'Cancelei encontro pra ver pornô': vício cresce na internet
Apesar de ainda não ser reconhecida como distúrbio pela classificação oficial de doenças, a dependência de pornografia é cada vez mais comum e impulsiona indústria erótica. Leia depoimentos
Júlia* sai de casa todos os dias às 7 horas da manhã para assistir à aula que começa às 8h. Ela estuda na Universidade de São Paulo e, à tarde, trabalha com a mãe “só para não ficar sem fazer nada”, porque se voltasse para casa e tivesse as horas livres, sozinha, estaria vendo sites pornôs sem parar. E é isso que ela faz à noite, por pelo menos duas horas seguidas, logo depois de jantar — exceto às quartas, quando, há três semanas, começou a frequentar uma terapeuta. “Já deixei de fazer trabalhos para a faculdade para ficar vendo sacanagem”, diz a estudante.
Aos 22 anos, Júlia reconheceu pela primeira vez que havia algo de errado com ela, quando dispensou uma saída com o rapaz com quem flertava há dois meses. “Assim que cancelei o encontro, abri o navegador no modo anônimo e comecei a digitar o endereço de um site erótico. Aí comecei a chorar: por que tinha feito isso?”, desabafa. Ela começou a acessar as páginas adultas aos 19 anos, quando o primeiro namorado, com quem estava junto há cinco anos, terminou o relacionamento para ficar com uma mulher um pouco mais velha. “Concluí que era porque, mesmo depois de tanto tempo juntos, a gente não se dava muito bem na cama, pois a namorada nova dele é supersensual. Resolvi recorrer aos vídeos para entender o que poderia melhorar. Falando assim parece tão besta”, admite.
Como ela, o carioca João Paulo* começou a usar a pornografia como válvula de escape. Sem nunca ter namorado sério e virgem aos 25 anos, o administrador de empresas acessava especialmente chats eróticos, procurando parceiras para “acabar com essa história”. Encontrou a primeira e não parou mais. Dois anos depois, ainda é um de seus passatempos preferidos. “Eu gosto principalmente da facilidade. Não tem que ficar de gracinha: todo mundo ali sabe o que quer. Não acho tão problemático assim, só por que só saio com mulheres que conheço em salas de bate-papo adulto?”, diz. O que o preocupa mesmo é que o sexo casual com desconhecidas não parece suficiente: ele passa cerca de quatro horas por dia procurando e assistindo a filmes pornográficos, nem sempre para se masturbar. “O que me excita é a procura, entrar de categoria em categoria, digitar palavras-chave... E o tesão quando encontro algo que me excita.”
Histórias assim são mais comuns do que parecem. Um levantamento realizado pela rede britânica BBC entrevistou especialistas em terapia sexual e de relacionamento e revelou que cerca de 74% percebiam o vício em pornografia, especificamente online, como um problema cada vez mais comum. No capítulo ‘Psicopatologia da sexualidade e Internet’, do livro Sexualidad y salud mental, coordenado pelo diretor da Associação Espanhola de Sexualidade e Saúde Mental, cerca de 20% dos viciados em Internet são especificamente dependentes de sexo — seja pela pornografia ou por chats eróticos.
Quem primeiro identificou, estabeleceu as variantes e catalogou os graus de dependência da internet com fins sexuais foi o professor Al Cooper, da Universidade de Stanford. Em 2000, ele publicou o livro Cybersex: the dark side of the force (Cybersexo: o lado negro da força, em tradução livre). Baseando-se em uma amostra de 9 mil pessoas, quase metade passava menos de uma hora desenvolvendo atividades sexuais online; 8,3% consistia o que ele considerou “casos de risco”, e 1% era, de fato, viciado.
Apesar da quantidade de especialistas que afirmam já terem tratado pacientes com o distúrbio, o transtorno de hipersexualidade não é considerado doença pelo Manual disgnóstico e estatístico dos transtornos mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, no original), considerado a bíblia dos psiquiatras. O DSM descartou o vício em sexo baseando-se na ideia de que não dá para definir o que constitui exatamente uma atividade normal, sexualmente falando, portanto também não seria possível dizer o que é anormal. Já no equivalente europeu, a Classificação Internacional de Doenças ou CID-10, aparece a ideia de “impulso sexual excessivo”, e existe uma publicação voltada especialmente ao assunto, a Sexual Addiction and Compulsivity.
Segundo a psiquiatra e neurocientista Célia Cortez, do Rio de Janeiro, a linha entre gostar e ser dependente de algo está no quanto sua vida é atrapalhada. “Como todo viciado, todo dependente, o indivíduo sofre quando não consegue fazer aquilo que deseja. Com a pornografia também existem sintomas de abstinência: uma angústia, tensão, um descontrole”, explica. Para ela, o vício em pornografia é uma subcategoria da dependência sexual.
Em alta
A multinacional Private Media Group, gigante da indústria pornográfica que conta com ações na Nasdaq, base em Barcelona e estúdios em várias cidades do mundo, afirmou que sofreu uma queda considerável nos lucros. Em 2010, as vendas totais somavam 23 milhões de euros; em 2013, o valor despencou para 5,5 milhões. Mas a empresa ainda é reconhecida principalmente na produção de conteúdo analógico, como DVDs e revistas, e apenas recentemente passou a apresentar o digital como foco. Quem chega já na internet encontra um mercado ainda em ascensão: a cada segundo, cerca de 3 mil dólares são gastos com pornografia e mais de 28 mil internautas estão vendo conteúdo adulto, e isso apenas nos Estados Unidos. A concorrência, entretanto, é pesada: surgem cerca de 260 novos sites pornográficos diariamente.
A ascensão da pornografia na internet vem seguida de debates acalorados sobre as consequências de ter tanto material disponível. Será que encoraja mais hostilidade contra mulheres, com cenas focadas no prazer masculino e ignorando o feminino, ou pode empoderá-las a buscar a própria sexualidade? E é um canal saudável ou está criando viciados?
A produtora Paula Anniballe afirma que não é possível culpar só a internet pelos problemas, já que, segundo ela, os produtos disponíveis são bem diversificados. “O que você estiver procurando, vai encontrar ali. Claro, algumas coisas são mais mainstream, e outras um pouco obscuras. Mas parte do prazer está na busca”, afirma a brasileira, que se mudou para a Itália há quatro anos e está envolvida na criação de uma produtora de filmes adultos focada no mercado alternativo. “Criei um Tumblr há cerca de dois anos e postava fotos e vídeos caseiros, que eram enviados para mim, sempre com mulheres tatuadas e cheias de piercing. Depois, gravei alguns vídeos com amigas. Foi aí que entraram em contato comigo e falaram do projeto.” A ideia ainda está em desenvolvimento, e em breve a equipe deve apresentar a proposta para crowdfunding.
“O que eu não nego é que ficou muito mais simples consumir pornografia. É gratuito, você pode acessar em casa ou em qualquer lugar com o próprio celular, e ainda conseguir que ninguém fique sabendo”, diz Paula.