A história de 'Drácula', o cavalo que resistiu aos ataques golpistas em Brasília
Agredido por extremistas, o cavalo '847' foi atingido por um objeto cortante no focinho, a apenas um centímetro do olho direito; quase ficou cego, mas passa bem
BRASÍLIA - Levado por um agente até o gramado do Parque da Cidade, na região central de Brasília, o cavalo 847 pasta tranquilamente, na tarde de segunda-feira, 16. O animal sacode a crina, dobra uma das patas, morde os tufos de grama. A seu lado, o policial militar o acaricia e aponta para uma cicatriz seca que contorna seu olho direito. Um objeto cortante rasgou-lhe o couro a cerca de um centímetro do globo ocular, vertendo sangue sobre o seu focinho. Por pouco, o 847 não ficou cego.
Dentro das baias de 12 metros quadrados do Segundo Esquadrão de Choque Montado da PM, o cavalo deixa de ser apenas um número, para ser conhecido, mais intimamente, como Drácula. No último dia 8, quando golpistas munidos de ódio, pedaços de pau e barras de ferro cercaram Drácula, na Praça dos Três Poderes, o animal viu o soldado Teles, seu montador, ser puxado, cair no chão e sofrer agressões de extremistas.
Diante das cenas de apuro, os demais soldados da cavalaria correram para retirar policial e cavalo do meio dos agressores. Conseguiram isolá-los rapidamente. Próximos de Drácula, outros dois cavalos também viram seus soldados serem arrancados de cima deles pela turba criminosa, mas nenhum se feriu.
Numa área isolada da praça, embaixo do mastro monumental que sustenta a Bandeira Nacional, o médico veterinário da Polícia Militar, major Renato Ferreira, prestou os primeiros atendimentos a Drácula. Fez um curativo no local do corte e deu ordem para retirá-lo do lugar. O soldado Leles, que sofreu alguns hematomas e uma lesão no joelho, foi encaminhado para atendimento médico, mas passa bem e já teve alta.
"Prestamos, ali mesmo, os primeiros cuidados ao 847. A situação poderia ter sido mais complicada, mas acabou por não ser nada grave. O cavalo está bem e totalmente recuperado", disse ao Estadão o major Renato Ferreira.
Terroristas golpistas bolsonaristas começaram a agredir policiais militares do Distrito Federal. Nesta imagem, vemos um deles sendo derrubado do cavalo na base da paulada e sendo agredido em seguida. pic.twitter.com/XS8HCimE02
— William De Lucca (@delucca) January 8, 2023
Drácula, que carrega a alcunha do personagem do romance gótico escrito pelo autor irlandês Bram Stoker, publicado em 1897, é um cavalo "mestiço", ou seja, de raças misturadas. Chegou ao Esquadrão de Choque Montado da PM quando ainda tinha dois anos de idade. Seus pais não são conhecidos. O que se sabe é que veio do Rio Grande do Sul, Estado que hoje concentra grandes redutos bolsonaristas e de onde partiram caravanas de extremistas que se amotinaram em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, para marchar em direção aos prédios do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF).
Faltam cinco anos para a aposentadoria
Hoje, o valente 847 está com 15 anos. Como os demais animais que compõem a cavalaria, deverá trabalhar com os soldados montados até completar 20 anos, quando, enfim, poderá se aposentar. Um cavalo vive, em média, 25 anos.
As cenas traumáticas vividas por Drácula e acompanhadas por todo o País naquele domingo, 8 de janeiro, não devem trazer maiores transtornos para o comportamento do animal. Dentro da PM, os veterinários farão um acompanhamento constante do cavalo. Como os demais companheiros de jornada, o 847 continuará a ter treinamentos que simulam, em escala bem menor, os conflitos que teve de encarar sobre o granito que encobre o chão da Praça dos Três Poderes.
No Parque da Cidade, numa arena de terra isolada das trilhas de bicicleta e de corrida que circulam o tradicional ponto de lazer de Brasília, Drácula será submetido a treinos que incluem, por exemplo, a atuação de policiais sacudindo a bandeira nacional, assumindo posições de suposto confronto, com uso de rojões e demais artifícios para forjar um momento de embate. Os cavalos passam, assim, a ser treinados para ver o verde e amarelo como sinal de conflito e combate, e não como símbolo maior de uma Nação.
"O objetivo não é assustar o animal. Pelo contrário, a ideia é normalizar essas situações, para que o cavalo não se assuste", diz o capitão Carneiro, comandante do Segundo Esquadrão de Choque Montado da PM. "O cavalo é, por natureza, uma presa. Não é um predador, não é um animal que encara o confronto. Numa situação como aquela de domingo, qualquer cavalo comum tende a fugir, a correr. Por isso, treinamos os cavalos a lidarem com esses cenários de conflito, para que ajam normalmente."
De perfil dócil, Drácula, o 847, não tem a mesma estatura de novos cavalos que têm chegado ao regimento. É um pouco menor que seus novos companheiros, mas conhecido por ser destemido e fiel.
Já foi liberado para voltar a circular pela Esplanada dos Ministérios e monumentos de Brasília. Seus olhos, que testemunharam outros tantos tumultos históricos na capital federal nesta última década, como as invasões de junho de 2013, estão prontos para encarar o próximo embate. Se isso ocorrer, Drácula não será pego de surpresa. Carrega no próprio couro as cicatrizes da barbárie.