Dia do cão-guia: treino rigoroso e 'match' com o tutor são necessários; conheça
Cachorros são treinados para auxiliar na locomoção de pessoas com variados graus de deficiência visual; confira dicas para esses animais durante a quarentena
Comemorado em toda a última quarta-feira do mês de abril, e neste ano no dia 29 de abril, o Dia Internacional do Cão-guia tem como objetivo homenagear e chamar atenção para esses animais tão importantes no auxílio de pessoas que têm deficiência visual.
Mesmo com sua importância para esse grupo da sociedade, a população como um todo ainda sabe pouco sobre esses animais. O treinamento de cães-guia, por exemplo, é um processo rigoroso que demora anos e demanda profissionais especializados no tema.
Como explica o instrutor de cães-guia George Thomaz Harrison, do Instituto Magnus, o processo em si começa antes do nascimento do cachorro. Há um processo de seleção dos pais do futuro cão-guia a partir da análise genética dos candidatos. Uma boa "matriz genética" envolve uma baixa predisposição a doenças hereditárias que podem acometer o animal, além de outros testes que buscam um bom comportamento e sentidos apurados.
No Brasil os cães-guia são principalmente das raças labrador e golden retriever que, geralmente, são mais obedientes e bem-vistos na sociedade. Mas ao redor do mundo há uma grande variação entre linhagens que se adaptam bem ao clima e à cultura. "Um cachorro muito grande não funciona tão bem no metrô", exemplifica Harrison.
Quando os pais são selecionados, geralmente de criadores já especializados na área, o filhote deles também é analisado. Busca-se um cachorro mais calmo, comportado e que tenha boa audição, visão e olfato. Encontrado esse perfil, o treinamento começa. "Ele passa por outros testes e tem a socialização, com famílias voluntárias que cuidam dele no primeiro ano de vida e ensinam questões comportamentais, educam ele", comenta Harrison. Nesse período inicial de vida o cachorro é exposto a experiências do dia a dia, como ir a um banco ou pegar um ônibus, para que ele possa ir se acostumando com esses ambientes.
Após esse um ano, o cachorro retorna ao instituto de instrução, e passa a receber um treinamento de profissionais habilitados na área de mobilidade e que podem trabalhar com animais e deficientes visuais. "O cachorro aprende a usar a roupa e guiar uma pessoa. Primeiro o treinamento é feito na instalação interna e depois disso na sociedade, indo de bairros mais calmos até os de grandes concentrações de pessoas", detalhe o instrutor.
O processo completo dura entre um ano e meio e dois anos, e é apenas a partir daí que o futuro dono do animal entra no circuito. No caso do Instituto Magnus, um dos poucos locais de treinamento cadastrados no Brasil, a seleção é feita a partir de inscrições em um site. Já nessa parte são excluídos candidatos que não possuem o perfil de um dono de cão-guia.
Não gostar de cachorros, por exemplo, é um fator que pode levar à rejeição. Outro ponto importante é que o candidato deve ter boa orientação espacial, já que é ele que dará as ordens ao cão que irá, então, guiá-lo. Pela lei, a pessoa também deve ser maior de idade.
Feita essa pré-seleção, os escolhidos passam por uma entrevista presencial e são analisados. "Nós vemos a dinâmica da pessoa, o ritmo dela, o comportamento e até a velocidade de andar. A partir daí vemos se temos um cão que combina com aquele perfil", explica Harrison. A ideia é evitar juntar uma pessoa rápida com um cão-guia mais devagar, e vice-versa.
Com o "match" concluído, o novo dono do cão-guia passa ainda por um período de acompanhamento e treinamento com os instrutores, inicialmente nas instalações do instituto e depois na cidade em que a pessoa mora. Os acompanhamentos vão ficando mais espaçados com o tempo, até se tornarem anuais. A ideia é ver se a dupla se acostumou bem e monitorar o bem-estar do animal.
Um grande problema ligado aos cães-guia no Brasil é a baixa oferta. O censo de 2010 do IBGE estima que o Brasil possui seis milhões de pessoas com deficiência visual, mas os números de cães-guia são muito mais baixos, apesar de não haver uma estimativa oficial. O Instituto Magnus, por exemplo, que foi criado em 2015 e passou a operar em 2018, entregou 19 cães, de forma gratuita, até agora.
A meta da organização, que depende de apoio para aumentar o suporte técnico e de instrutores, é chegar à oferta de 60 cães-guia por ano, e a fila atual varia entre 500 e 600 pessoas inscritas.
'Ela é minha cãopanheira'
Ricardo Pedroso, de 44 anos, adquiriu uma deficiência visual após um acidente de carro, quando tinha 24 anos. A labradora Emma, de nove anos, acompanha o atleta há seis, e é o primeiro cão-guia dele.
Ele destaca que a diferença entre o cão-guia e a bengala que é comumente usada por pessoas com deficiência visual é muito grande: "Eu costumo dizer que a bengala é um carro popular, e o cão-guia é uma ferrari". A bengala, por exemplo, não serve para detectar obstáculos aéreos, apenas terrestres, e dá menos segurança para quem a utiliza. Apesar disso, é mais acessível e não requer dedicação.
"O cão-guia traz mais segurança, é mais rápido, dá mais conforto. Ele ajuda a desviar de obstáculos do chão ou aéreos. Quando ele conhece o percurso, leva sem precisar dar comandos", comenta Pedroso. Em compensação, ele exige cuidados específicos. Além da questão financeira, um cachorro demanda carinho, atenção, água, ração, higienização e cuidados com sua saúde.
O cão-guia é orientado pelo deficiente, que dá as informações sobre o caminho, desde instruções simples, como "direita" ou "esquerda" até as mais complexas como "me leve até a porta de casa". As mais complexas, porém, demandam que o animal já conheça o caminho a ser realizado, e nesses casos, com o tempo, até as orientações se tornam desnecessárias. Entretanto, a comunicação entre guia e guiado deve ser constante.
Quanto aos cuidados, um cão-guia não demanda nenhum cuidado mais específico em relação a outros cachorros, apenas uma atenção maior a sua higiene. Por lei, o cão-guia pode entrar em estabelecimentos comerciais, por isso a necessidade de limpeza.
Mas esse convívio social também demanda uma atenção por parte das pessoas ao redor. "Quando o cão-guia está com o equipamento, uma espécie de rédea, ele entende que está trabalhando. A postura dele muda, fica mais atento. Se uma pessoa cega tiver com o cão-guia, é pedido que eles não mexam, brinquem ou toquem", observa Pedroso.
Interações com o cão-guia não apenas levam a uma distração do mesmo, como também podem fazer com que o animal associe seu "trabalho" com diversão, o que abre margem a acidentes. Para Ricardo, porém, as pessoas não interagem por mal, e ainda há uma falta de conhecimento ligado ao cão-guia no Brasil, até devido à baixa quantidade dos mesmos.
Em geral os cães-guia trabalham até os dez anos. Quando problemas de visão e audição começam a surgir pela idade, o animal é aposentado do seu trabalho, e pode passar o resto da vida apenas como um animal de estimação.
Também é normal que, de início, a pessoa tenha dificuldades na transição da bengala para o cão-guia. Não apenas pela mudança de ajudante, mas também pelas exigências próprias de um cachorro. Ainda sim, Pedroso considera como muito positiva sua experiência com Emma.
"Sempre gostei de cães, sempre tive em casa. Para mim é um prazer, além de ter ela como a minha cão-guia, ela também é minha 'cãopanheira'. É muito bacana, a gente ter esse maior contato", comenta ele.
Cão-guia: Cuidados na quarentena
Alexandre Rossi, profissional da área de Comportamento Animal, observa que a manutenção de elementos da rotina do cão-guia é essencial no período de quarentena: "O animal precisa receber comandos e manter forte a parceria com a pessoa que ele guia".
Nesse sentido, é interessante que o dono do cão-guia continue a realizar pequenas caminhadas e exercícios com o animal, se possível dentro de casa mas, do contrário, com pequenos trajetos rápidos próximos à residência. Uma atividade simples, por exemplo, é subir e descer de escadas repetidas vezes com o cão.
As caminhadas são importantes por vários aspectos. São uma forma de evitar que o cão-guia esqueça comandos aprendidos, e também o momento para que ele atenda às suas necessidades fisiológicas, mas exigem uma série de cuidado dos donos.
Cristiane Pizzutto, presidente da Comissão Técnica de Bem-Estar Animal do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado de São Paulo (CRMV-SP), recomenda que sejam escolhidos horários e locais com pouca movimentação, e é importante fazer uma higienização meticulosa do animal após voltar para casa.
"No que diz respeito à manutenção do treinamento do animal, outra questão importante durante as caminhadas é o rigor contra possíveis abordagens ao cão-guia ou outras interferências", comenta Cristiane, que também lembra que as caminhadas não devem ser vistas como um passeio, mas sim como uma forma do cão entender que ainda está desempenhando sua importante função: guiar seu dono.
*Estagiário sob supervisão de Charlise Morais