que 68,19% dos quilombolas do país estão no Nordeste.
Sobre os territórios, foram identificados 494 oficialmente delimitados no país, presentes em 24 estados e no Distrito Federal, que abrigavam 167.202 quilombolas. Ou seja, apenas 12,6% da população quilombola reside em territórios oficialmente reconhecidos.
Como é feita a titulação de terras quilombolas
Segundo o IBGE, cabe à Fundação Cultural Palmares (FCP), vinculada ao Ministério da Cultura, certificar a autoatribuição quilombola por parte das comunidades. Já o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) deve titular os territórios quilombolas localizados em terras públicas federais ou que incidem em áreas de particulares.
Para além do Incra, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) também é responsável por expedir título ou Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU) às comunidades quilombolas localizadas em áreas de sua gestão. Também cabe aos estados e municípios a emissão dos títulos às comunidades quilombolas que estão em terras de domínio estaduais e municipais, respectivamente.
O direito de propriedade aos territórios remanescentes de quilombos, determinando aos estados brasileiros o dever de emitir-lhes os títulos, é garantido na Constituição Federal de 1988. Além de São Paulo, os estados do Pará, Bahia, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Piauí, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Goiás, Espírito Santo, Sergipe, Rio Grande do Sul e Santa Catarina possuem leis específicas para regularizar os territórios quilombolas.
Em São Paulo, segundo o Itesp, o processo para a identificação de um território como remanescente de quilombo demanda estudo antropológico fundamentado em critérios de autoidentificação e dados histórico-sociais, escritos e/ou orais. Também são levados em conta os espaços de moradia e aqueles destinados às manifestações culturais, cultos religiosos, lazer e afins. Os elementos instruem o Relatório Técnico-Científico (RTC) que dá ensejo ao reconhecimento das comunidades, mediante publicação no Diário Oficial do Estado.
Depois disso, são iniciados os trabalhos de regularização fundiária com vistas à emissão dos títulos de propriedade em nome das Associações, legalmente constituídas. A Lei Estadual nº 9.757 que tratou da legitimação de posse de terras públicas estaduais aos remanescentes das comunidades de quilombos, foi criada em 1997.