Como um trauma pode fazer alguém tomar decisões distantes da realidade?
O sumiço da enfermeira Gabrielly Sabino após vício em 'jogo do tigrinho' levantou pontos interessantes de se discutir sobre saúde mental
O desaparecimento da enfermeira Gabrielly Sabino, de 23 anos, no interior de São Paulo, e sua posterior reaparição, uma semana depois, no Mato Grosso do Sul, levantam dois pontos interessantes de se discutir do ponto de vista da saúde mental: como uma crise de ansiedade pode levar uma pessoa a assumir comportamentos com uma desconexão parcial ou total da realidade, e o risco crescente entre os jovens da dependência aos jogos de aposta online.
Não está 100% claro o que aconteceu, mas Gabrielly estaria viciada no “jogo do tigrinho”, espécie de caça-níquel virtual, em que os jogadores apostam dinheiro com o objetivo de alinhar três figuras iguais em três fileiras distintas. Quem acerta, ganha prêmios financeiros. O desejo de ganhar cada vez mais teria feito ela apostar muito e se endividar.
Hoje se discute muito os efeitos aditivos que as telas têm entre os jovens. Quanto mais tempo online, mais difícil se desconectar. Quando há algum tipo de recompensa envolvida, como no caso dos jogos virtuais e nas plataformas de apostas, o risco de dependência é ainda maior.
Segundo a mãe, a enfermeira teria acumulado dívidas da ordem de R$ 25 mil reais, o que fez com que ela desenvolvesse uma crise de ansiedade, não conseguisse resolver sua angústia, e achasse que desaparecer seria a melhor saída. Não fica claro nas entrevistas e depoimentos até que ponto ela teria consciência das decisões que assumia. Dessa forma, a jovem foi parar na casa de uma mulher em outro estado que ela teria conhecido pela internet.
Segundo os pais, durante o período em que passou desparecida, ela seguia visualizando mensagens, mas não respondia nem atendia ligações. A enfermeira saiu de casa para ir ao trabalho no último dia 14 de junho mas não retornou. As imagens obtidas pela policia mostravam ela dirigindo seu carro até a rodoviária de Piracicaba e embarcado em um ônibus para o Terminal Rodoviário do Tietê, em São Paulo.
Gabrielly sempre teve equilíbrio em sua vida financeira, porém nas últimas semanas teria pedido dinheiro emprestado a amigos e familiares e recorrido a agiotas. Importante perceber como situações de pressão e estresse podem levar muita gente, ao invés de buscar ajuda, a tomar decisões de ruptura, como desaparecer, muitas vezes desconectadas parcialmente ou totalmente da realidade.
Ao longo dos anos atendi pacientes que durante um quadro de depressão ou de uma crise de ansiedade, ou ainda, depois de um trauma psíquico (briga, separação, violência, assalto) sumiam de suas casas, perdiam a memória e a noção de quem eram, e só retomavam a consciência semanas ou meses depois. Essa perda de contato com a realidade (surto) pode acontecer por diversas causas e tornar essas pessoas mais vulneráveis a toda sorte de riscos.
Sem conhecer bem todos os detalhes e o quadro clínico é impossível cravar um diagnóstico ou saber com exatidão o que aconteceu com Gabrielly. Ela pode ter tido tanto essa “quebra” não intencional de contato com a realidade pela pressão que enfrentava, como pode ter adotado uma decisão intencional de desaparecer para fugir de um problema que não estava conseguindo resolver e para o qual tinha vergonha de pedir ajuda. Mesmo nesse segundo caso, a capacidade de pensar e tomar a decisão mais acertada pode estar comprometida pelas distorções provocadas pelo medo e pelo estresse.
O jogo do tigrinho é desenvolvido por uma empresa que não tem sede ou representação no Brasil, e nas últimas semanas tem sido investigada pela suspeita de que estar contratando influenciadores digitais que usariam uma versão da plataforma “viciada” para ganhar com mais facilidade e, assim, convencer outras pessoas a apostar. O jogo também enviaria convites pelas redes sociais a partir de perfis falsos para que as pessoas façam suas apostas.
Vale o alerta para que pais e amigos fiquem mais atentos às mudanças de comportamento que uma pessoa pode enfrentar em uma situação de pressão psíquica e, também, os cuidados com a dependência que jogos de apostas podem condicionar. Quanto mais jovem, maiores esses riscos.
*Jairo Bouer é médico psiquiatra e escreve semanalmente no Terra Você