MURILO
MENDES: MODERNISTA DESARTICULADO
Poeta reverenciado e figura independente do modernismo brasileiro
é revisto em duas novas publicações Murilo
Mendes - Ensaio Crítico, Antologia, Correspondência
e A Trama Poética de Murilo Mendes
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Reprodução/Divulgação/ |
O
poeta (centro) foi retratado por pintores como Ismael
Nery (acima) e Portinari (abaixo) |
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São
Paulo -
O poeta
Murilo Mendes instaurou na palavra o seu império. O respeito foi
declarado em um poema por Carlos Drummond de Andrade que, como os
demais poetas que despontaram nos anos 20 e 30, quando o modernismo
fervilhava, reconhecia naquele mineiro o revolucionário que convivia
amorosamente com o tradicional. A poesia própria, única, inusitada
de Mendes foi reverenciada ainda em outros países, especialmente
na Itália, onde ele passou os últimos 18 anos de vida. Período marcado
também pelo sofrimento com a indiferença à sua obra no Brasil, só
recuperado com lançamentos ocasionais como os que chegam agora às
livrarias: Murilo Mendes - Ensaio Crítico,
Antologia, Correspondência (Editora Perspectiva, 400
páginas, R$ 30), de Laís Corrêa de Araújo, e A
Trama Poética de Murilo Mendes (Lacerda Editores, 199
páginas, R$ 20), de Leila Maria Fonseca Barbosa e Marisa Timponi
Pereira Rodrigues.
O
múltiplo universo muriliano transborda em variadas leituras de
estudiosos, pesquisadores, poetas e críticos no Brasil e no exterior.
Os estudos desses dois livros se completam não apenas no resgate
da importância da obra do poeta como também no objetivo de apontá-lo
como uma figura independente do modernismo brasileiro. Mendes
estreou na literatura em 1930 com o livro Poesia, aclamado
como o conjunto de versos mais fortes e mais enigmáticos até então
surgidos na língua portuguesa.
Se
o poeta não se postou logo na linha de frente dos modernistas,
argumenta Laís Corrêa de Araújo, é de supor que sua abstenção
tenha tido caráter mais pessoal, ou seja, a atitude independente
de "franco-atirador", coerentemente mantida por toda a vida ,
aliada, talvez, à famosa característica de "mineiridade", que
pressupõe, mais que a timidez, uma certa desconfiança pela grandiloqüência
dos "manifestos e programas".
Laís
travou um longo contato com o poeta, mantendo até mesmo uma ativa
troca de correspondência. Alguns originais estão reproduzidos
no livro e revelam sua independência estética. É curioso anotar,
escreve a autora, que não constam, entre a enorme, explorada e
divulgada correspondência de Mário de Andrade, cartas de Murilo
Mendes, à busca de conselho, orientação ou aprovação. "No longo
comércio de questionamento e consulta que lhe fiz, quando escrevendo
o ensaio sobre sua obra, nenhuma menção foi feita sobre interferência
alheia opinativa quanto à sua escrita poética", afirma Laís.
A
única exceção foi uma correspondência enviada, em 1920 a Alceu
Amoroso Lima, que se surpreendeu com o conteúdo. "Era um rolo
de papel escrito no verso de folhas impressas do Banco Boavista,
contendo poesias escritas à mão ou à máquina. Fiquei encantado
com elas e escrevi (...) um rodapé no O Jornal sobre esse
desconhecido, que parecia revelar uma força poética e profunda,
com um extraordinário senso de humor." A observação é mais uma
constatação de que o poeta acompanhava atentamente as mudanças
estéticas e culturais que aconteciam no Brasil e na Europa, especialmente
as correntes que se lançavam à renovação da poesia, apesar de
não se filiar a nenhum movimento.
O
momento em que mais se aproxima dos modernistas é com o livro
História do Brasil, publicado em 1932. A observação é feita
tanto por Laís como pelas autoras de A Trama Poética, Leila
Barbosa e Marisa Rodrigues. Nesta obra, Murilo Mendes revelou
um posicionamento ao mesmo tempo satírico e laudatório dos fatos
do Brasil, com o estilo intencionalmente chocante de uma linguagem
coloquial e que não dispensa a retórica ufanista. São os poemas-piadas,
criados anos antes por Mário e Oswald de Andrade, pequenos versos
que se constituem em um lema nacional, como em Homo brasiliensis:
"O homem/ É o único animal que joga no bicho."
Por
entenderem que A História do Brasil trata de um espaço
de subversão, da transgressão, de uma face brasileira típica de
sua picardia, as autoras de A Trama Poética acreditam que
o poeta contribui para a estética da malandragem brasileira, algo
também verificado em Poemas, em que faz alusão a Pedro
Malazartes, não só pelo título como também por recuperar a esperteza
do jabuti que não se fixa "nos caminhos do mundo", por reverter
a ordem, consolidando heróis vagabundos glorificando os soldados
vencidos.
Apesar
da bela capa de Di Cavalcanti, Murilo Mendes renegou a vida toda
essa obra, principalmente ao organizar uma coletânea, publicada
em 1959. No prefácio daquela edição, ele escreveu que aquelas
poesias "destoam do conjunto da minha obra: sua publicação aqui
desequilibraria o livro. O que se chamou de minha "fase brasileira"
e "carioca" está suficientemente representado em algumas partes
dos Poemas e em Bumba-meu-Poeta".
Catolicismo
- A Murilo, importava mais as ramificações religiosas em sua obra.
Sua poesia, desde a estréia, apresentava-se a Tristão de Athayde
como "um dissídio constante e angustioso entre o angelismo e o
demonismo", atingindo a uma "intensidade póetica nunca alcançada
em nossos versos". Quando se reconverteu ao catolicismo, no momento
da morte de um grande amigo, o pintor Ismael Nery, o poeta inicia
sua busca de restaurar a poesia em Cristo, agravando essa luta
entre o bem o mal, "entre Deus e o diabo, entre o Espírito e o
Corpo". Trata-se de uma influência marcada pela religião católica
essencialista.
A
fineza e o equilíbrio são marcas da poesia produzida nessa época,
que se caracteriza também por ser uma obra excêntrica e hermética,
que foge à lógica e se desliga da realidade imediata, que se dirige
ao sobrenatural e ao transcendente. O lado negativo, porém, vai
acontecer quando Murilo descreve o confessionário como o escuro
ventre de uma baleia, comparando-o ao teatro da crueldade de Antonin
Artaud, em que a poesia é evaporada, pois os segredos devem ser
contados a um outro.
É
dessa época Tempo e Eternidade, que Murilo assinou com
o poeta também católico Jorge de Lima e em que se destaca o poema
Oração. Em seguida, escreve A Poesia em Pânico,
de 1937, que recebeu aplauso de Mário de Andrade. Sua produção
continua com O Visionário (1941), As Metamorfoses
(44) e Mundo Enigma (45), uma coleção de poemas dedicados
à mulher, Maria da Saudade Cortesão. Finalmente, Contemplação
de Ouro Preto (1954), em que o autor inaugura uma nova fase
em sua poesia: o reencontro com a verdade aparentemente contraditória
de que a tradição pode ser um atalho para o Absoluto.
Murilo
Mendes fez diversas viagens pela Europa, ensinando literatura
brasileira em Roma, onde se fixou no fim dos anos 50. A decisão
favoreceu um contato mais próximo com grandes artistas modernos
como Joan Miró, Marc Chagall e Georges Braque. Pela amplitude
de seus interesses e de seus relacionamentos, assim como pela
ligação de seus textos com a produção contemporânea mais atualizada,
Murilo Mendes adquire em seu período final uma dimensão mais cosmopolita.
Ao
mesmo tempo, suas obras foram traduzidas para o italiano e o espanhol
por, entre outros, Giuseppe Ungretti e Damaso Allonso. Em 1972,
Murilo Mendes ganha o prêmio internacional de poesia Etna-Taormina,
recebendo das mãos da atriz Monica Vitti (uma de suas preferidas)
o prêmio anteriormente atribuído a escritores como Dylan Thomas,
Salvatore Quasímodo e Jorge Guillén.
Não
se conforma, porém, com o crescente esquecimento de seu nome no
Brasil, onde espera ansiosamente ver publicada a obra completa.
Nas cartas trocadas com Laís Corrêa de Araújo, a angústia de Murilo
cruza as entrelinhas, quase que rogando pela intervenção da Imprensa
Oficial de Belo Horizonte a editar seus poemas, plenos da vitalidade
da vanguarda.
Ubiratan
Brasil
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