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As pessoas não conseguem compreender o que é o amor, diz psicóloga

Tatiana Paranaguá escreveu o livro Vínculo Fantasma depois de perceber que uma narrativa se repetia entre pacientes

26 jun 2024 - 18h00
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No vínculo fantasma a pessoa abandonada fica confusa, pois, para ela, havia um relacionamento
No vínculo fantasma a pessoa abandonada fica confusa, pois, para ela, havia um relacionamento
Foto: iStock / Jairo Bouer

Há várias coisas que intrigam a humanidade e, com certeza, podemos falar que o amor é uma delas. Afinal, o que ele é para uma pessoa pode não ser para outra. Aliás, nem sabemos ao certo como defini-lo. E não existe apenas uma forma de amor, mas a que costuma fazer mais estragos é mesmo o chamado amor romântico. E, nesta época de amores líquidos e fluidos, de verbos como orbitar e termos como gaslighting e ghosting, surge mais uma expressão para definir relacionamentos que terminam de repente: vínculo fantasma.

O termo foi cunhado por Tatiana Paranaguá, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Rio, onde lecionou por 17 anos. Ela também é fundadora da clínica e escola de psicologia analítica Centro Junguiando, coordenadora da formação de analistas junguianos e professora da Casa do Saber. Depois de ouvir várias histórias parecidas, ela percebeu que um fenômeno estava surgindo, apesar de não ser algo novo, mas que começou a se tornar mais comum do que antes.

Capa do novo livro da picóloga Tatiana Paranaguá
Capa do novo livro da picóloga Tatiana Paranaguá
Foto: Jairo Bouer

Ela explica, na entrevista abaixo, que o vínculo fantasma é mais grave que o ghosting, pois este segundo quase sempre não vai além do contato por meio digital. Já o primeiro ultrapassa essa barreira e vira convivência, deixando a vítima, que é abandonada de repente, muito confusa e transtornada. O interesse no assunto foi tanto que Tatiana acabou escrevendo o livro Vínculo fantasma: os relacionamentos voláteis da atualidade (Editora Record).

Confira a entrevista que Tatiana Paranaguá nos concedeu a seguir:

-Comecemos pela pergunta mais óbvia, o que diferencia o ghosting do vínculo fantasma?

Ghosting é uma interrupção abrupta de alguma comunicação que é intermediada por algum aplicativo. As pessoas ficam conversando e, de repente, uma delas desiste da conversa e desse investimento inicial, mas que ainda é feito por meios digitais. O vínculo fantasma é mais grave porque, na verdade, ele ultrapassa essa barreira digital e passa a ser uma convivência. Ele se torna algo que parece um vínculo verdadeiro, em que uma pessoa passa a fazer parte da vida da outra, efetivamente, sem os meios digitais, que escondem. Sem aquela parede dos aplicativos que não mostra o ser humano, que não aparece como um todo.

Você estabelece um relacionamento, em princípio de ser humano para ser humano, mas, na verdade, uma dessas pessoas está encarando aquilo como uma experiência. O ghosting não é uma experiência, há uma tentativa de comunicação, um flerte. Quando a pessoa vai para o vínculo fantasma, quando isso se torna um sintoma, está esperando alguma coisa mais profunda, da qual o ser humano está cada vez mais carente, que é o vínculo verdadeiro com outra pessoa. Mas, ao invés da pessoa se entregar para o vínculo verdadeiro, ela quer uma experiência do que seria um vínculo verdadeiro. Ela não está disposta a assumir aquilo que precisa ser dado para que se estabeleça um vínculo verdadeiro. É uma ilusão, inclusive para quem pratica.

-A ideia do livro nasceu porque você viu a mesma situação se repetir no consultório, certo? A maioria era de pessoas que foram abandonadas ou de quem partiu?

Sim, a ideia do livro nasceu do consultório e dos meus pacientes particulares. Eu também tenho uma escola de psicologia analítica, é importante dizer isto porque tenho muitos alunos. E cada um desses alunos tem um bom número de pacientes trazidos para supervisão. Assim, tenho acesso a um número bem crescido de casos de vida. Observamos que isso [vínculo fantasma] estava acontecendo. Parei, olhei o fenômeno e começamos a chamar de vinculo fantasma, quando a pessoa some justamente nessas características que citei acima. A maior parte dos casos que chegou ao consultório foi de pessoas que sofreram, que foram vítimas. Depois, quando começamos a divulgar um curso sobre o tema, pessoas se identificaram como sendo os fantasmas e também vieram nos procurar, porque não queriam mais continuar com aquele comportamento, se sentiam aprisionadas em si mesmas, tinham consciência de que aquilo não era legal, de que estavam presas à uma imaturidade ao arquetipo do Puer Aeternus (criança eterna).

-Qual a porcentagem de homens e de mulheres que se encaixam em cada perfil?

Embora eu não faça uma estatística, a maior parte que pratica [o vínculo fantasma], são homens. De forma alguma significa que seja "coisa de homem", e que mulheres não o façam. Existem muitas mulheres que praticam este tipo de vínculo, que somem, e não são poucas, mas tenho de admitir que a maioria é formada por homens, o que não faz com que seja um comportamento exclusivamente masculino, é algo bem diferente.

-E as faixas etárias? Variam ou há uma que se destaca?

De novo, não há estatística, mas varia entre 25 e 45 anos, mas isso não significa que não aconteça em uma faixa mais jovem. Porém, temos que entender que neste momento - quando se é mais jovem -, é possível que essa imaturidade ainda faça parte legítima de um processo. Mas o vínculo fantasma não é uma coisa nova, vem de muito tempo. Enquanto epidemia, realmente está se tornando um problema e corroendo as possibilidades de relacionamentos mais profundos de ser humano para ser humano, que estamos encontrando hoje. Eu mesma já atendi pessoas passando por esta situação, com idade bem acima desta faixa etária, com 50, 60, 60 e poucos anos. Ter uma idade específica, não tem. É um comportamento humano daquele que não consegue criar vínculos, provavelmente por uma imaturidade profunda e que perdura anos a fio.

-Você diz no livro que pacientes comentaram que o amor não existe. Por que acha que isso está acontecendo?

As pessoas não conseguem compreender o que é o amor, e isso não é de hoje. Toda vez que alguma coisa acontece, deixa uma marca perceptível, como esta epidemia, que tem várias características. Isso é fruto de diversos fatores que vieram se acumulando e fizeram com que se tornasse notável, que se amalgamasse desta forma. Um dos fatores é que as pessoas vêm plantando há muito tempo uma ideia deturpada daquilo que é o amor. O amor que se deseja ter com um ser humano, como sendo uma coisa impossível, no qual o maior parâmetro é [a peça] Romeu e Julieta, de Shakespeare. Aquilo que é impossível, causa sofrimento, é proibido, morre cedo e ainda belo. Isso seria o amor. Quando as pessoas encontram o amor como sinônimo disso, que é uma paixão juvenil… Pense bem, falo muito de Romeu e Julieta [no livro] por conta da condição da imaturidade, porque eles eram jovens. Esse grande paradigma do amor traz dois adolescentes que não deixaram esse relacionamento amadurecer. Simplesmente terminou de forma mortal, e nunca se realizou, ou se se realizou em uma outra esfera que não é a esfera do mundo concreto. É como se tirássemos a possibilidade desses vínculos reais do dia a dia, do companheirismo legítimo, e não só de ser companhia. Como se isso não fosse amor, por quê? Como se o amor tivesse de ser aquela paixão que nunca acaba, eternamente juvenil, e o vínculo amoroso verdadeiro se faz no dia a dia. Então, as pessoas não estão entendendo o que é o amor. E elas se desiludem porque é um ideal ilusório, é inalcançável e, logo, o amor não existe. Elas desistem e passam, às vezes, a ter uma posição muito cínica ou perdida com relação ao tema.

"O amor nunca foi uma coisa fácil", Tatiana Paranaguá - Foto de Jonathas Dias
"O amor nunca foi uma coisa fácil", Tatiana Paranaguá - Foto de Jonathas Dias
Foto: Jairo Bouer

-De uns anos para cá, ouvimos muito que temos de nos colocar em primeiro lugar, pensar em nós primeiro e tal. Este tipo de pensamento teria alguma influência sobre a pessoa que costuma praticar o vínculo fantasma?

O autocuidado e o amor-próprio são positivos. A pessoa aprender a se olhar, a se tratar com amor, é positivo, pois é uma conscientização que tenho de cuidar de mim também, da minha vida. Prestar atenção principalmente ao autoconhecimento e ao desenvolvimento da minha consciência. Prestar atenção na intuição e em quais são os meus caminhos. Mas quando isso é deturpado, sai de uma questão que levaria ao equilíbrio, e é deturpado como uma situação de egoismo e individualismo, no qual sou eu primeiro e antes de tudo e todos... Isso realmente bloqueia aquilo que marca o que é o amor, que é uma doação. E as pessoas quando falam de alguma doação, começam a se arrepiar, pois não querem abrir mão de absolutamente nada. E aquilo que nós fazemos ser valioso é justamente aquilo no qual investimos algo que é valioso para nós também. Isso não está ajudando em nada. É um dos pontos que falei antes, e que está deixando a situação como está agora, alarmante.

O que eu posso dizer é que este tipo de comportamento, que a gente assiste hoje em dia e que é corroborado como sendo um bom comportamento, é que, no final das contas, tenho de fazer o melhor para mim. E este melhor para mim é extremamente subjetivo e nem sempre se encaixa naquilo que faz com que eu me entenda como um ser que convive e que tem outros seres humanos que precisam ser olhados, tão humanos quanto eu, inclusive isso faz parte do amor. Então, quando me afasto e não enxergo no outro a mesma humanidade que quero para mim, que quero que enxerguem em mim... Aí, já tem um corte do amor. E isso é reforçado nos dias de hoje, no amor como um todo, esta mentalidade realmente nos afasta da experiência profunda do amor. O amor conjugal e o amor como um todo, por outros seres humanos, que precisa existir.

-Como costuma ser o perfil dessas pessoas? Narcisistas, talvez? Ou o mesmo perfil não vale para todas as pessoas?

No livro, coloco que existem muitas pessoas que praticam o vínculo fantasma por terem traços narcísicos muito fortes e outras pessoas simplesmente sofrem também por agirem dessa forma, mas não conseguem ser diferentes. Nem toda pessoa que pratica o vínculo fantasma pode ser classificada como narcisista, embora muitas o sejam. Porque, inclusive, dentro daquela pergunta anterior, que respondi, o comportamento narcísico tem sido muito reforçado como sendo um bom comportamento, que vai levar a pessoa à satisfação plena, ininterrupta, acima de tudo e todos. E quando a pessoa entende que a felicidade é isso, podemos entender que temos um problema aí.

-O especialista em visão global dos relacionamentos do aplicativo de encontros Tinder e autor do novo livro Find Love: How to Navigate Modern Love and Discover the Right Partner for You ("Encontrar o amor: como navegar pelo amor moderno e descobrir o parceiro certo para você", em tradução livre) disse em uma entrevista à BBC que encontrar e manter o amor hoje em dia é mais difícil do que em qualquer outro momento da história humana. Isso porque existem mais variações do que é considerado um relacionamento aceitável e por estarmos exigindo mais de um parceiro do que antes. Concorda?

O amor nunca foi uma coisa fácil. O amor é uma das maiores construções e buscas do ser humano. E ele só encontra esse amor mais profundo e fidedigno quando existe uma entrega de consciência e sentimento. Esta é a grande luta do ser humano. Diria que aprender a amar é a grande busca do ser humano. Aprender a dar e receber. O que é o amor é uma pergunta muito mais profunda. Então, não posso dizer que antigamente era mais fácil. Quanto às exigências de um parceiro, tenho de ver se elas se encaixam naquilo que faz com que o amor consiga ser mantido, ou se as exigências simplesmente querem manter um padrão de satisfação naquilo que projeto no outro e quero ter de volta senão aquele relacionamento não vai valer a pena. O amor está acima de classificações do que eu quero ou não quero com o outro. E através dos tempos não acredito que o amor tenha sido mais fácil.

-Quem vai embora sem pensar na outra pessoa não tem noção de que isso irá magoar? Acho difícil acreditar nisso, mas me convença...rs

Existem pessoas, sim, que saem [da relação] sem a menor noção de que aquilo será extremamente danoso para o outro, até que a experiência se inverta e sofra aquilo que ela fez a outra sofrer. Algumas pessoas nem assim, aquelas que estão extremamente centradas nelas mesmas têm uma ilusão de que se está bom para elas, está bom para todo mundo. Se está me fazendo feliz, é porque é certo. Parece algo óbvio: claro que não está.

-Acredita que as pessoas vão mudar de atitude, que esse comportamento que agora é tão corriqueiro possa retroceder?

Sim, eu realmente acredito. Costumo dizer que se eu não acreditasse que o ser humano tivesse a possibilidade de ter mais consciência e se transformar, eu ia fazer outra coisa da vida e não o trabalho que faço. Eu acredito neste trabalho, acredito na transformação do ser humano, na abertura e na expansão da consciência para compreender o que está acontecendo. E quando isso é possível, sim, os comportamentos podem ser transformados. Aliás esta é a nossa grande missão aqui, transformação para alguma coisa mais construtiva. Assim que vejo. Eu olho o problema, eu vejo que ele existe, eu falo que existe, não douro a pílula, coloco todas as cores que ele tiver, mesmo que não sejam as mais belas. E falando: 'olha o que temos, vamos transformar isso?". Um dos objetivos do livro é denunciar o que está acontecendo, fazer com que as pessoas entendam, nomear para facilitar a percepção. E, a partir daí, poder trazer uma transformação na consciência. O objetivo do livro é tornar as pessoas conscientes para este tema. E, a partir deste aumento da consciência, promover uma transformação verdadeira. Então, se eu acredito? Sim, acredito, e meu trabalho é este.

Jairo Bouer
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