Mulher transexual será a segunda a desfilar como rainha de bateria na história do carnaval de SP
Dançarina coroada pela Imperador do Ipiranga já foi rejeitada por outras escolas de samba da capital paulista e diz que algumas empresas não aceitam ser atreladas ao mundo LGBT nos sambódromos
"Não podemos colocá-la nas apresentações, porque vamos perder público". Essa foi uma das frases ouvidas pela transexual Kakah Morena, de 30 anos, ao longo de sua vida nas escolas de carnaval. Formada em dança, ela convive com o samba desde os seus dez anos de idade - quando ainda tinha um corpo masculino - e sempre sonhou em ser destaque nos sambódromos quando crescesse.
"Eu ficava encantada com aquelas mulheres lindas, altas, na frente da bateria. Queria ser igual a elas, uma rainha", recorda. A esperança de Kakah nunca morreu, mas ela cresceu e começou a perceber que muitos não aceitavam vê-la ocupando o lugar de uma mulher cisgênera (que nasceu com o sexo feminino).
"Sou passista há seis anos na Dragões da Real e comprei briga por ser uma escola de torcida [do São Paulo Futebol Clube]. Têm diretores lá dentro que não olham na minha cara, porque acham que eu não tenho que estar ali", revela.
Mesmo assim, a dançarina venceu o preconceito e foi convidada pela Imperador do Ipiranga, da capital paulista, para ser rainha de bateria no carnaval deste ano, após ser rejeitada por algumas outras agremiações. Ela será a segunda mulher trans a ocupar o cargo na história do carnaval da cidade. A primeira foi Camila Prins, pela Camisa Verde e Branco, em 2018.
"Minha presença 'causou' por lá. Teve gente da ala que não me queria naquele cargo, mas a velha guarda da escola me aceitou e confiou em mim", afirma.
Marcas não querem atrelar imagem a de transexuais
Kakah Moreira expõe que duas escolas paulistanas - cujos nomes decidiu omitir - não a aceitaram em outras edições do carnaval. Ela analisa que isso se dá porque muitas empresas não querem ter a imagem atrelada ao mundo LGBT no sambódromo. "Se colocarem uma Viviane Araújo ou Simone Sampaio, por exemplo, as empresas vão se empolgar, vão 'chegar chegando' com a escola de samba", critica.
A dançarina recorda ainda que teve um patrocinador que preferiu não divulgar a parceria por esse motivo, mas ela cedeu à proposta para não perder a oportunidade de crescer na carreira carnavalesca. "Fingi entender, porque a minha escola da época não iria para a avenida sem o dinheiro investido", explica.
Kakah destaca também que as escolas de menos tradição no carnaval do Rio de Janeiro e de São Paulo são as que mais carregam preconceito contra o gênero e a sexualidade de seus participantes. "As mais antigas têm incluído e aceitado a gente. Enquanto isso, os dirigentes das mais novas, por conta de patrocínio, não aceitam, não acham bacana", critica.
'As escolas de carnaval são do povo'
O diretor de carnaval da Imperador do Ipiranga, Márcio Telles, explica que coroar Kakah Moreira foi uma maneira de valorizar a qualidade artística dela e homenagear o grande público LGBT que ajuda a escola.
"Temos muito respeito por essas pessoas. Sem elas, essa festa não existiria", diz. "As escolas de carnaval precisam ser abertas a todos. Elas são do povo, então temos que trabalhar o lado social", completa.
A filosofia de Telles se reflete em outras iniciativas. A Imperador do Ipiranga oferece aulas de danças afro, cursos profissionalizantes e selecionou cinco mulheres trans da Casa Florescer - que abriga transexuais em situação de vulnerabilidade - para participar do curso de corte e costura da Liga das Escolas de Samba de São Paulo, feito em parceria com o Senai.
A coordenadora do projeto, Lúcia Helena, explica que a ação é uma resposta aos tantos "nãos" que esse público recebe ao longo da vida. "Depois elas podem abrir seus próprios negócios, gerarem renda para suas famílias, montarem ateliês e atuarem em outros eventos, além do carnaval", aponta.
Contraste com a realidade
A inclusão profissional carnavalesca não é exclusividade da Imperador do Ipiranga. Outras agremiações têm coroado mulheres trans e aceitado gays, lésbicas e drag queens nas produções dos blocos.
Além disso, essa aceitação vem na contramão da realidade do País. Segundo uma pesquisa da ONG Talent Innovation, que entrevistou 12.200 profissionais de todo o mundo em 2016, seis em cada dez funcionários LGBTs brasileiros escondem a identidade no trabalho para se manterem empregados.
Diante desse dado, Kakah Moreira não esconde seu interesse em potencializar a igualdade de gênero e sexualidade no carnaval: ela quer seguir conquistando espaços no samba enquanto mulher trans e pretende cursar psicologia para apoiar as vítimas de preconceito.
*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais