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Transexuais contam histórias de vida: "nunca quis ser p..."

Reconhecido pela Índia, um gênero além do feminino e masculino não atende os desejos de transexuais brasileiros. Segundo entrevistados pelo Terra, determinação só excluiria a existência das pessoas 'trans' como homem ou mulher

23 mai 2014 - 10h10
(atualizado às 10h37)
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Transexuais querem fazer parte do gênero feminino ou masculino; uso de nome social é principal reivindicação
Transexuais querem fazer parte do gênero feminino ou masculino; uso de nome social é principal reivindicação
Foto: Getty Images

“É um menino”, diz o obstetra ao constatar o sexo do bebê. A conclusão médica define um dos dados mais importantes na certidão de nascimento, informação que o indíviduo levará por toda a vida, querendo ou não. É também motivo de constrangimento diário para quem não reconhece o que está no papel e luta, contra todos os estabelecimentos legais e sociais, para mudar algo a que não teve direito de escolha. No último mês, a Índia tornou legal a existência de um terceiro gênero, com o objetivo de incluir transexuais e eunucos na definição. O Terra entrevistou ativistas no assunto e, para eles, a determinação é só mais um “estigma” que segrega e incentiva o preconceito.

“O terceiro sexo ainda exclui as pessoas trans, como se elas não existissem nem como homem, nem como mulher”, afirmou o transexual homossexual Kaito Felipe, 21 anos. O que os transexuais anseiam é o reconhecimento dentro dos gêneros já existentes, feminino e masculino, de acordo com o qual eles se reconhecem, e não com o órgão sexual que possuem, explicou a historiadora e coordenadora do Transgrupo Marcela Prado, Andreia Lais Campelli, 32 anos. “Nunca me considerei homem na vida e terei que ser tratado como tal por causa de um papel. Mesmo com dois peitos enormes, unhas grandes e cabelos compridos, serei chamado de Daniel”, acrescentou a transexual Danielly Freires da Silva, 37 anos.

 

Rafaelly, 31 anos, transexual

Sou curitibana, estudei sempre em escola pública e lembro o quanto eu sofri. Eu tinha dificuldade em me manter na escola. Aos 12 anos, eu estava construindo a minha sexualidade e tinha esse conflito em me tratarem no masculino, como ‘o aluno’. Fui expulsa da escola pelo preconceito. Sempre fui a melhor aluna para nunca ser questionada, nunca tirei nota vermelha ou repeti o ano, mas não aguentei e fugi. Fiquei 11 anos longe da escola. 

Nasci do sexo masculino, dado pelo obstetra, mas eu não me reconheço como isso. A nossa maior luta é essa: se eu tenho direito a saúde e educação, o resto a agente consegue. Mas não temos, muitas caem na prostituição e ainda são julgadas pela sociedade. É tão fácil você passar na esquina e apontar o dedo para a travesti. Mas quantas pessoas trans trabalham na sua empresa? Quantas conseguiram estudar? Quantas tiveram uma oportunidade. Ser trans e fazer programas não é uma vida de glamour.

Uma “mulher” apresentar um documento com dados masculinos, ou o inverso, implica em uma série de situações embaraçosas. Os entrevistados pelo Terra contaram que além das ofensas e piadas de mau gosto, já chegaram a ser acusados de falsidade ideológica, levados por seguranças e apontados como mentirosos em público. “A gente se apresentar em um gênero diferente do documento é um constrangimento todo santo dia. Chega vestida de Maria, mas quando a pessoa olha o nome é João”, disse Rafaelly Wiest, 31 anos, presidente do Transgrupo Marcela Prado. “Não é só um nome”, acrescentou.

Rafaelly bem sabe como faria diferença se no Brasil ela pudesse mudar o nome para um de gênero feminino. Em 2012, ela se inscreveu no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e teve que usar o nome de registro. “As salas foram divididas por gênero e ordem alfabética. Quase desmaiei de nervoso. Uma pessoa trans entra na sala com 40 homens e alguns ainda falam ‘moça, você está no lugar errado’. Minha vontade era ir embora, fui tratada como homem, mesmo vestida como mulher”, relatou.  Ela já havia passado 11 anos longe da escola por medo e preconceito, e não desistiu da prova na ocasião.

“Nunca quis ser puta, meu sonho era ser médica” - Rafaelly Wiest

O “fora da curva” sempre sofre discriminação e a escola é um dos principais palcos para cenas de preconceito, violência e criação de traumas, segundo os entrevistados. Com isso, é comum o abandono dos estudos. “Sempre fui boa aluna, nunca tirei nota vermelha, mas não aguentei a escola e fugi”, contou Rafaelly. O sonho de cursar medicina ficou distante e encoberto pelos ataques de discriminação que ela sofreu nas instituições de ensino. “Se você parar para pensar, nenhuma criança quando perguntada sobre o que quer ser quando crescer, responde: ‘quero ser profissional do sexo’. Mas eu tive que fazer programas para sustentar a minha vida”, confessou.

A situação é bastante comum e acaba como saída para pessoas sem formação, apoio social ou familiar. Danielly levava surras na escola e uma vez chegou a ter o nariz quebrado por um grupo de moleques perto da sua casa. Ela assumiu a transexualidade aos 19 anos e foi expulsa de casa pela família. Nas ruas, teve que se prostituir: “eu era adolescente, não tinha perspectiva de vida, futuro, não sabia o que fazer”, contou. Depois de 10 anos vendendo o próprio corpo, decidiu reivindicar seus direitos, terminou os estudos e conseguiu emprego em lojas, mas desde o ano passado está fora do mercado. “As agências me ligam. Quando eu chego à entrevista, acaba o processo por ali”, contou.

 

Danielly Freires da Silva, 37 anos, transexual

Eu me assumi como transexual aos 19 anos e minha família não aceitou, fui expulsa de casa. Na época eu tive que me prostituir, não tinha perspectiva de vida, futuro, não sabia o que fazer. Trabalhei na prostituição por 10 anos e depois comecei a correr atrás dos meus direitos, terminei o segundo grau e trabalhei em lojas. Hoje eu tenho uma forma feminina característica, tenho próteses de silicone, mas sofro olhares julgadores até hoje e não consegui alterar meu nome no registro.

Minha família já me aceita, não sei por que a Justiça não me dá esse direito. Meu processo para mudança de nome corre a cinco anos, mas teve resposta negativa, pois os desembargadores entendem que é necessária a cirurgia para mudança de sexo antes. Vou ter que correr o risco de morrer para mudar meu nome no documento, pois viver quase 20 anos como mulher não é o bastante.

O direito à educação e saúde, sem violência, impactaria em uma mudança considerável na vida dos transexuais. “É tão fácil apontar o dedo e dizer ‘olha aquele travesti, que pouca vergonha’, mas quantas pessoas querem saber o que levou a pessoa a estar ali? Quantas de nós tiveram uma oportunidade, quantas conseguiram estudar?”, questionou Rafaelly. A situação no País começou a melhorar no último ano: alunos travestis e transexuais poderão usar nomes sociais em sala de aula, na inscrição do ENEM 2014 e desde 2009 já podem utilizá-los nos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), enumerou Andreia. Uma ideia que traria mais conforto social aos transexuais seria uma lei como a em vigor na Austrália, em que não é obrigatória a definição do sexo no ato do registro, podendo ser definido depois.

“Me chamavam por nome de mulher, minha mãe me obrigava a fazer ballet e eu era motivo de chacota” - Alexander Brasil

O transexual curitibano Alexander Brasil, 17 anos, foi um dos beneficiários das novas regras brasileiras e no terceiro ano do colégio conseguiu, finalmente, ser chamado pelo nome social. “Descobri a transexualidade aos 12 anos”, disse ele que conta com apoio da família. Poder ser identificado como homem no ambiente escolar fez com que Alexander não abandonasse os estudos. No entanto, no RG e em outros documentos de identificação, assim como no histórico escolar, permanece o nome de registro. Nesse sentido, Andreia defendeu a o projeto de lei João W Nery, do deputado Jean Wyllys (PSOL) e Érika Kokay (PT), que possibilita a mudança de nome do registro civil de acordo com a identificação de gênero da pessoa.  “Na Argentina, já há a Lei da Identidade de Gênero”, acrescentou. No Brasil, existem casos isolados, geralmente, após a cirurgia para mudança de sexo.

Alexander Brasil, 17 anos, transexual

Eu me identificava com o gênero masculino desde os quatro anos, mas descobri a transexualidade aos 12, quando contei para os meus pais. Minha mãe me obrigava a fazer ballet e eu sofria bastante chacota. Eu sempre fui muito masculinizada, dizia que era menino, para mim, eu sempre fui um garoto. Aos 14 anos eu era andrógino, usava uma faixa para prender os seios. Odiava ir à escola, ninguém me respeitava, tinha o problema do banheiro que se eu fosse no feminino era uma loucura e no masculino eu não podia ir.

Quando meus pais descobriram que eu estava tomando hormônios, minha mãe me levou ao Conselho Tutelar e lá a mulher falou que se eu não parasse, me levaria para o abrigo, que eu jamais seria um homem de verdade, completo. Com o tempo, meus pais começaram a me aceitar. Mas meu pai tem dificuldade em lidar com meu nome, ele tem 76 anos. Eu consegui o nome social no colégio, mas nos documentos só posso pedir quando tiver 18 anos.

Morte aos 30 anos, tráfico de hormônios e silicone

A expectativa de vida de uma pessoa transexual é 30 anos, afirmou Rafaelly. Um dos motivos é o suicídio, por não suportar a situação. Danielly mesmo tentou tirar a vida várias vezes. A prostituição e os riscos de contrair doenças nas relações sexuais, assim como a hormonização sem acompanhamento médico e implante de próteses de silicone sem garantia fazem parte da lista, segundo Rafaelly. “Dados de assassinato mostram que 90% das transexuais morrem antes dos 30 anos, são assassinadas”, acrescentou.

O SUS oferece tratamento médico e cirurgia para mudança de sexo gratuita para transexuais, no entanto, o processo só pode ter início a partir dos 18 anos do paciente, quando os sinais da puberdade, como pelos no rosto para homens e crescimento dos seios para mulheres, já se tornaram evidentes. Por conta disso, assim como a maioria, os entrevistados pelo Terra também começaram a usar hormônios por conta própria antes da maioridade. Alexander chegou a ser levado pelos pais ao Conselho Tutelar quando foi descoberto tomando testosterona sem prescrição médica.

O programa público exige acompanhamento por uma equipe médica multidisciplinar por dois anos para diagnosticar o desejo de pertencer ao sexo oposto, sofrimento psicológico e prejuízo na vida social. Somente com o parecer médico é que se torna possível a cirurgia, que como qualquer procedimento invasivo, oferece risco de morte. Todavia, a mudança física é considerada por juízes, segundo os entrevistados, como prerrogativa para a mudança de nome. Kaito passou por 11 meses de hormonização com acompanhamento médico e fez mastectomia, porém, ainda não conseguiu alterar os dados de seu registro civil. "Ninguém escolhe a forma que se sente melhor antes de nascer", concluiu. 

Kaito Felipe, 21 anos, transexual

Me descobri transexual quando criança. Mesmo sem saber as definições, eu já reclamava para minha mãe que eu tinha nascido errado, mas ela me dizia que era besteira. Depois de me formar no Ensino Médio, mudei de cidade, comecei a trabalhar e a me consultar com uma psicóloga. Fiz 11 meses de hormonização, depois a mastectomia, o que evitou um monte de explicações desnecessárias. Mesmo assim, toda vez que estou em um novo emprego preciso quase implorar para poder usar o nome social e, muitas vezes, não aceitam.

É inevitável ouvir piadas no trabalho, mas o preconceito acontece, mas com mulheres transexuais. Uma vez fui a um restaurante com um conhecido, ele sabia da minha situação e sempre respeitou, mas nesse dia vimos duas mulheres transexuais e logo ele ficou mal humorado, começou a reclamar e disse que era um ‘absurdo’. Retruquei sobre o fato de eu estar na mesma condição e ele disse: ‘Você ser homem e nascer nesse corpo tudo bem, mas nascer como homem e ser mulher, é absurdo’.

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Fonte: Terra
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