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'Problemas e soluções para futuro sustentável estão nas cidades', diz ex-chefe da ONU-Habitat

Claudio Acioly Jr. trabalha com urbanização de favelas, habitação e desenvolvimento urbano em instituições internacionais

27 ago 2020 - 13h06
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O arquiteto e urbanista carioca Claudio Acioly Jr. foi chefe da unidade de capacitação e formação profissional da ONU-Habitat, na qual esteve por 12 anos. Também recentemente ocupou cargos de direção na Agência Alemã de Cooperação Internacional e no Programa Internacional de Cooperação Urbana na América Latina e Caribe, da União Europeia.

Radicado fora do Brasil há mais de 30 anos, atualmente se divide entre o Quênia e a Holanda. É especialista em habitação, urbanização de favelas e gestão do desenvolvimento urbano. Nesta entrevista ao Estadão, ele discute a necessidade de se pensar cidades mais sustentáveis, os efeitos da pandemia do novo coronavírus e o papel da tecnologia no desenvolvimento urbano, dentre outros assuntos.

O urbanismo costuma ser lembrado quando se discute sustentabilidade? De que forma ele deveria ser inserido nesse tipo de discussão?

Não, infelizmente a dimensão espacial do planejamento urbano não estava tão evidente (até alguns anos atrás). Mas creio que de 2014 em diante, (há) esse movimento, o consenso de que as coisas estão acontecendo na cidade. (Um exemplo é) quando o secretário-geral da ONU vai a público e diz que a luta na adaptação e mitigação das mudanças climáticas vai ser travada, ganha ou perdida, nas cidades, porque elas contribuem com as emissões, mas também são parte da solução. E, por isso, o objetivo de desenvolvimento sustentável 11 (da Agenda 2030, elaborada pelas Nações Unidas) é das cidades. E isso nunca esteve tão claro, tão evidente, em uma agenda global, de desenvolvimento sustentável.

A pandemia aumentou a sensibilização dos poderes para se pensar em cidades mais sustentáveis?

A pandemia exacerbou os problemas que já existiam antes. Havia já uma crise dentro da cidade em vários locais do mundo, a desigualdade aumentando, uma cidade estratificada e segregada, onde você tem os ricos e os pobres, aqueles que têm acesso a tudo e os que não têm. A pandemia começa a colocar tudo isso em cheque. De repente, a pegada de carbono de áreas metropolitanas diminuiu assustadoramente, aí você começa a ter melhor qualidade da água da praia, do ar, as pessoas começam a observar a beleza da arquitetura da cidade e a importância que aquele espaço construído tem no dia a dia e na qualidade de vida das pessoas. E aí você entra nas áreas informais e vê o impacto que causou em obrigar as pessoas a se isolar dentro de uma habitação precária. Por esses dois lados, verificamos que a pandemia trouxe para o debate a questão do planejamento da cidade e a cidade que nós queremos no futuro. Toda vez que nós tivemos na história da humanidade, essas febres, essas externalidades sanitárias, em que morreu muita gente, sempre vieram proclamadores da desgraça que diziam que esse é o fim da cidade. E, no entanto, a cidade se reinventou, o homem e a mulher saíram do homo sapiens para o homo urbes, porque somos um ente social em que essa troca social é transformadora, gera relações sociais e econômicas, gera oportunidades, e problemas também, e todas as inovações que hoje nós temos no mundo nasceram dessas aglomerações. A pandemia colocou qual é a importância da cidade. Por exemplo, aqui na Holanda, o primeiro-ministro falou em um determinado momento que, por sorte, o país é denso, as cidades são densas e, portanto, os equipamentos estão todos muito perto das pessoas, as pessoas podem usar a bicicleta, ir caminhando, não necessitam de um automóvel para poder alcançar esses equipamentos. Então, eles conseguiram maximizar a baixo custo e salvar muitas vidas, por terem essa urbanização que é muito planejada de uma forma mais densa.

O senhor diria, então, que não há como ter um futuro mais sustentável sem mudanças nas cidades?

Exato. As cidades terão de se transformar. Seguramente, essa transformação tem dois viés. Um é a mobilidade, que se conecta diretamente com o uso do solo, quem controla a terra urbana, como vamos lidar com o uso e a ocupação, e aí vamos ao planejamento, o que vai definir as regras dessa ocupação, até que ponto podemos densificar. Para otimizar o transporte você pode permitir a verticalização da terra naqueles locais e você diminui um pouco mais (em outros) para ter esse balanço entre áreas mais verdes e menos ocupadas e as áreas mais ocupadas. Isso é planejamento, gestão do território. E o outro elemento é o acesso à habitação adequada, que tem que estar conectado com o planejamento urbano. As pessoas querem morar perto. Por que a gente tem favelas localizadas em determinados locais e se densificam de uma forma rápida? Porque as pessoas têm que pagar transporte caro, (e ficar) muito tempo no transporte, então preferem assumir o risco e morar apertadamente, de má qualidade, por estar perto do mercado de trabalho. Aí voltamos a outro elemento: a questão do emprego. Com essa experiência da pandemia, vai passar por uma reestruturação, a geografia do emprego vai mudar. E o último ponto é que a oferta de espaço residencial e espaço de escritórios e comércio vai mudar também, e isso vai ser uma adaptação que a gente vai ter que passar. (Por exemplo) A tendência que está acontecendo nos Estados Unidos e que pode vir a se repetir nos países em desenvolvimento, é dos shoppings malls se detonando, porque as pessoas não querem (mais), elas querem ir no seu comércio local que havia sido destruído por aquela concentração do shopping.

Como começar a fazer as mudanças necessárias em uma cidade do tamanho de São Paulo? Como o poder público e o setor privado podem começar a pensá-las?

Logicamente que São Paulo tem uma área informal muito grande, uma região metropolitana bastante complexa, tem esse movimento pendular de periferia ao centro ou aos locais onde estão concentrados os empregos, então uma das coisas que nós poderíamos discutir é melhorar a oferta do transporte público, torná-lo não só mais eficiente, confortável, seguro, barato e acessível, mas ter toda uma conexão desse transporte com outros modais. Você tem aí medidas de desestimular o uso individual do automóvel, já se tentou isso, mas não se deu uma alternativa. Acho que existem várias possibilidades. Uma escala metropolitana como São Paulo requer uma forma bastante diferenciada de planejamento, inclusive de se trabalhar o ente metropolitano, os acordos ou consórcios municipais para que você possa gerar soluções condominiais, por exemplo, lixo, transporte, coisas que atravessam os territórios do ABC, da Prefeitura de São Paulo e das outras prefeituras. Se a gente não incluir a dimensão do planejamento urbano e do desenho da cidade como ela se configura junto às outras dimensões, nós não vamos conseguir dar esse salto da sustentabilidade.

Na realidade brasileira, é preciso primeiro resolver os problemas de base, como o de moradia, por exemplo? Ou as inovações com tecnologia e conhecimento devem ocorrer simultaneamente?

Não temos outra opção que não seja fazer essas coisas concomitantemente. Se formos primeiro fazer isso para fazer outro depois, vamos perder, vamos nadar, nadar, nadar e morrer na praia. E há uma série de prefeitos no Brasil que já estão fazendo essas coisas de uma forma muito criativa. Niterói, por exemplo, está mostrando que é possível fazer algumas coisas de uma forma diferenciada, envolver a população, melhorar a administração pública, olhar os seus recursos naturais, criar um uso disciplinado e sustentável da costa e de muita área do ponto de vista ambiental, da qual se está cuidando e também seus problemas sociais. E tem uma outra coisa importante que é a educação, dentro das escolas. A cidade tem uma oportunidade única de criar uma nova geração de crianças que vão monitorar os pais, vão monitorar a cidade e você vai ter pequenas práticas que começam a mudar. Palmas (no Tocantins) resolveu se comprometer com o pacto global dos prefeitos e começou a mudar a matriz energética, começando pelos edifícios públicos e colocando massivamente um programa de energia solar. Eu sou um otimista de que se as cidades tiverem a capacidade de liderança, equipes técnicas engajadas e um diálogo com a sociedade civil, elas vão conseguir fazer essa mudanças. Agora, vai ter de fazer as coisas ao mesmo tempo. A gente infelizmente tem um passivo em todas as nossas cidades, e a gente tem que ter um cuidado muito sério com esse passivo porque exclui muita gente dos benefícios que a urbanização planejada e bem gestionada pode dar para todas as pessoas.

De que forma o Estado e o governo federal também podem facilitar essas mudanças? E como o setor privado vai entrar nisso?

Não acredito que essa tarefa seja só do poder público. E também não acredito que só fazendo a ação social, engajando a população, você vai conseguir essa agenda. Você tem que trazer o capital. Você tem que trazer a empresa, as pequenas, médias e grandes empresas com a sua responsabilidade corporativa-social. Aí está não só presente a sua força de trabalho quanto o seu exército de consumidores. Temos de dar uma revisão na nossa legislação, que tem umas pegadas maquiavélicas, do qual o empresário não tem muita vontade de se impregnar. E os prefeitos e gestores públicos têm muito medo, porque você necessita de tantos mecanismos de controle e (há) muitas suspeitas de manipulação, que sempre existiu na administração pública. Você tem de ultrapassar essa paranoia e criar um diálogo aberto entre os órgãos fiscalizadores, regulares e o setor privado. A gente tem algumas leis que avançam, algumas experiências que são possíveis e uma lei federal, o Estatuto das Cidades, que dá muitos instrumentos para a prefeitura intervir. Temos de deixar claro essa divisão entre a propriedade imobiliária, do solo, e quem autoriza o uso daquele propriedade. As pessoas se acostumaram a achar que por ter o direito de propriedade têm o direito de construir. E muitas prefeituras deixaram essa coisa rolar assim.

Como planejar mudanças urbanas em grandes cidades, como São Paulo, que têm tantas diferenças regionais?

Uma das coisas mais importantes é a gente ter conhecimento da realidade, e esse conhecimento vem com dados, gestão da informação, indicadores e um sistema operacional-administrativo de gestão urbana, no qual eu possa ter um fluxo de informação para entender essa dinâmica e monitorar essas transformações que vão ocorrendo. A cidade, como aglomeração, é muito dinâmica. E a gente tem de entender essas especificidades e diferenças para pensar no futuro. Uma visão do futuro trabalhada com bases, com diálogo, com consulta, ouvindo as diferentes correntes e grupos. Há diversas formas de construir essa visão. Mas como a gente chega lá? Aí a gente precisa descobrir qual é a vocação da minha cidade nesse território, nessa economia. Uma pergunta fundamental. Aí o planejamento e as intervenções do poder público com os seus associados parceiros privados, comunitários, etc, vão fortalecer essas vocações e, aos poucos, fazendo o que alguns chamam de acupuntura urbana, que são os projetos estratégicos que transformam áreas, bairros, e, no conjunto, esses projetos ajudam a viabilizar essa visão. A gente tem uma prática do Plano Diretor, que tem um universo de 10, 20 anos, e muita coisa acontece, algumas externalidades, de repente aparece um vírus e o teu plano está fixo e aprovado por 20 anos. Você tem que ter um mecanismo de planejamento, de flexibilidade, para que possa se adaptar, mas sem ser oportunista para que as forças de interesse econômico possam manipulá-lo. Então, é um processo difícil: como criar um plano diretor que não seja uma camisa de força e como criar um projeto de desenvolvimento estratégico que não seja tão amplo e tão aberto, que todo mundo vai mudando a seu interesse? Aí, que a gente tem que encontrar um meio termo.

O conhecimento e a tecnologia que existem hoje tornam menos difícil eliminar ou reduzir esse passivo das cidades latino-americanas?

Tem aí um movimento das cidades inteligentes, que ganhou muita escala e, às vezes, é mal compreendido, que se baseia só no princípio de que a tecnologia vai solucionar tudo. Mas a cidade inteligente não é só a tecnologia. Ela é uma forma de olhar a cidade do ponto de vista de acessibilidade, mais eficiência dos serviços, maior transparência, melhores equipamentos, que possam gerar esse ganho para a administração pública ao mesmo tempo que um ganho de qualidade para a população. E aí você tem na parte de segurança, de iluminação pública, de coleta do lixo, da gestão de tráfego, enfim, no controle de dados. Já existe uma biblioteca de experiências dessas iniciativas de cidades inteligentes, que têm um viés sustentável. Há muito avanço, inclusive no que é chamado de arquitetura verde, construção verde, você tem aí os conselhos de construção verde em vários países que promovem não só pesquisa e desenvolvimento, mas também os projetos.

Além de adotar medidas para reduzir emissões, o desenvolvimento sustentável precisa de uma reconciliação maior com o meio ambiente, incluí-lo de outras formas?

Se você não cria uma urbanização que vai deixar de consumir área verde para transformar em área de concreto e asfalto, vai começar gerar mais problemas. Aqui, em Roterdã, a prefeitura lançou um plano de aumentar em 10 vezes a cobertura vegetal. Singapura está fazendo isso há muito tempo também. Estão fazendo umas coisas impressionantes, de recuperar a mata ciliar e fomentar o uso de vegetação em todo tipo de edifício e espaços públicos, de coisa séria, de escala. Você tem aí uma série de conhecimentos e tecnologias que tem que ser introduzidas nessa coisa mais micro da gestão urbana. A gente deveria também desmistificar de que meio ambiente está ali e que não se toca. Com tecnologia e conhecimento, chegamos à conclusão, por exemplo, que é possível fazer uso do meio ambiente para proporcionar desenvolvimento sustentável. A gente tem de ser bem cuidadoso para não dizer que está promovendo o desmatamento desenfreado, mas a gente está dizendo que o ambiente é parte da equação de desenvolvimento urbano sustentável.

Como seria a cidade do futuro?

Essa cidade sustentável será uma cidade onde seus resíduos sólidos são reciclados, onde eu posso ver a reutilização dessa matéria, como foi aqui, em Roterdã, na produção de tijolos para pavimentação. Então, você tem aí uma economia circular, que permite que tudo que a gente utilizar ser trazido de volta de alguma forma sem impactar o meio ambiente. Uma cidadania educada, que não joga plástico fora, que não joga lixo na calçada, que respeite os direitos do outro de ir e vir. Uma cidadania que exerce o seu direito humano e respeita esse direito dos outros, e que cumpre com as suas obrigações como cidadão. Uma cidade onde eu possa caminhar, pegar a bicicleta e sair até um parque, onde eu possa desfrutar de lugares de silêncio, onde possa ter habitação de qualidade, que respeite o seu entorno, e onde você tenha acesso aos equipamentos mais necessários que uma pessoa precisa. Uma cidade que usa a sua capacidade fiscal em benefício da coletividade, e não só para alguns, que já são beneficiados demais. Acho que é um conjunto dessas coisas. E onde você possa ter acesso à cultura e à diversidade, que é uma coisa super interessante da cidade, que a gente aprende com os diferentes. Acho que aquela ideia da cidade da proximidade, que Singapura usou e agora Paris está querendo usar, eu chamo de cidade da proximidade e cidade da prosperidade, que são essas duas coisas: a conveniência dos serviços de qualidade e aquela aglomeração que me permite sentir parte de alguma e ter um controle social.

Estadão
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