A argola dourada na orelha esquerda lembra os velhos lobos do mar, aqueles de filmes e histórias. Mas esse é o único traço da aparência de Hamid van Louhuiden que lembra os capitães do cinema e da literatura. O capitão do Arctic Sunrise é magro, tem quase dois metros de altura, cabelos loiros, pele bronzeada e olhos azuis-claros. Ao assumir o comando do navio em Porto Alegre, recebeu cada um dos tripulantes com uma rosa branca. Quando cruza com alguém a bordo, sempre o cumprimenta com um sorriso.
Durante uma hora* de conversa na ponte de comando, Hamid mostrou por que, apesar da aparência dizer o contrário, é um legítimo lobo do mar. Solitário, ele passa a maior parte do tempo calado, olhando o mar. Ao contrário de muitos tripulantes, prefere não ter romances a bordo, para não misturar a vida profissional, que leva muito a sério, com a pessoal.
Quando fala da vida pessoal, expõe, mesmo que a contragosto, seu maior sofrimento: a solidão. Aos 35 anos e boa-pinta, ele continua solteiro, mas conta que, volta e meia, se flagra em devaneios pensando em namoro em casamento. O que mais sente falta e que gostaria de ter, garante, é alguém o esperando em casa quando volta de viagem. Mas sabe que relacionamentos duradouros não combinam com a vida nômade que leva, passando de seis a nove meses a bordo de um navio. Até pensa em deixar a vida de marinheiro e ter uma vida normal, mas acaba sempre desistindo. “O mar é mais forte", justifica.
Homem de poucas palavras e voz grossa, o capitão responde às perguntas com o máximo de objetividade, mesmo quando a conversa tem tom de bate-papo. Sentado de braços cruzados em sua cadeira, no meio da ponte de comando, ele monitora meia dúzia de radares e aparelhos, mas seu olhar parece sempre se dirigir à linha do horizonte. O sotaque ao falar inglês denuncia sua origem holandesa, embora o nome, Hamid, seja árabe. Além de inglês e holandês, ele fala e entende português e espanhol, devido à convivência com gente de tantos países nos 15 anos em que já viaja com o Greenpeace.
A paixão pelo mar e pela vida a bordo começou muito antes de aderir à ONG. Aos seis anos de idade, anunciou: vou ser marinheiro. Para os pais, a decisão não significou muito; nessa idade, todo garoto quer ser bombeiro, astronauta ou policial. Mas Hamid garante que desde aquele tempo, já era uma certeza. O motivo? A busca pelo novo – lugares, pessoas, coisas. E a paixão pelo mar.
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Aos quinze anos, ingressou em uma escola especial para a formação de marinheiros. A teoria e os cálculos, no entanto, não o atraíam – queria logo navegar. Aos dezoito anos, então, surgiu a primeira oportunidade de emprego. Largou a escola e embarcou como contramestre em um navio comercial.
A vida como ativista do Greenpeace começou mais ou menos na mesma época. Aos vinte anos, foi convocado pela ONG para participar de uma expedição a bordo do Beluga, um pequeno navio a motor do Greenpeace. O interesse pelo trabalho na ONG surgiu depois de trabalhar em um navio comercial com uma tripulação muito ruim, que deixou Hamid descontente e o fez buscar novas experiências. Como sempre se interessara pelo meio-ambiente e gostava das ações diretas do Greenpeace, escreveu uma carta e foi convocado quatro meses depois.
Desde então participou de várias ações diretas, muitas envolvendo até perigo de vida. Já se jogou com botes infláveis em frente a navios com carga radioativa e foi ameaçado pela polícia com arma na cabeça durante protestos. Nos primeiros anos de Greenpeace, seguia trabalhando paralelamente em navios cargueiros. Concluiu a escola sete anos depois de tê-la deixado, e obteve a licença para ser capitão.
Aos 29 anos, foi convocado pela primeira vez para navegar como capitão – por coincidência, no mesmo navio em que havia estreado no Greenpeace, o Beluga. Embora se achasse jovem demais para ser capitão e ficar enfurnado na ponte de comando, aceitou o desafio. Desde então, já participou de várias expedições do Greenpeace como capitão. Voltaria a trabalhar na marinha comercial, se surgisse uma oportunidade imperdível? Talvez, responde, mas deixando claro que o dinheiro não faz diferença. O que importa é navegar.
* Por ironia do destino ou não, tivemos de interromper a entrevista depois de uma hora de conversa. Justo nessa noite, com tantos meses de experiência e navegação em alto-mar, Hamid sentiu-se mal, enjoado e com dor-de-cabeça. "Deve ser algo que comi", justificou, "nunca senti isso antes", disse, antes de passar o comando a seu substituto, Jorge, e despedir-se de mim, dirigindo-se a seu camarote.
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