Gay da periferia: "Não saí do armário, fui arrancado dele"
Neste dia do Orgulho LGBT, rapaz 'chavoso' de bairro pobre expõe as diferenças de tratamento entre os gays afeminados e os com padrão hétero na sociedade
Era 2016 quando uma guerra de giz entre meninos trouxe à tona a homofobia que Thiago Torres sofria em sua turma do ensino médio, quando tinha 16 anos. Sua amiga foi atingida no braço e o rapaz, que estava fora da brincadeira, tentou parar com a bagunça chamando a coordenadora da escola pública, localizada na periferia de Guarulhos.
Como vingança, os garotos criticaram para a mulher o visual afeminado de Thiago. Foi a partir daí que a indisciplina em sala de aula se apagou e deu lugar ao preconceito: a diretoria do colégio não só concordou com os agressores, como também chamou os pais do adolescente para questionar seu jeito de ser.
"Minha família ficou com raiva de mim, porque não sabia que eu me portava de forma afeminada e em casa eu era de outro jeito. Meu pai passou o ano todo sem falar comigo", conta ele, que já era assumido na época.
O tempo passou e hoje, com 19 anos, Thiago Torres largou a aparência da época e adotou o estilo 'chavoso', com óculos Juliet, correntes no pescoço, tênis de mola e boné - usados por muitos jovens da periferia e MCs de funk. A transformação o fez perceber que as formas de preconceito também mudaram. "Ser gay da periferia e com estilo funkeiro ainda é estranho para muitas pessoas, incluindo as da própria comunidade LGBT, porque eu reúno duas coisas que são opostas: visual de 'vida louca' e a homossexualidade", explica.
Thiago, que estuda Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), diz também que essa aparência típica das periferias brasileiras carrega estereótipos de uma masculinidade viril, violenta e criminosa, contrariando a ideia de que o homem gay é frágil, sensível e indefeso. "Esse estigma é forte e tem pessoas que ficam desnorteadas quando revelo minha orientação sexual, principalmente as ricas e de classe média", conta. "Muitas delas associam esse perfil periférico à violência, ao homem negro sexualmente vigoroso ou ao bandido", lamenta.
"Não saí do armário, fui arrancado dele"
A relação do preconceito com o jeito de falar e se vestir é antiga na vida de Thiago. A pior época dele na escola foi na 4ª série, quando sofreu discriminação da sua turma mesmo sem entender ao certo sua orientação sexual. "As pessoas descobriram que eu era gay antes de mim. Eu tinha só dez anos de idade quando eu fui chamado de 'viado' pela primeira vez por outras crianças. A turma inteira me odiava", recorda. "Já recebi chute, cuspe e tacaram coisas em mim".
Filho de imigrantes nordestinos que vieram tentar a vida em São Paulo, Thiago também sofreu preconceito da família quando era afeminado. "Depois pararam porque fiquei mais másculo. Mas recentemente comecei a namorar e as críticas estão voltando. Falam que namorar com homem é desgosto e que não preciso expor isso para a sociedade", revela.
Sua mãe Irandir, de 46 anos, é evangélica e diz que "Deus ama a todos sem julgar ninguém". No entanto, confessa que ainda é chocante saber da homossexualidade do filho e não o enxerga como gay devido ao visual heteronormativo dele.
Diante das diferenças de tratamento que seu jeito de se portar lhe traz, Thiago Torres acredita que o fato de ter "aparência de hétero" lhe permite acessar espaços que o gay afeminado não consegue devido ao preconceito. Ele poderia, por exemplo, ficar em uma roda de homens preconceituosos sem ser discriminado logo de cara por seu jeito de falar e se comportar. Assim, o jovem usa esse contexto em prol do movimento LGBT. "Tento quebrar preconceito na mente dessas pessoas acessando seus ambientes", aponta.
"Meus olhos estão sangrando por ver isso"
Essa foi uma das inúmeras ofensas que Igor Mandrak e seu namorado, Scai Victor, receberam no Facebook quando assumiram o namoro há dois anos. Os comentários não vieram só devido à homossexualidade: o visual de funkeiro do casal - composto por itens como óculos Juliet, cabelo platinado e tênis de mola - é um estilo considerado hétero e causou repulsa em muitas pessoas, incluindo LGBTs.
"Amor de bandido… nunca vi casal gay vestido assim", criticou um usuário da rede social que se coloca a favor da causa em seu perfil. "Existe uma linha tênue entre um hétero chavoso e um gay mal vestido", escreveu outro. O romance repercutiu na época com mais de 60 mil comentários em um vídeo publicado por eles. Assista:
O ativista LGBT Vitor Garcia analisa que essa estranheza que existe sobre gays com estilo hétero parte, principalmente, da TV, que apresenta personagens homossexuais sob a roupagem de piada.
"Nesse modelo [televisivo], o gay precisa ser escandaloso, usar muitas cores e roupas 'diferentes' e ter voz grave [sic]. Se sair com pluma na rua é melhor ainda. E se for para usar roupa 'normal' que tenha muitos 'trejeitos gays' para contrabalançar", afirma em seu artigo Por que ainda nos espantamos com um vídeo de um casal "gay funkeiro"?. Garcia ressalta ainda que gays não se reduzem a um único perfil, assim como heterossexuais não são necessariamente parecidos ou iguais.
Diante disso, Thiago Torres segue tentando quebrar estereótipos. Sua rotina é intensa e por vezes cansativa: acorda às 5h30 da manhã para trabalhar de jovem aprendiz e se desloca de Guarulhos para a Universidade de São Paulo (USP) todos os dias, onde estuda à noite e participa de atividades extracurriculares.
A distância nem sempre permite que o rapaz acompanhe as aulas até o final, pois corre o risco de perder o último ônibus - que o deixa em casa um pouco depois da meia-noite. No entanto, nada disso é obstáculo para sua luta contra a homofobia. Ele participa de um coletivo LGBT e leva sua voz para todos os espaços que frequenta: desde os de classe médica e rica da maior universidade da América Latina até os de sua vizinhança, na periferia da cidade.
*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais