Cidades boas para crianças: como os espaços urbanos impactam na infância
Confinamento e desenvolvimento infantil não combinam: no Dia Mundial das Cidades, conheça iniciativas que incentivam natureza e brincadeiras
A maioria das crianças do mundo cresce em cidades, mas a maioria das cidades não cresceu pensando nas crianças. Parece um paradoxo, mas é a realidade. Afinal, como seria uma cidade boa para crianças e por que isso importa? Na data em que se comemora o Dia Mundial das Cidades, 31 de outubro, vamos mostrar como os esforços para o bem-estar infantil nos espaços urbanos impactam na qualidade de vida de toda a população do planeta.
Pela primeira vez na história, mais da metade da população mundial vive em áreas urbanas, número que em 2030 já será de mais de 60% (no Brasil já chegamos ao futuro, com 8 em cada 10 crianças em áreas urbanas). E das 2 bilhões de crianças no mundo, desde bebês a adolescentes de até 14 anos, estimativa da World Population Review, pelo menos a metade – 1 bilhão – vive em cidades.
Todas as experiências destas crianças no começo da vida, a chamada Primeira Infância, dos zero aos 6 anos, afetam o desenvolvimento infantil, de forma positiva ou negativa – e isso inclui os ambientes físicos e sociais onde vivem. Estes efeitos perduram: o que se vive na infância é determinante para a vida adulta, como vastas evidências científicas realizadas nas últimas décadas comprovam.
Para alcançar todo o seu potencial, bebês e crianças pequenas precisam mais do que cuidados básicos, como assistência médica ou boa nutrição. Precisam de ambientes seguros, com ar e água limpos, e oportunidades para brincar, explorar e vivenciar interações humanas. Estas experiências vão formar as bases da infância saudável, com impactos em seu desenvolvimento físico, cognitivo e emocional, formando os adultos do futuro.
Agora voltamos ao paradoxo das cidades e das crianças. Os atuais modos de vida trazem cada vez menos oportunidades de estar em espaços externos convivendo em grupos. Basta pensar na sua rotina, caso tenha filhos, ou observar nosso comportamento em sociedade. Crianças de todas as idades (e consequentemente seus pais) passam cada vez menos tempo em ambientes abertos, em oposição a cada vez mais tempo no ambiente digital. Não é exagero dizer que a nova geração conhece o mundo através da janela no banco de trás dos carros.
“Vá brincar lá fora”, frase tão comum em décadas passadas, hoje é rara. Especialistas conectam o crescimento da urbanização, quando a rua deixou de ser um lugar de encontro, à ascensão das tecnologias para ocupar o tempo livre. De forma coletiva e gradual, as brincadeiras – essenciais para o desenvolvimento humano – foram substituídas pelo mundo online. Não à toa o livro “Geração Ansiosa” virou instantaneamente um best-seller mundial ao comprovar que a hiperconexão é a causa da atual epidemia de transtornos mentais em crianças e adolescentes.
Muitos fatores tiraram as crianças das ruas, provocando este “confinamento coletivo”: violência, trânsito caótico, falta de segurança, grandes distâncias para deslocamentos, redução das áreas verdes e de espaços coletivos. Tudo isso são fatos (e são menos ou mais intensos conforme as desigualdades de cada região), mas a questão segue a mesma: qual é o ônus para esta geração que cresce sem a oportunidade de usufruir de um direito humano tão básico como o direito às cidades? E de que forma é possível mudar este cenário?
“Há quem diga que vagalumes são indicadores de saúde das florestas; nós dizemos que as crianças nos espaços públicos são indicadores de saúde das cidades”, compara Cláudia Vidigal, líder da Urban95 no Brasil, iniciativa global da Fundação Van Leer, que incentiva ambientes urbanos mais acolhedores e seguros e tem 28 cidades brasileiras comprometidas com a causa.
A Urban95 tem esse nome pois 95cm é a altura média de uma criança de 3 anos. Como se enxerga o mundo sob esta perspectiva? Se você fizer o exercício de agachar um pouquinho (caso as costas permitam), verá que poucas coisas funcionam do ponto de vista infantil, desde as calçadas desalinhadas para subir no ônibus – e a altura do banco para sentar – até a aventura de atravessar uma rua. Aliás, este simples ato pode ser fatal: nas estatísticas da OMS (Organização Mundial de Saúde), acidentes de trânsito são a maior causa de mortes de crianças e jovens de 5 a 29 anos no mundo todo.
É por isso que convém falar que “uma cidade boa para crianças é boa para todos”, conceito proposto pelo pedagogo italiano Francesco Tonucci, sobre o qual falaremos em seguida. Bebês, crianças pequenas e seus cuidadores, idosos, pessoas de mobilidade reduzida, cadeirantes: todos se beneficiam quando o planejamento urbano considera a escala humana, “cidades para pessoas”, na definição do urbanista dinamarquês Jan Gehl, que veremos adiante.
Esta reportagem conecta espaços urbanos e infâncias para refletir sobre os desafios de torná-los mais amigáveis para crianças, o que por consequência os tornaria mais inclusivos e sustentáveis. Esta pauta foi selecionada para a bolsa de jornalismo internacional Transatlantic Media Fellowship 2024, da Heinrich Böll Stiftung Foundation, organização sem fins lucrativos que promove a democracia, justiça social e ecologia em âmbito global. A jornalista gaúcha especializada em infância Camila Saccomori viajou por cidades das Américas para ver boas práticas ao vivo.
Se as crianças aprendem explorando o mundo através dos sentidos, que ambientes estão encontrando para se desenvolverem? Aqui consideramos os ambientes físicos de duas formas, pela classificação dos cientistas que estudam o assunto. A primeira é o ambiente natural: a própria natureza, a temperatura e o clima, a qualidade do ar, por exemplo, temas que abordaremos nesta matéria. A outra é o ambiente construído: as casas e os edifícios, os espaços coletivos, as ruas e as calçadas, o trânsito e a mobilidade, entre outros, dos quais vamos falar na segunda reportagem (leia aqui).
Tanto o ambiente natural quanto o físico são moldados pela ação humana. E as ações humanas, como sabemos, já causaram muitos problemas. Mas não é (só) de problemas que precisamos falar: as “tretas” do seu entorno você conhece de cor. Como jornalistas, nosso papel é trazer informações fiéis da realidade social. Mas hoje é um dia para ir além da lista de coisas erradas. Na perspectiva do chamado Jornalismo de Soluções, vamos mostrar soluções possíveis, isto é, trazer exemplos de espaços e projetos que foram pensados em prol da infância.
Iniciativas desde as mais simples, que podem ser feitas em um dia ou meses, até outras complexas, que levam mais tempo. Encontramos no Brasil e em outros locais da América Latina, além de exemplos replicáveis dos Estados Unidos. Escolhemos o recorte da proximidade, tanto geográfica quanto cultural – é por isso que Europa ou Ásia, com históricos de desenvolvimento urbano distintos, desta vez não estão citadas.
Que as soluções aqui compartilhadas inspirem todos os tomadores de decisão (governos, empresas, sociedade civil) a incluir as crianças desde o início, especialmente considerando que 60% do solo projetado para se tornar urbano até 2030 ainda não foi desenvolvido. Ou seja, dá tempo de melhorar o presente e o futuro desta geração. Vamos?
Desigualdades nas cidades refletem diretamente nos direitos das crianças
Celebrado anualmente no dia 31 de outubro, o Dia Mundial das Cidades foi criado pela ONU-Habitat, programa das Nações Unidas, para debater estratégias de melhoria da vida nas cidades. A escolha do mês não é aleatória: faz parte do Outubro Urbano, também da ONU, para alavancar o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, os ODS, especialmente os que tratam de desigualdades e espaços urbanos.
"Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis" até 2030, sem deixar ninguém para trás, define o ODS 11. Ou seja, abrange mais do que o direito à habitação adequada e a moradias de custo acessível. Os indicadores destacam a importância das cidades terem serviços básicos para a população e promover a redução das chances de catástrofes naturais e riscos ambientais urbanos, entre outros.
Em maior ou menor grau, todas as cidades sofrem com desigualdades no acesso a oportunidades, bens e serviços, impactando o futuro das famílias. Mas a situação é mais difícil especialmente nos países do Sul Global, onde a maior parte das crianças vive em habitações inadequadas. No Brasil, ao menos 32 milhões de meninas e meninos – 63% do total – vivem na pobreza. Somos o 5º país mais desigual do mundo: precisamos de 113 anos para atingir um padrão de prosperidade ideal pela projeção do Banco Mundial (se as metas de crescimento forem alcançadas).
Reduzir estas vastas desigualdades é um dos maiores desafios dos nossos tempos. Desafio que é tema de grandes pesquisas como a que ganhou o Nobel de Economia no último dia 14 de outubro. “Por que alguns países são muito mais ricos que outros?”, questionam os três acadêmicos premiados, olhando para a organização das sociedades e as intersecções entre economia e política. Precisaríamos de outra reportagem só para começar a explicar e ainda assim ficaríamos só arranhando a superfície.
Tirando da teoria e trazendo para a prática, dentro de um Brasil temos muitos Brasis – e é por isso que usamos a palavra “infância” no plural. São diferentes infâncias vividas em diferentes espaços urbanos, desde crescer na periferia a viver dentro dos muros de um condomínio fechado. A transformação das cidades é uma parte das ferramentas para combater as desigualdades que afetam as crianças. Investir em bairros mais inclusivos, com acesso a áreas verdes, transporte público de qualidade e infraestrutura adequada, é um começo para garantir que todas, independentemente da origem social, tenham mais oportunidades de prosperar.
No Brasil, na data de referência de 1º de julho de 2024 pelo IBGE, nossa população é estimada em 212,6 milhões de habitantes. Somos 5.570 municípios brasileiros, sendo que 15 municípios têm mais de 1 milhão de pessoas. Passadas as eleições municipais, é hora de cobrar ações. As crianças têm o direito de experiências que as conectem com a comunidade e os ambientes ao redor, brincar na natureza e crescer em lugares seguros.
OS DIREITOS DAS CRIANÇAS ÀS CIDADES
É lei: os esforços devem ter as crianças e as suas necessidades no centro das atenções.
* O artigo 227 da Constituição Federal Brasileira coloca crianças e adolescentes em posição de Prioridade Absoluta. Ou seja, em qualquer situação, os direitos e o bem-estar deles devem ser considerados em primeiro lugar. As crianças têm direito à participação cidadã garantido pela Convenção dos Direitos da Criança e do Adolescente da ONU e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
* Também o Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016) estabelece que as cidades se organizem para a criação de espaços adequados para propiciar o desenvolvimento das crianças de zero a 6 anos, como brincar ao ar livre e exercer a criatividade em locais públicos e privados.
O lugar importa: a importância do bairro no começo da vida
Os primeiros anos de vida, chamados de Primeira Infância, são a principal janela de oportunidades. De zero a seis anos, ocorrem mais de 1 milhão de conexões cerebrais por segundo. E estas são responsáveis por formar até 90% do cérebro. Qualquer investimento nesta fase tem efeitos incríveis: cada 1 dólar investido traz o retorno de 7 dólares a longo prazo para os governos e a sociedade. “Mais seguro do que investir em ações”, comenta James Heckman, que criou métodos científicos para avaliar a eficácia de programas sociais na Primeira Infância.
Notas mais altas, empregos melhores, menos índice de envolvimento em crimes no futuro: tudo isso é decorrente de projetos que priorizam as crianças. Esta pesquisa, que rendeu a Heckman o Prêmio Nobel de Ciências Econômicas no ano 2000, tem tudo a ver com cidades. Pois o ambiente em que a criança vive pode garantir um futuro mais próspero ou mais limitado. Estar em um ambiente seguro e com estímulos saudáveis dá mais chances da criança adquirir novos conhecimentos, atingindo todo seu potencial.
De que forma, exatamente, os espaços urbanos impactam na vida das crianças? Para variar, a resposta não é simples, mas vamos facilitar. A partir de 2 mil documentos sobre o tema, o Núcleo Ciência Pela Infância produziu um estudo chamado “O bairro e o desenvolvimento integral na primeira infância”, que traz evidências dos efeitos dos ambientes naturais e construídos na evolução da criança (aspectos cognitivos, físicos e socioemocionais).
Bairro é o território de 400 a 800 metros da casa, ou seja, tudo que pode ser alcançado numa caminhada de 15 minutos. Várias características dos lugares vão influenciar nos primeiros anos, em diferentes dimensões, começando pelo lar (os pais e outros cuidadores) até os ecossistemas ao redor. A situação socioeconômica do bairro tem relação direta com o desenvolvimento infantil: quanto mais baixa, maior será o prejuízo. Condições das moradias, saneamento básico, acesso a transporte público, áreas verdes para brincar: tudo isso entra na conta. É por isso que criar uma cidade boa para crianças envolve muita gente, do urbanismo à educação e ao meio ambiente.
“É um olhar integrado entre três pilares: as políticas públicas para a Primeira Infância; os espaços urbanos e os espaços naturais; e ter programas e serviços que efetivamente priorizem as crianças”, explica a representante da Urban95, Cláudia Vidigal. “E estes pilares precisam mesmo andar juntos, senão passa a falsa impressão de que apenas um deles irá resolver tudo, o que não é verdade”.
Esforços conjuntos e prolongados para transformar BOA VISTA
Um exemplo na prática é a capital de Roraima, BOA VISTA, uma das pioneiras a integrar a rede brasileira da Urban95, iniciativa da Fundação Van Leer coordenada no Brasil pelo CECIP Centro de Criação de Imagem Popular. Há 10 anos, a cidade se empenha pelo título “Capital da Primeira Infância”, adaptando políticas públicas e planejamento urbano pensando nas crianças, com tomada de decisão baseada em dados. Boa Vista, aliás, teria obstáculos para não avançar a pauta, desde o alto fluxo migratório até a qualidade do ar prejudicada pelas queimadas. Mas ainda assim é uma cidade referência para crianças, com muitas ações copiáveis.
As mais visíveis são as áreas abertas de lazer: além da restauração de praças já existentes, há novos espaços em diversos bairros, como o Parque do Rio Branco e seus 160 brinquedos interativos. Também se vê manifestações artísticas em calçadas e muros. O que só os moradores veem: prédios públicos e unidades de saúde estão recebendo áreas de fraldário, salas de amamentação e recreação, pois são locais onde bebês e cuidadores ficam por mais tempo. O mesmo raciocínio ditou a remodelação até dos abrigos de ônibus, com elementos lúdicos e de acessibilidade (estacionamento para carrinho de bebê, bancos prioritários etc). Para saber mais: baixe o guia da Urban95 com as diretrizes para pontos de ônibus amigáveis e leia a segunda reportagem sobre espaços urbanos.
Pergunto a Claudia por onde uma cidade deveria começar, já que os desafios são gigantes: primeiro os estruturais, que denotam urgência, ou os outros? Mas não é uma questão de “ou”, é uma questão de “e”: os múltiplos esforços devem ocorrer concomitantemente. “Saneamento básico é mais importante, ponto final. Mas significa que a criança não vai ter lazer? Uma coisa não precisa acontecer depois da outra. São dois caminhos que andam juntos: um mais estratégico, de longo prazo, outro imediato, senão a gente não aguenta chegar lá. Ninguém vive só de planos que serão efetivados daqui a 10 anos. A infância passa rápido, a criança vive seus primeiros anos uma única vez e não teve nem uma coisa e nem outra.”
Crianças confinadas: déficit de natureza e impactos na saúde física e mental
O direito à cidade anda de mãos dadas com o direito de acesso à natureza. Mas não é de hoje que percebemos o quanto o crescimento acelerado (e desordenado) da urbanização limitou o acesso das crianças a ambientes naturais. A infraestrutura cinza é a paisagem mais comum em bairros e cidades densamente habitados, uma crise estrutural que se agrava e prejudica muito mais as crianças do que os adultos.
Temos dois motivos primordiais para tornar essa causa urgente. O primeiro deles é que a gente só protege o que conhece. Ou seja, conectar as crianças com a natureza é fundamental para o desenvolvimento de uma "cidadania verde", com crianças e adolescentes atuando como agentes de transformação em prol da saúde planetária, na luta contra a crise. O segundo motivo é a saúde da nova geração, física e mental. Crianças que ficam mais tempo na natureza são mais felizes e menos estressadas, comprovam pesquisas compiladas pela Unicef, entidade referência, no guia “A necessidade de espaços urbanos verdes para o desenvolvimento infantil pleno”.
“Somos uma espécie que durante milhões de anos estivemos do lado de fora de forma ativa. Esse confinamento a que nos submetemos causa adoecimento não só das crianças, mas da sociedade toda”, destaca a engenheira florestal Maria Isabel Amando de Barros, especialista em Infâncias e Natureza do Instituto Alana. Existe até um termo não-médico para isso, o "transtorno do déficit de natureza", cunhado por Richard Louv no livro “A última criança na natureza” (2016) para alertar sobre os prejuízos da ausência de verde na infância.
Dois exemplos concretos: a epidemia de obesidade infantil (no Brasil, 1 a cada 3 crianças estão acima do peso; 4 em cada 5 adolescentes são sedentários, diz a OMS) e os altos números de casos de miopia. “As crianças vêm perdendo a oportunidade, por exemplo, de olhar longas distâncias, de mirar o horizonte”, sinaliza Maria Isabel. Nada disso aconteceu de um dia para o outro. O tempo de atividade física vem diminuindo gradualmente.
O livro “A Geração Ansiosa” se refere às crianças nascidas depois de 1995, marcando a transição da "infância baseada no brincar" para uma "infância baseada no celular”. O psicólogo Jonathan Haidt mostra o contraste da superproteção no mundo real e a subproteção no mundo virtual. Sem sair de casa, os filhos “deixam de se expor aos desafios físicos e à experiência social que todos os mamíferos jovens precisam para desenvolver habilidades básicas, superar medos inatos e se preparar para depender menos dos pais".
Ao retirar o celular, o que colocar no lugar? Os especialistas falam uma palavra comprida (e desafiadora de ser cumprida): o desemparedamento da infância. Outro termo não-médico, mas já recomendado por médicos. A Sociedade Brasileira de Pediatria e o Instituto Alana lançaram nesta semana uma nova edição do manual de orientação “Benefícios da natureza no desenvolvimento de crianças e adolescentes”. A importância do verde no planejamento urbano virou capítulo próprio, junto à prescrição de uma “dieta da natureza”, resumido a seguir. Para ficar fácil de lembrar, a dieta é assim: um “arzinho” todos os dias, um “arzão” no final de semana.
“DIETA DA NATUREZA”
É a expressão usada por pediatras e especialistas em infância para estimular que crianças e adolescentes tenham contato cotidiano e frequente com o ambiente natural. Assim como a dieta alimentar é fundamental para a saúde física, a"dieta rica em natureza" é crucial para o desenvolvimento integral e o bem-estar. O plano da dieta deve considerar a faixa etária do “paciente” e as possibilidades de acesso à natureza em seu entorno.
● Brincar em parques e praças por pelo menos uma hora por dia.
● Fazer caminhadas em áreas verdes, como jardins, orlas de praias e lagoas.
● Realizar piqueniques em parques diferentes a cada mês.
● Observar o nascer e o pôr do sol, e contemplar as estrelas.
● Passar fins de semana ou férias em locais com natureza, que permitam autonomia e liberdade das crianças, sob a supervisão dos adultos.
Parques e pátios naturalizados incorporam a natureza, arborização e paisagismo
A presença de natureza e paisagismo em qualquer área urbana incentiva crianças e cuidadores a passarem mais tempo na rua. É por isso que as organizações pró-infância falam hoje em dia dos “parques naturalizados”, uma forma de ampliar a rede de áreas verdes das cidades. A criação destes espaços verdes para brincar vão contribuir para o desenvolvimento das crianças e também para a adaptação das cidades às mudanças climáticas.
Parques naturalizados são espaços ao ar livre que priorizam elementos naturais em seu design, incentivando brincadeiras e convívio social. São diferentes dos parques tradicionais pela experiência mais imersiva e sensorial, além de permitirem expansão da cobertura vegetal, melhorando a qualidade do ar, e regulando o microclima, coisas que um playground de plástico obviamente não proporciona.
A interação com elementos naturais, como troncos, bambu, pedras, água e plantas, incentiva a criatividade e a capacidade de improvisação das crianças. É a chance de retomar parte da infância de antigamente, como escalar árvores, andar em trilhas improvisadas ou construir cabanas. O livro Parques Naturalizados, do Instituto Alana em parceria com a Urban95, orienta sobre a criação destes espaços. Lembrando que a manutenção exige um compromisso do poder público, da comunidade e de outros atores sociais.
Pátios das escolas começam a ganhar mais natureza no BRASIL
Na mesma linha de transformação, é preciso também falar dos pátios das escolas. Você sabia que 65% das escolas públicas de educação infantil não têm nenhuma área verde? Os dados são do Censo Escolar 2022. E é nestes locais que as crianças passam a maior parte do seu tempo. “Imagine se as escolas trocassem o cimento por água, terra, areia e árvores?”, pergunta a engenheira florestal Maria Isabel. Algumas cidades já imaginaram e executaram. Os pátios naturalizados se tornam espaços mais atrativos e estimulantes para as crianças.
Já que as crianças passam muitas horas do seu dia nas escolinhas, levar a natureza para dentro é um grande começo. Em CANOAS, região metropolitana de Porto Alegre/RS, instituições de educação infantil receberam pátios naturalizados como estes das fotos. Elementos aproximam as crianças da natureza e incentivam o brincar livre: troncos de equilíbrio, de escalada, balanços, caixas de areia, tirolesa e até chuveiro para contato com a água. Em vez de plástico, as cozinhas de faz-de-conta são de madeira, as comidinhas são terra e folhas. Este projeto foi executado pela prefeitura com investimento-semente da Urban95, apoio do Coletivo Taboa e consultoria do arquiteto Rafael Passos. Canoas também tem outras ações pró-criança, como as Ruas de Brincar (veja na segunda parte da reportagem), parceria com a Global Designing Cities Initiative e Urban95.
Trilhas ecológicas para famílias no CHILE
Localizada na região noroeste de Santiago do Chile, a cidade de RENCA (150 mil habitantes) tem um programa chamado “Crescendo em Renca”, iniciativa para enfrentar as desigualdades sociais e ambientais com foco nas crianças. Para incorporar mais áreas verdes aos espaços urbanos, o programa está transformando 200 hectares dos morros de Renca, motivo de orgulho na identidade local, em um parque metropolitano com espaço de recreação naturalizada e educação ambiental. Trilhas ecológicas levam até mirantes panorâmicos no meio dos caminhos, incentivando mais atividades físicas e conscientização sobre o meio ambiente. O projeto também inclui dois buggies que podem transportar idosos e cuidadores com crianças pequenas ou bebês. Renca tem um Conselho Infantil, em que as crianças têm participação nas decisões da cidade. Todos os moradores, incluindo os adolescentes, também são convidados para os mutirões de reflorestamento.
O verde é a cor que mais falta na paleta das cidades
Não há como dissociar a questão climática da vida das crianças, pois já vimos que o ambiente afeta o desenvolvimento e a saúde ao longo da vida. A maior força no combate às mudanças climáticas está nas mãos das cidades, onde a economia global gira, mas o último relatório do New Climate Economy alerta: as áreas urbanas não estão fazendo uso do seu potencial de transformação. E isso pode significar perder as últimas chances de deter as alterações do clima e reduzir a pobreza.
Os dois assuntos estão diretamente relacionados. É o chamado “racismo ambiental”, observado de várias formas. Pesquisa da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal aponta que 64% das crianças negras na primeira infância não têm acesso a saneamento básico. Prejuízos no presente e no futuro: crianças sem acesso a esgoto e água tratada têm, em média, rendimento 46% menor ao longo da vida adulta, indica estudo Instituto Trata Brasil. Famílias em áreas urbanas de baixa renda tampouco têm acesso a espaços verdes. Na pesquisa “Brincar nas Favelas Brasileiras”, do Instituto Data Favela nas capitais brasileiras, revelou quão raro é qualquer estrutura de lazer nas periferias.
A poucas ruas de distância existem mundos distintos. De um bairro para outro, até a temperatura é diferente. O fenômeno tem nome, “ilhas de calor”, e a explicação é técnica: as regiões com grande densidade populacional têm menos arborização e áreas de respiro, as construções muito próximas umas das outras absorvem mais calor.
Em São Paulo, Paraisópolis chega a ser 10 graus mais quente que o Morumbi, bairro vizinho, classificado como "ilha de frescor" pela plataforma UrbVerde, da USP. Não acontece só no Brasil: a disparidade de temperatura entre bairros ricos e pobres também existe nos Estados Unidos. Na cidade de Richmond, na Virgínia, um estudo de 2020 revelou que as áreas historicamente segregadas e de baixa renda são mais quentes durante o verão do que os bairros mais ricos, com diferença de até 16°F (8,9°C).
Quem leu até aqui já sabe qual grupo mais sofre. Bebês e crianças pequenas têm maior dificuldade em regular a temperatura corporal do que adultos, o que pode levar à insolação e exaustão. Calor extremo também leva à desidratação (causando vômitos, diarreia e danos a órgãos vitais). A lista de impactos negativos é grande, compilada na pesquisa “Growing Up in a Warming World”, do renomado centro de referência em desenvolvimento infantil da Harvard University.
Prometemos soluções em vez de só trazer problemas. Fomos até MEDELLÍN, na Colômbia, para conhecer os famosos “corredores verdes urbanos”. E é claro que estando lá, vimos os exemplos não só de combate à crise ambiental, mas também as dinâmicas sociais em prol de crianças e suas famílias, especialmente nas periferias.
Conhecida como a Cidade da Primavera Eterna, a segunda cidade mais populosa da Colômbia também sentiu o aumento da urbanização, causando a absorção e a retenção do calor pelas ruas e construções da cidade. Nem o clima temperado estava ajudando. Várias ações em conjunto foram implantadas, sendo a principal o sistema de mais de 30 corredores verdes urbanos, conectando áreas verdes e criando espaços de lazer e bem-estar. Este sistema reduz a temperatura em até 2°C em algumas áreas, combatendo o efeito “ilha de calor”. De quebra, a vegetação dos cinturões atua como "barreira verde", absorvendo poluentes e melhorando a qualidade do ar.
A transformação de uma das cidades mais perigosas do mundo para um modelo de inovação social e urbana oferece valiosas lições para outros países. Nas décadas de 1980 e 1990, registrava uma taxa alarmante de crimes, chegando a registrar 395 homicídios por 100 mil habitantes. A partir dos anos 2000, Medellín iniciou um processo de transformação, com foco na redução de desigualdades para reduzir a violência.
Como nada se faz sozinho, uma série de projetos e iniciativas passaram a priorizar a inclusão social, a educação, a cultura, a mobilidade urbana sustentável e a participação cidadã. Um exemplo são estas três letrinhas: UVA, as Unidades de Vida Articulada. Estruturados sobre os reservatórios de água da cidade, espaços antes totalmente ociosos nas periferias, hoje são centros comunitários altamente inclusivos, configurando o núcleo da vida coletiva de cada um dos seus bairros. É lá que as crianças e os adolescentes passam o tempo após a escola e nos finais de semana, com esporte, lazer e cultura.
Todas as UVAs que visitei são vibrantes, mas o lugar mais contagiante é a Comuna 13, a comunidade mais turística (e que já foi o lugar mais violento da cidade). Grafittis estampam as paredes das casas e do comércio em coloridas galerias de arte ao ar livre. Parece um detalhe, mas teve papel fundamental na transformação do lugar ao proporcionar espaços de expressão e oportunidades desde cedo aos artistas periféricos. Quem me explicou foram os idealizadores da Casa Kolacho, coletivo que ensina os elementos da cultura hip-hop (breakdance, DJing, rap e graffiti) para crianças e jovens, fortalecendo a identidade local.
Falando assim, parece que tudo foi fácil e rápido, só que não. “Transformar uma cidade não é de um dia para o outro. Não se faz em quatro anos, não se faz com um só grupo, em uma só administração. Medellín levou três décadas”, explica o antropólogo Santiago Uribe, coordenador do projeto Cidades Resilientes em Medellín, enciclopédia viva da metamorfose colombiana. Temporariamente morando em Porto Alegre, onde atua como consultor do Pacto Alegre após as enchentes no Rio Grande do Sul em maio, Uribe me tirou da zona de conforto em todas as vezes que conversamos sobre “cidades boas para crianças”. Para além do urbanismo, falar sobre cidades é falar de comportamento, de cultura, de pessoas.
Um dos pontos que destacou para a Capital gaúcha ser mais inovadora, assim como outras cidades brasileiras, é a mobilidade, que faz toda a diferença para integrar a população (e não só dos bairros mais afastados). Transporte tem tudo a ver com inclusão. Veja a solução das escadas rolantes elétricas, que facilitam o acesso interno aos morros de Medellín, complementos do metrô e dos teleféricos que levam até territórios periféricos rapidamente.
Nas saídas a campo para esta reportagem, andei antes pela favela da Rocinha, que já foi a mais populosa do Rio de Janeiro. Caminhando pelos labirínticos becos e escadarias da Rocinha, ficava imaginando justamente as soluções de mobilidade e lazer que poderiam existir lá. Conversando com moradores, ao explicar o roteiro desta reportagem, citei algumas vezes a favela mais famosa da Colômbia e suas características inovadoras. Via os olhos de surpresa seguidos do gesto imediato de procurar fotos da Comuna 13 no Google. “Mano, imagina que rápido voltar para casa quando a gente tá cansado”, comentou Mateus Figueiredo, 12 anos, que sobe e desce muitas vezes todos os dias após a aula e a prática de surfe.
É a mesma linha de pensamento das organizações pró-infância. “Proximidade é cuidado. Porque proximidade é tempo, é diminuição de estresse, pensando nos filhos e seus cuidadores. Pais exaustos que ficam horas em deslocamentos acabam tendo pouco tempo de qualidade para outras interações”, explica Cláudia Vidigal, da Urban95. Além disso, a falta de espaços de convívio nas periferias também prejudica o convívio.
Hoje em dia, é um desafio criar um espírito comunitário dentro do bairro onde a criança vive. “Faz a diferença ter um espaço de engajamento comunitário, ainda que seja pequeno, mas que a comunidade possa sair, se encontrar, brincar no final do dia. Que as mães possam se conhecer e se reconhecer nas dificuldades e se apoiar mutuamente”, define.
Um bom exemplo ocorre em Niterói, no Rio de Janeiro. É possível incentivar a amamentação, um ato singular da mãe com o bebê, por meio da criação de um espaço público? Este projeto-piloto mostra que a ideia é altamente viável. Integrante da rede Urban95, Niterói abraçou a metodologia Proximity of Care (“proximidade do cuidado”), da Fundação Van Leer com a multinacional Arup, para desenhar a proposta. O local escolhido foi o subúrbio Jurujuba, no Morro Salinas. A proximidade com a creche comunitária foi um dos motivos da escolha do espaço. Profissionais de áreas como da saúde e pedagogia realizaram encontros e conversas com mães e grávidas, com o objetivo de aumentar o índice de amamentação exclusiva até os 6 meses, crucial para o desenvolvimento saudável dos bebês.
“Amamentar ainda é um tabu em espaços públicos no Brasil, então a mensagem tinha que ser clara: sinta-se à vontade para amamentar aqui”, destaca Ana Maciel, arquiteta sócia do Estúdio+1’s, que projetou o espaço.
Tudo foi pensado para incluir a comunidade, desde a pintura do mural feita por crianças e jovens moradores, até contação de histórias e testes de mobiliários em escala adequada para os bebês, privilegiando a proximidade física, em vez de distanciar adultos de um lado e “cercadinhos” de outro. Os testes de engajamento para sentir a adesão dos moradores, retratados nas fotos acima, foram positivos. Este é um projeto-piloto, que precisa ser executado pelo poder público e pode ser replicado em outras comunidades.
A vida e o bem-estar das crianças estão sendo moldados pelas cidades em que crescem. Por isso, cabe a nós abraçar a causa das cidades amigáveis à infância e proporcionar o melhor ambiente possível. Antes de fechar a tela, cabe um último pedido: compartilhe estas matérias com quem também se interessa pelo futuro da próxima geração.
*Esta reportagem foi produzida com apoio da Heinrich Böll Stiftung Foundation por meio da Transatlantic Media Fellowship 2024.