"A carne é tão delicada quanto um caviar", diz Marcos Bassi
Há mais de 50 anos, Marcos Bassi trabalha duro para fazer jus ao nome do seu restaurante, um dos mais conceituados de São Paulo, o Templo da Carne. Ele é do tipo que acorda cedo, dorme tarde, e ama tanto o que faz que passa a maior parte do tempo com a mão na massa – neste caso, na carne.
Ele se autodefine como um “artesão”, um profissional “fazedor”, explicando que prefere produzir a gerir. Por isso, se cercou de bons profissionais para poder se dedicar na maior parte do tempo ao que mais gosta de fazer, estudar a carne e repassar esse conhecimento. Foi assim que ele criou alguns dos cortes mais vendidos no País, a fraldinha, além do “bombom”, o steak do açougueiro e a costela do contrafilé
A história com a carne começou cedo, quando ele ainda vendia miúdos pelas ruas do Brás, onde nasceu. O segundo passo foi conseguir um espaço no Mercado Municipal, o Mercadão, onde começou a tornar o nome conhecido, atendendo imigrantes da região. Anos se passaram e ele se firmou na esquina na Rua Humaitá no bairro do Bixiga, onde fundou a Casa de Carnes Bassi.
Autodidata e com muita habilidade manual, ele investiu nos estudos sobre novos cortes, projetando seu nome e fornecendo carne para o Brasil inteiro. O Templo da Carne, inaugurado em 1979, foi o resultado de anos de trabalho e é onde divide tarefas com a mulher e das duas filhas, que também trabalham no restaurante.
Ele ainda encontra tempo para ministrar palestras, busca educar o consumidor e valorizar o rebanho nacional. Nesta terça-feira (27), acontece em São Paulo o lançamento do seu mais novo livro, Carnes e Churrasco, pela Editora Senac.
Na publicação, Bassi promete ensinar como se faz um bom churrasco, da compra da peça à churrasqueira. Afinal, para ele, “a carne é tão delicada quanto um caviar”, e, por isso, merece respeito. Confira abaixo os principais trechos da entrevista concedida com exclusividade ao Terra.
Terra: Como começou sua história com a carne?
Marcos Bassi:
Começamos vendendo miúdos na rua. Depois, fomos para uma casa de carnes no Mercado Municipal, também vendendo miúdos. Depois disso, abri uma casa de carnes na rua Humaitá, e lá começou a surgir todas as coisas que faço hoje, que é de conhecimento do Brasil todo. Com os cortes que criamos, a agregação de valores que colocamos no produto, contribuímos muito não só com a pecuária, mas também com o setor frigorífico, educando nas milhões de palestras que eu fiz, dentro e fora do Brasil.
Terra: O que você quer dizer quando fala em “educação do consumidor”?
M.B.: A carne é um produto que todo mundo gosta de comer no Brasil, mas você não come de uma forma unânime, cada lugar você come de uma maneira, com um preparo diferente. Geralmente ensino a manipular um bom produto, desenvolver novos cortes e fazer com que eles tornem um novo hábito alimentar.
Terra: E como foi essa história de começar com miúdos?
M.B.: Necessidade financeira. Eu tinha perdido meu pai, precisava ganhar dinheiro. Aprendi com o açougueiro da minha rua. Já a paixão, é outra coisa, e o conhecimento veio com o tempo, com a maturidade financeira. Acho que fui privilegiado, porque além de poder estudar tudo isso, eu tenho uma habilidade manual inata.
Terra: Como foi essa transição?
M.B.:
A Casa de Carnes já nasceu com um refinamento, com um requinte, de limpeza, de higiene, de apresentação. Eu tinha os meus clientes, os Matarazzo, o pessoal da avenida Paulista, do morro dos ingleses, e aprendia muito sobre a cultura alimentar dos outros países. Isso fazia com que cada vez mais eu precisasse estudar as partes do boi. Imagina uma pessoa pedir ossobuco e você não sabe o que é? E não tinha quem me ensinasse absolutamente nada. Hoje tem tanta gente falando de culinária, na minha época não tinha nada. Minha vantagem é que nasci no berço do produto, no Mercado Municipal.
Terra: Sobre essa fase no Mercado Municipal, como foi esse período na sua vida?
M.B.:
Eu já tinha facilidade e essa paixão pelo alimento. Mas para que eu pudesse saber alguma coisa, tinha que pegar livros e revistas de culinária. Eu tinha 14 anos de idade, e não tinha dificuldade nenhuma de levantar 6h da manhã para trabalhar.
Terra: Como você se lembra dessa época?
M.B.:
Apesar de a vida inteira ter carregado muito peso, ter trabalhado muitas horas, não foi penoso, não foi um sacrifício. Pisar na umidade, lidar com enchentes, entrar em frigorífico. Mas não passei nenhum sofrimento, só cansaço. Foi ótimo, uma experiência de vida que me formou como homem e empresário. Se eu pudesse fazer novamente, eu continuaria fazendo porque é delicioso é uma historia de vida legal. Independente se isso me deu mais ou menos dinheiro. E hoje, só não entro no Mercado Municipal para fazer o que eu fazia, mas todos os dias vou na minha central frigorífica, mexo na carne...
Terra: E como é a sua rotina?
M.B.:
Sou um homem de visão, um empreendedor e fazedor. Tenho pessoas extremamente competentes para administrar os meus negócios, sempre soube escolher boas pessoas para estar do meu lado. Eu gosto de por a mão nas coisas, sou um artesão. Sou uma pessoa que levanta muito cedo e dorme tarde. Tem dias que durmo 6h, tem dia 4h. O sono não me faz tanta falta. Estou acostumado e até de domingo levanto cedo, que é o único dia que eu não trabalho.
Às vezes, 6h30 já estou aqui [no Templo da Carne] conversando com todo mundo, mesmo que eu tenha saído daqui 23h. Toda a minha família está aqui dentro, isso é o que a gente faz. E também faço as palestras, que dou no mínimo três vezes por semana.
Terra: E quando você para?
M.B.:
Às vezes eu viajo, uma semana, dez dias. Trinta dias por ano eu divido em 10 porque [o que faço] não é sacrificante, é prazeroso.
Terra: Além da fraldinha e do bombom de alcatra, quais outros cortes você criou?
M.B.:
A fraldinha eu criei em 1967, o bombom de alcatra nos anos 80, mas também tem a costela do contra-filé, o steak do açougueiro. São cortes que se tornaram notórios de carne in natura porque são as menores partes do boi e com melhor valor agregado.
Terra: E quais são as principais dificuldades no processo de criar um novo corte?
M.B.:
O difícil é fazer com que isso se torne hábito alimentar, como foi o caso da fraldinha. Por muitos anos ela foi retalhos da alcatra, e tornou-se uma carne popular porque é muito saborosa. O processo de desenvolvimento é basicamente isso: aculturar as pessoas para consumirem, e isso às vezes demora anos. Existem muitas carnes ainda para serem descobertas.
Terra: Com relação aos miúdos, você acha que no Brasil eles estão ganhando mais destaque?
M.B.:
Eu costumo dizer que no Brasil não se come carne por cultura alimentar, e sim por renda per capita. Quando comermos o todo do boi e aprendermos que não tem carne de primeira e carne de segunda , e sim boi de primeira e boi de segunda, estaremos valorizando cada vez mais cada parte do boi e também o produtor.
Terra: Você trabalha com carne 7 dias por semana. Você é um consumidor voraz de carne vermelha, ou tenta fazer uma dieta mais balanceada?
M.B.:
Voraz! Eu como peixe, gosto muito de frutos do mar e como quando tenho oportunidade, mas a maioria dos dias como carne. E não tenho colesterol! (rindo)
Terra: Quais são seus cortes preferidos e por quê?
M.B.:
Gosto muito de comer a fraldinha porque ela não tem gordura, não posso ficar comendo muito gordura. As mulheres gostam de comer a fraldinha, e também as crianças. Também é uma carne para atleta, que gosta de proteína com baixo teor de gordura. E também quando sobra, você pode picar e comer em um vinagrete com sanduíche. Adoro sanduíche de fraldinha e foi assim que ela nasceu. Na casa de carne, vendíamos lanche assados, e ela foi um sucesso de imediato. Hoje, é a segunda carne mais vendida no País, e já já vai passar a picanha!
Terra: Em viagens fora do Brasil, quais lugares você considera que comeu boas carnes, como as nossas ou melhores do que as que encontramos por aqui?
M.B.:
Gosto muito de comer nos Estados Unidos, minha filha morou oito anos lá. Também gosto das carnes da Austrália. Na Europa você não come carne como come aqui no nosso País. Não gosto muito do churrasco feito no chão, por conta do vento resseca muito a carne. E não é em Buenos Aires que se come a melhor carne, e sim nos interiores. No fundo, o churrasco é um grande estado de espírito, uma grande festa, porque comer uma carne boa é na verdade muito difícil.
Terra: Por quê?
M.B.:
Porque às vezes você tem uma matéria-prima de boa qualidade, mas não sabe lidar com ela. A carne é tão delicada quanto um caviar, tem que ter requinte, apresentação. Não é porque você é um churrasqueiro que não é um chef de cozinha. É preciso entender da carne, do corte, da temperatura. E o meu livro ensina tudo isso.
Terra: No seu livro, o que você ensina?
M.B.:
A adquirir uma boa carne, manipular e fazer. É um livro que serve para quem nunca fez churrasco na vida, ou para quem quer aprender sobre carnes , seja quem for. Até mesmo o açougueiro. Tem muito açougueiro que não sabe essas técnicas. E também é para a dona de casa, para o churrasqueiro do final de semana. Para saber pedir o produto em qualquer lugar do nosso país. Ele é altamente didático, linguagem fácil, tudo acompanhado de foto, como corta, como tira, como salga, como compra.
Terra: No Brasil, quais são seus lugares preferidos para comer uma boa carne?
M.B.:
Eu vou ser muito sincero com você. Não como carne fora do meu restaurante. Quando eu saio, quero comer comida italiana (rindo)! Então é porque geralmente quero comer algo diferente.
Terra: Na sua trajetória profissional, tem alguma história que marcou muito?
M.B.:
O senhor Pery Igel, dono do Grupo Ultra, era um homem que respeitava muito o que eu fazia, e tinha a oportunidade de me ver manipular a carne, quando eu era ainda garoto na casa de carnes. Quando eu abri o frigorífico e o restaurante, ele colocou o pé esquerdo na porta, e depois trocou para o pé direito. E disse: “estou adentrando ao templo da carne”. Isso deu uma conotação ao templo da carne, por isso fazemos vários festivais, mostramos novos cortes.
Terra: O que não pode faltar em um churrasco?
M.B.:
Carvão não pode faltar, na quantidade certa. Sal correto e boas facas para manipular a carne. E não ter pressa, porque a pressa é inimiga do churrasco. Também é preciso respeitar o gosto de todo mundo, você é quem tem que aprender a fazer as coisas como as pessoas gostam. E a sogra, né? Cunhado você pode até dispensar, mas a sogra nunca! (rindo)