Qual a relação entre ideias obsessivas, medo de engravidar e receio do HIV?
Acreditar que há risco de transmissão de HIV em comportamentos em que não existe chance de exposição ao vírus ou entrar na paranoia de uma gravidez indesejada após um simples beijo na boca são alguns exemplos de pensamentos que podem se tornar obsessivos e paralisar a vida de uma pessoa.
Ideias e rituais
Ideias obsessivas são pensamentos repetidos, fantasias ou vontades indesejadas que invadem a cabeça de uma pessoa produzindo emoções negativas, em geral, angustiantes.
Elas representam uma repetição insistente em torno de um tema, pessoa, imagem ou dúvida. Mesmo reconhecendo que as preocupações são absurdas e irracionais, há uma grande dificuldade de impedir que elas apareçam.
Muita gente não consegue focar em suas atividades e rotinas habituais por conta desses pensamentos que “tomam conta” da mente. Esse tipo de ideia pode ser sintoma de um transtorno obsessivo compulsivo (TOC) ou de outros quadros de ansiedade.
As ideias obsessivas podem se manifestar de diversas maneiras: medo de se contaminar, receio de que a casa vai ser invadida, que o gás vai vazar ou, ainda, que algo muito ruim vai acontecer.
No caso do TOC, além das ideias, existem comportamento compulsivos, que são rituais adotados para tentar aliviar o desconforto gerado por uma obsessão. Assim, lavar as mãos insistentemente, checar se o gás ou a porta estão fechados inúmeras vezes antes de sair de casa, contar números ou azulejos sem conseguir parar, fazer perguntas repetidas são algumas das manifestações possíveis.
Dúvidas como sintoma
No campo da sexualidade pode acontecer a preocupação exagerada e desmedida com o medo de engravidar ou de se infectar com o vírus HIV, causador da Aids, sem que haja qualquer prática ou comportamento de risco.
Trago aqui dois exemplos recentes de jovens que me procuraram pelos meios digitais muito angustiados com esse tipo de preocupação. No primeiro caso, um estudante da área da saúde resolveu fazer um teste rápido de HIV por conta dos estágios que passou durante a faculdade. O teste veio negativo.
Mesmo assim, ele “encanou” que um outro rapaz havia feito o teste antes dele e demorado na sala. Na sua fantasia, o outro seria positivo e uma eventual gota de sangue que pudesse ter caído na mesa do consultório poderia ter tocado em sua mão ou braço e causar a temida infecção. Depois do teste ele teria tomado banho e tocado no seu pênis.
Mesmo diante das minhas respostas negativas, ele insistia em outras infinitas possibilidades. E se ele tivesse um machucado no braço? E se ele tivesse se masturbado antes ou durante o banho? E a diarreia que ele estava tendo? E se estivesse positivo sem saber e infectasse sua parceira?
Enfim, mesmo diante de inúmeras respostas mostrando que não havia risco, ele entrava em um “looping” infinito de conjecturas sobre possibilidades e chances. Apontei, depois de cerca de 10 negativas, que ele já sabia qual seria a minha resposta e, perguntei se ele percebia o exagero de suas preocupações?
Ele disse que percebia, mas que não conseguia se controlar. Sugeri, então, a busca por uma terapia para que ele pudesse entender melhor o que estava acontecendo e, assim, cuidar dessa preocupação excessiva, que estava paralisando sua vida afetiva e profissional.
Prazer e seus tabus
No segundo caso, uma outra seguidora das redes insistia no risco de estar grávida após uma situação em que não havia a menor chance. Fora do período fértil, usando contraceptivo, sem penetração, sem ejaculação, não teria como um espermatozoide encontrar um óvulo.
Mesmo depois de sucessivas explicações, ela continuava a criar hipóteses sem nexo, como risco de gravidez ao tomar banho com o mesmo sabonete do irmão, usar toalha para secar as mãos de um banheiro público, sentar no vaso sanitário do shopping, e por aí vai.
A desconfiança da gravidez vinha de sintomas genéricos como tensão, dor nas mamas e mais sono do que o habitual. Ela resistia às minhas sugestões que seu medo e preocupação justificavam a maior parte das questões que vinha enfrentando.
Tanto o exagero com o risco de infecção pelo HIV, quanto a possibilidade de uma gravidez indesejada, são muito frequentes entre adolescentes e adultos jovens. Em que pese um certo grau de desinformação, mesmo depois de todas as explicações possíveis, resta um nível de incerteza e de angústia muito grande em algumas pessoas.
Ou seja, não é só a informação. O fato de estarmos tratando de dois temas sensíveis em que estão envolvidas questões complexas de sexualidade, autonomia, prazer, estigmas, tabus, preconceitos, componentes religiosos e familiares, entre outros aspectos, cria um ambiente favorável a situações potencialmente geradoras de medo e ansiedade.
O que vou fazer se minha mãe descobrir que já faço sexo e que estou grávida? E se minha família souber que sou gay e que posso estar com HIV? E se eu engravidei minha parceira e tiver que assumir esse filho sem dinheiro e sem trabalho? No fundo, as preocupações desmedidas traduzem questões mais profundas e, talvez, ainda não bem resolvidas em relação à própria sexualidade.
O bom é que as pessoas, as famílias, as escolas e o serviços de saúde possam falar mais e melhor sobre esses temas e, caso a pessoa já se encontre emparedada diante de uma ideia obsessiva e angustiante que ela possa ter acesso às melhores informações e ao apoio de um profissional de saúde mental.
*Jairo Bouer é médico psiquiatra, comunicador e publica suas colunas no Terra Você às sextas-feiras.