Sadia é processada por compra de carne de áreas irregulares na Amazônia
O MPF do Amazonas processa 26 frigoríficos que compraram bois de produtores acusados de destruição ambiental ou trabalho escravo
O Brasil é o maior exportador de carne do mundo: por dia são abatidos 150 mil bovinos no País. Muitas vezes, porém, a cadeia de produção apresenta irregularidades, como utilização de mão de obra escrava ou a produção em áreas ilegais, contribuindo, por exemplo, para o desmatamento na Amazônia.
Na tentativa de inibir essas ações, o Ministério Público Federal (MPF) do Amazonas, Mato Grosso e Rondônia, o Ministério Público do Trabalho e o Ibama resolveram agir no segundo estágio da cadeia de produção da carne, os frigoríficos.
O MPF está processando 26 estabelecimentos desses três Estados pela compra e comercialização de carne proveniente de fazendas acusadas de produzir às custas de trabalho escravo, devastação ambiental e violação dos direitos indígenas. Esses frigoríficos se recusaram a assinar o termo de ajustamento de conduta (TAC) proposto pelo órgão.
Entre as empresas processadas pelo MPF estão frigoríficos da BRF e da Sadia, empresa que pertence ao grupo BRF, um dos maiores do setor no Brasil e que exporta para mais de 140 países. Segundo o site do grupo, ele é responsável por 9% das exportações mundiais.
Uma pesquisa realizada em 2012 pela ONG Repórter Brasil, que atua no combate ao trabalho escravo e aos danos socioambientais, afirma que a BRF fornece carne para as dez maiores redes varejistas do mundo.
Segundo Carlos Juliano Barros, da Repórter Brasil, ainda não há uma preocupação internacional nesse sentido. "A pressão internacional é mais focada na questão sanitária do que social e trabalhista. Os países suspendem a compra por doenças, mas não por questões trabalhistas", afirma.
BRF critica conduta do MPF
Em nota, a assessoria de comunicação da BRF afirmou que o grupo ainda não foi informado oficialmente sobre a ação do MPF e está verificando a procedência dos bois comprados. Os 1,8 mil animais adquiridos representariam apenas 0,45% do total comprado e abatido no período correspondente, diz a nota. Do total, 1,5 mil foram adquiridas de áreas em situação regular, afirma a empresa. "Ainda estamos investigando os registros dos demais 300", diz a BRF.
A empresa alega que não assinou o TAC, pois já adota as medidas propostas no termo e entende que não há conduta a ser ajustada. "A BRF defende a regularização das propriedades e reafirma sua política de não comprar animais de fazendas em situação irregular. No entanto, discorda da forma como o MPF vem conduzindo o debate em torno da questão", conclui a nota.
Fiscalização nos frigoríficos
O procurador do MPF no Estado do Amazonas, Leonardo Macedo, disse à DW Brasil que a investigação é de longa data, e há dois anos havia uma negociação com o setor de frigoríficos. "O termo de ajustamento de conduta foi construído a partir do diálogo com os próprios frigoríficos, não é um documento unilateral do MPF", explica.
Pelo acordo, os frigoríficos se comprometem a não abater bois provenientes de áreas irregulares - ou seja, de produtores incluídos na "lista suja" do trabalho escravo do Ministério do Trabalho e Emprego, na lista de áreas embargadas pelo Ibama por desmatamento ilegal, de fazendas no interior de terras indígenas e de unidades de conservação, assim como daquelas com problemas fundiários.
Além disso, foram estabelecidos prazos de cinco anos para que os produtores se adaptem e se regularizem, com o pedido do licenciamento ambiental e a adesão ao cadastro ambiental rural.
No Amazonas estão sendo investigados todos os oito frigoríficos formalizados do Estado. A investigação já foi concluída em quatro, e todos estavam com problemas, mas apenas um deles assinou o TAC. Os outros três estão sendo processados.
Macedo diz que há outra investigação em curso que tem como alvo o abate clandestino. "São frigoríficos ilegais que não têm inspeção sanitária", explica. Segundo o procurador, há 50 estabelecimentos desse tipo no Amazonas.
Macedo afirmou que cabe aos frigoríficos restringir a aquisição de carnes de áreas irregulares. "A legislação ambiental brasileira considera como poluidor todo aquele que contribui de forma direta ou indireta para a degradação ambiental. À medida que o frigorífico se beneficia e adquire essa matéria-prima, ele deve se certificar de que ela tem origem legal. Isso se dá em qualquer cadeia produtiva", afirma o procurador.
Reações das empresas frigoríficas
A Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo) entrou na segunda-feira com uma ação na Justiça Federal de Brasília contra as medidas adotadas pelo MPF. Segundo o presidente executivo da Abrafrigo, Péricles Salazar, a associação concorda com os objetivos do Ministério Público, porém discorda dos meios da instituição.
"Diante da recusa inicial das empresas em assinar o termo de conduta, o MPF ameaça e pratica a coação, travando as operações comerciais das empresas que não querem assinar", argumenta Salazar à DW Brasil. "O frigorífico não é o réu, o frigorífico é o terceiro, quem desmata e emprega trabalho escravo é o pecuarista", acrescenta.
Segundo o executivo da Abrafrigo, uma medida que facilitaria a identificação de produtos irregulares seria o repasse das informações das listas do trabalho escravo e dados do Ibama para as secretarias estaduais da Agricultura. São elas que emitem as Guias de Trânsito de Animais (GTA), que identificam a origem do gado.
Assim, essas informações também fariam parte da GTA e produtores com problemas não a receberiam. "Sem a via, os frigoríficos não comprariam o gado, porque já sabem que a propriedade está embargada", afirma o presidente.
O valor total das indenizações por danos morais, ambientais e sociais que os 26 frigoríficos processados podem pagar pelo abate de 55 mil bois chega a R$ 557 milhões. Ações como essa já foram realizadas no estado do Pará, e, segundo o promotor do Amazonas, realizam-se investigações parecidas em outros estados da Amazônia legal.
Problemas de longa data
Segundo Barros, da Repórter Brasil, nos últimos anos organizações não governamentais vêm fazendo um trabalho de conscientização junto aos frigoríficos. Como resultado, muitos deles assinaram pactos empresariais, comprometendo-se a adotar critérios para evitar a compra de produtos ilegais.
"Mas esses pactos eram muito frágeis, pois careciam de um mecanismo forte de fiscalização. Eles se comprometiam, mas era complicado ter a garantia de que respeitavam esses acordos", explica Barros, que juntamente com Caio Cavechini dirigiu o documentário Carne, osso sobre as condições de trabalho nos frigoríficos brasileiros.
Para Barros, os frigoríficos são responsáveis pela carne que adquirem. "Tanto do ponto de vista legal, quanto do ponto de vista da responsabilidade social, as empresas têm responsabilidade sobre sua cadeia produtiva. Elas não podem simplesmente lavar as mãos e dizer que a responsabilidade é do fornecedor da carne."
O especialista afirma que as ações do MPF são muito importantes para combater esses crimes. "Quando há fiscalização e as empresas têm que responder na Justiça, elas se movimentam muito mais do que quando são apenas pressionadas pela opinião pública e por ONGs", diz Barros.
Rômulo Batista, da ONG Greenpeace, é da mesma opinião: "O trabalho do MPF é muito importante no combate ao desmatamento". Segundo o biólogo, outro fator que evitaria dados ambientais é o aumento da produtividade.
"Há vários estudos mostrando que a pecuária na Amazônia ainda tem uma produtividade muito baixa, ou seja, menos de uma cabeça de gado por hectare de pasto. Se conseguirmos melhorar a produtividade para 1,4 cabeça, toda a demanda projetada para os próximos anos, para o Brasil e a exportação, seria atendida sem desmatar um hectare de floresta", explica.