Desafio do cotonete e ataque de pânico podem ter relação?
Será que pais e responsáveis estão conseguindo participar do processo de construção da autonomia digital dos mais novos de forma adequada?
Na última semana recebi uma dúvida de um jovem que contava ter participado uma única vez do “desafio do cotonete” no último ano, e que vinha apresentando há um mês um quadro de crises de pânico, com sensação de morte iminente, na reta final da preparação para o Enem e vestibulares.
Para quem não lembra, o desafio viralizou nas redes sociais no final de 2022 incentivando os jovens a acenderem uma das pontas de um cotonete com um isqueiro para inalar a fumaça. Problemas: a queima do plástico e do algodão pode liberar produtos tóxicos que irritam as vias respiratórias, além do risco de queimaduras na boca e no rosto.
Crise de ansiedade
A participação frequente nesse tipo de desafio pode aumentar o risco de quadros alérgicos e de pneumonias químicas, principalmente em quem já enfrenta um problema respiratório. Mas é pouco provável que a experiência única do ano anterior possa ser a responsável pelo quadro de pânico.
Na reta final da preparação para o vestibular e para o Exame Nacional de Ensino Médio, o mais plausível é que o cansaço, o estresse, o medo de não ser aprovado e a ansiedade sejam os gatilhos para as crises desse jovem.
Nesse sentido, tentar controlar a ansiedade, usando técnicas de relaxamento e descompressão, gerenciando melhor o estresse, cultivando momentos de lazer, fazendo terapia e, nos casos mais graves, até mesmo usando medicamentos sob orientação médica, por um tempo limitado, são algumas das medidas possíveis para o controle desse quadro.
Desafios e autonomia
O desafio do cotonete e tantos outros que surgem nas redes nos lembram da importância de se discutir uma gestão compartilhada do uso que os mais jovens fazem das tecnologias. A construção da autonomia digital de crianças e adolescentes é um processo em que pais, responsáveis, educadores e os próprios jovens devem participar.
Apesar de nativos digitais, eles não nascem sabendo tudo sobre segurança e formas de se evitar riscos. No auge da juventude e das crises de autoestima, ávidos por serem aceitos em grupos com os quais se identificam, desafiando seus próprios limites para provar para si mesmo que podem ter mais poder e liberdade, não é incomum que eles topem desafios, aceitem presentes digitais de estranhos e compartilhem informações e imagens sigilosas e sensíveis, sem medir consequências.
Dessa forma, a educação digital desses jovens precisa começar desde cedo e ser feita de forma permanente. É um tipo de ação que só vai funcionar e ter fôlego se for construída conjuntamente.
Saúde Mental
Já o quadro de pânico evidencia uma questão muito importante nos dias de hoje: o quanto esses jovens têm estado vulneráveis do ponto de vista da saúde mental. Se por um lado, buscar a interlocução com um médico que cria conteúdo digital mostra uma proatividade para a resolução de uma angústia, pode revelar também o quanto ainda é difícil falar do tema com amigos, pais e responsáveis. Via de regra o jovem enfrenta sozinho essa dor, o que pode dificultar o acesso a avaliação e tratamento, colocando muitos deles em risco.
Investir em programas de saúde mental que mostrem para o jovem o quanto é importante vencer estigmas e tabus para poder falar o que sentem e pensam, pode aumentar a qualidade de vida e o bem-estar dessa geração.
E o que pode ser muito útil é unificar a discussão de educação digital, autonomia nas redes e saúde mental. Da mesma forma que as tecnologias são úteis e fundamentais na vida dos jovens, elas também podem trazer vulnerabilidades, violências e exposição, comprometendo as emoções e as decisões deles.
Aprender a perceber o que faz mal, poder limitar os usos das telas por conta própria, entender quais são os melhores caminhos a ser trilhado e poder buscar ajuda diante de situações que trazem risco ou desconforto são o começo de uma navegação que junta saúde mental e segurança.
De novo, esse processo pode acontecer da melhor forma possível quando todos as partes interessadas podem participar e opinar. E, claro, ajustes e limites vão sendo feitos e revistos na medida em que o adolescente mostra que sabe se cuidar. E você: ainda acha melhor proibir ou começa a considerar que o importante é ensinar a usar?
*Jairo Bouer é médico psiquiatra, comunicador e publica suas colunas no Terra Você às sextas-feiras.