Grandes áreas do globo estiveram mais secas do que o normal em 2021, mostra relatório da ONU
Impactos das mudanças climáticas, sentidos nas águas, têm efeitos 'em cascata nas economias, ecossistemas e todos os aspectos de nossas vidas diárias', alerta agência internacional
Frente a um dos sete anos mais quentes da história, grandes áreas do globo registraram condições mais secas do que o normal em 2021. A conclusão é de um relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM), órgão das Nações Unidas (ONU), divulgado no fim de novembro, que considerou dados de vazão de bacias hidrográficas de uma série histórica de três décadas (1991-2020).
"Os impactos das mudanças climáticas são muitas vezes sentidos através da água - secas mais intensas e frequentes, inundações mais extremas, chuvas sazonais mais erráticas e derretimento acelerado das geleiras - com efeitos em cascata nas economias, ecossistemas e todos os aspectos de nossas vidas diárias. No entanto, não há compreensão suficiente das mudanças na distribuição, quantidade e qualidade dos recursos de água doce", alertou Petteri Taalas, secretário-geral da OMM, em nota.
Nas redes sociais, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, compartilhou o relatório junto a estimativas da ONU sobre acesso à água potável no mundo. "3,6 bilhões de pessoas enfrentam acesso inadequado à água em ao menos um mês por ano. Espera-se que isso aumente para mais de 5 bilhões até 2050?, escreveu.
3.6 billion people face inadequate access to water at least one month per year. This is expected to increase to more than 5 billion by 2050.
New @WMO report assesses the effects of climate change on the Earth's water resources. https://t.co/aF7J8yJPZJ pic.twitter.com/S62Ejy9bPB
— António Guterres (@antonioguterres) November 29, 2022
Especialistas ouvidos pelo Estadão destacam que relatório traz informações preocupantes sobre o impacto das mudanças climáticas e do uso de terra no ciclo hidrológico. Em um mundo com 8 bilhões de pessoas e que não deve de parar de crescer tão cedo, a menor disponibilidade de água ameaça a segurança hídrica e alimentar da população - com mais pobres sendo afetados desproporcionalmente.
Para os profissionais, é preciso promover ações de mitigação da crise do clima, para evitar escalada da escassez hídrica, mas também de planos de adaptação ao cenário mais seco, além de uma reflexão sobre resiliência energética com foco na diversificação de fontes.
"(O relatório) É o primeiro esforço de de olhar, de uma forma global, aquilo que a gente já indicava de um mundo em extremos. O aquecimento global impacta diretamente o ciclo hidrológico e a gente vai ter tanto eventos de secas mais extremas, como de inundações. O que o relatório mostra é o predomínio da redução da disponibilidade hídrica, que é bastante preocupante, porque tem um impacto direto sobre a vida das pessoas", resume Mercedes Bustamante, professora do departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB) e membro do movimento Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura.
"O que o relatório coloca é essa menor disponibilidade de água, com períodos longos de estiagem, e chuvas, muitas vezes intensas, que não são suficientes para reverter esse cenário. Isso é mais uma evidência de que as mudanças climáticas não são uma aposta pro futuro, elas já estão ocorrendo e de uma maneira bastante intensa", conclui Pedro Côrtes, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente da USP.
Inédito, o relatório State of Global Water Resources buscou "detectar os efeitos das mudanças climáticas, ambientais e sociais no estado hidrológico da Terra", uma vez que "compreender mudanças na demanda por água doce é essencial para o planejamento e adaptação às condições climáticas futuras e para a implementação das estratégias de mitigação do clima mais eficazes".
A agência da ONU especializada em tempo, clima e recursos hídricos, no entanto, alerta para a escassez de dados hidrológicos e a necessidade de que países invistam nas redes de observação nacional para preencher lacunas.
A agência internacional também pede para que países utilizem os dados para acelerar o desenvolvimento de "sistemas completos de alerta precoce de secas e inundações", a fim de reduzir o impacto de eventos extremos hidrológicos nas pessoas, economias e ecossistemas.
Vazão
A primeira edição do boletim se concentrou em 515 principais bacias hidrológicas que cobrem o globo, de acordo com a classificação da OMM. A vazão - volume de água que flui em um canal fluvial em determinado momento - das bacias no ano passado ficou muito abaixo do normal em várias partes do mundo, destaca o relatório.
Áreas com condições de vazão abaixo e muito abaixo do normal foram aproximadamente duas vezes maiores do que aquelas com condições acima e muito acima. Apenas um terço das regiões analisadas tiveram resultado normal no ano passado.
Mercedes, professora da UnB, vê com preocupação o fato de praticamente todo o Brasil estar em áreas com vazão abaixo ou muito abaixo do normal. "Nossos rios precisam de um olhar especial de políticas públicas e também do setor privado, de pensar como é que a agricultura tem uma responsabilidade sobre a utilização da água e o potencial que a gente ainda de expansão de agricultura irrigada", afirma.
"No Brasil, ainda há uma perspectiva passada de ser uma uma região de abundância de água. Nós temos um um tratamento com os recursos hídricos muito precário, no sentido de que há muito desperdício, pouca eficiência, e, nas áreas urbanas, não tratamos os resíduos da forma como deveríamos", acrescenta.
Embora o cenário indique redução de disponibilidade de recursos hídricos no País, Côrtes avalia que, em comparação com outras nações, ele ainda é favorável, no sentido de que "ainda temos possibilidades de reversão". "Se investirmos na recuperação de nascentes ou recuperação das matas no entorno dos rios e de grandes reservatórios, isso já ajuda a reverter pelo menos parcialmente esse cenário. Agora, não podemos deixar a situação se desenvolver sem controle."
Armazenamento
O relatório também se debruçou sobre os dados de armazenamento de água terrestre, que representa a soma de toda a água na superfície terrestre e no subsolo, de acordo com a OMM. O ano de 2021 "foi consistente com as tendências gerais" do indicador.
No entanto, esteve muito abaixo e abaixo do normal na costa oeste dos Estados Unidos, na Patagônia, no norte da África e em Madagascar, na Ásia Central e Oriente Médio, na parte central da América do Sul, no Paquistão e norte da Índia. Além disso nas partes central da África, norte da China e norte da América do Sul - especificamente na bacia amazônica - o indicador acima ou muito acima do normal.
O documento indica pontos críticos (hotspots, em inglês) com tendência negativa no armazenamento, como a bacia do Rio São Francisco, no Brasil. Além de alguns com anomalia positiva, com as bacias do Níger e também a parte norte da bacia Amazônica. Segundo a OMM, esses resultados podem ter sido influenciados pelas "tendências de longo prazo causadas pelo derretimento da neve e do gelo" ou pela "captação excessiva de água subterrânea para irrigação"; e frisa que "as tendências negativas são mais fortes do que as positivas".
Eventos extremos
Ameaças associadas aos recursos hídricos, como enchentes e secas, estão entre as consequências mais danosas impostas pelas mudanças climáticas, de acordo com a OMM. "Os impactos climáticos relacionados à água afetam todos os aspectos das sociedades, incluindo agricultura, saúde, energia, todos os setores econômicos e ecossistemas", explica o relatório.
No boletim, a agência internacional dá destaque a dado do Centre for Research on the Epidemiology of Disasters, da University of Louvain, localizada na Bélgica, que mostra que em 2021 foram registrados 432 eventos extremos de perigo natural de grande e média escala no mundo. Eles ceifaram quase 10 mil vidas e afetaram afetaram diretamente mais de 100 milhões de pessoas, além de causarem prejuízo de US$ 250 bilhões em danos.
A bacia amazônica é citada como exemplo no relatório, por ter enfrentado ambas situações, seca e inundação, no ano passado. As partes sul e sudeste encararam a seca, enquanto a parte norte experimentou cheia recorde - superando níveis de 2012. O nível da água na estação de Manaus chegou a ficar acima dos 29 metros (limite de emergência).
Conforme mostrou o Estadão, no final de outubro, o cenário por ali é completamente outro. Se em junho do ano passado, a orla de Manaus alcançou a marca de 29,75 metros, no final daquele mês, o índice estava em 13,56 metros.
Segundo governo do Estado, 17 municípios estavam em situação de atenção e outros 34, em estado de alerta. A seca afetava o dia a dia da população da capital e também do interior do Amazonas, já que atingia a navegação e consequentemente o abastecimento do comércio.
O que fazer?
Especialistas esperam que os governos leiam com atenção o relatório, levando em consideração as graves consequências de um mundo mais seco e com mais eventos extremos. Levantamentos anteriores da OMM já mostraram que secas causaram 650 mil mortes entre 1970 e 2019 - inundações, outro evento extremo associado às águas, fizeram 57,8 mil vítimas -; e provocaram US$ 124 bilhões em perdas econômicas entre 1998 a 2017.
Encarar a crise climática com seriedade é essencial, destacam os especialistas. Côrtes indica que, para isso, reduzir a emissão dos gases de efeito estufa é fundamental, mas é necessário também pensar no sequestro do carbono (CO2), que pode ser feito por meio da recuperação florestal.
O professor destaca que, para o Brasil, isso representa, além do mais, uma "oportunidade de negócios", com a possibilidade de venda de crédito de carbono. "O que a gente precisa é ter uma legislação, que não existe ainda no Brasil, que normatize isso."
Mercedes acrescenta a necessidade de um planejamento territorial que considere o ciclo hidrológico. "Como é que a gente controla o desmatamento, sobretudo nessas regiões que são muito sensíveis para recarga dos recursos hídricos?", afirma, é um questionamento que deve ser respondido pelos gestores públicos. Com recursos mais escassos, reduzir a poluição e melhor a qualidade de cursos d'água precisa estar em foco, recomenda.
A professora também comenta que é preciso pensar na resiliência dos sistemas de geração de energia elétrica, com incentivo à diversificação de fontes. "Todas as fontes de energia que são dependentes de recursos naturais - água, solar, vento - em um momento ou outro, você vai ter uma oscilação da capacidade de geração. O importante é conseguir acionar ou ter um conjunto de fontes diferentes que possam ser complementares."
Nesse sentido, Côrtes pondera que, com as mudanças nos regimes de chuva observadas, a atenção para os prognósticos climáticos, que indicam a tendência do comportamento do clima ao longo das estações, deve ser redobrada. "Isso permite a tomada de decisões estratégicas do poder público que podem se antecipar a determinadas situações para reduzir os impactos, mas também é fundamental que a gente pense se os nossos modelos de abastecimento e geração de energia hidrelétrica, captação e distribuição de água pra consumo residencial e captação de água para irrigação estão adequados ao enfrentamento dessas novas situações climáticas."