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Gastronomia afetiva vive polêmica entre a farsa e a memória da avó

Debate ganhou espaço nas redes sociais conforme chefs e críticos mostraram diferentes opiniões sobre o assunto.

2 jan 2023 - 16h46
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Prato do restaurante Komah: chef Paulo Shin acredita no conceito de gastronomia afetiva.
Prato do restaurante Komah: chef Paulo Shin acredita no conceito de gastronomia afetiva.
Foto: komahrestaurante/Reprodução/Instagram

"Golpe de marketing", "comida de avó", "um abraço quentinho", "uma grande farsa". Essas são algumas das descrições usadas por chefs e críticos ouvidos pelo Paladar sobre a gastronomia afetiva, nome dado para a cozinha que busca memórias de sabores e aromas ligados ao passado da pessoa por meio da comida. Uma polêmica que surgiu nas últimas semanas, porém, coloca essa cozinha em xeque: será que realmente existe comida afetiva?

O grande ponto de discordância está na forma que essa gastronomia é encarada. Afinal, a comida afetiva parte do pressuposto que será uma forma de afeto com o cliente final. No entanto, como garantir que essa comida está ligada com o passado daquele cliente? Pode ser que a macarronada preparada de tal maneira lembre a avó de uma pessoa, mas não vai causar nenhuma emoção em outra que, por sua vez, vai sentir isso com um brigadeiro.

Ian Oliver, crítico gastronômico do perfil Crítico Antigourmet, no Instagram, se coloca contra a gastronomia afetiva. Para ele, é preciso diferenciar a culinária da gastronomia nesse caso. "São coisas absolutamente diferentes", diz ao Paladar. "Culinária é uma prática do mundo privado, na casa das pessoas. O que está no âmbito privado não tem discurso, não há possibilidade de crítica. A gastronomia é diferente. É a comida pública. É a comida que o restaurante vai lá, abre as portas, coloca sua comida para o público".

Com isso, não dá para pensar em uma gastronomia afetiva. Não é possível, segundo Ian, que uma tarefa pública toque aquilo que é mais individual em uma pessoa: a vida privada e seus gostos. “É impossível um chef querer chegar na memória afetiva de 100 clientes, 200 clientes em um dia. Pode até fazer uma média do que ele supõe ser uma memória afetiva dos brasileiros, mas aí cai em reducionismo, mediocridade ou breguice estereotipada”, diz.

Um cenário similar é observado por Jota Bê, crítico gastronômico do Boteco do JB. “Existem duas cenas de comida afetiva na cidade: os comércios simples e familiares cuja comida servida remete a infância do comensal, ativando assim a memória afetiva; e há um famigerado cenário gastronômico capitalizando em cima desse tipo de situação”, diz.

Além do preparo

Apesar das opiniões contrárias de Jota Bê e Ian Oliver, há quem defenda a gastronomia afetiva – ou, pelo menos, não vê motivo para críticas contundentes. É o caso do chef André Rochadel, colunista de gastronomia do portal Metrópoles. Enquanto o perfil Crítico Antigourmet publicou um texto dizendo que “o afeto é a morte da gastronomia”, Rochadel fez um artigo falando o contrário: para ele, os chefs devem apostar nesse tipo de comida.

“Pessoalmente, acho que a polêmica vem mais sobre o que consideramos gastronomia afetiva e também com a frustração com sua desvirtuação. Como qualquer vertente que se torna comercial, há o abuso de seu uso em situações que não são corretas. Aconteceu isso com o termo gourmet, com contemporâneo e agora entra a afetiva nessa”, explica o chef.

Segundo ele, o afeto não parte do preparo, mas sim do produto. “[A gastronomia afetiva] resgata os processos simples, a valorização do produto, a simplicidade dos preparos”, exemplifica. “É com pouca manipulação e poucos processos que se valoriza o ingrediente e que se mostra o real talento do cozinheiro. É conseguir extrair o que o produto tem de bom. Uma gastronomia afetiva pra mim não é a que lembra exatamente o frango da minha avó, mas sim aquela que dá uma sensação de ‘abraço’ no estômago, de relaxamento, de algo simples e bem feito, assim como comíamos em nossas casas e de nossos amigos”.

Paulo Shin, chef do restaurante coreano Komah, vai além. “Cada pessoa tem a sua própria referência. Pode ser da vó, da tia, da mãe ou de um restaurante que você frequentava com alguém querido. É complicado as pessoas se apropriarem e falarem que não existe”, diz o chef. “Acho que a gastronomia afetiva tem mais a ver com o serviço. Remete ao cuidado, ao afeto, ao carinho. Seja pelo atendimento, pelo chef, pelo prato. As pessoas vão às cantinas, por exemplo. Não tem nada tecnicamente ali, mas é simples, é gostoso, e é muito afetivo”.

Futuro da gastronomia afetiva

Conforme cresce a gastronomia afetiva e mais pessoas buscam por essa comida que “abraça”, mais restaurantes tentam embarcar na onda. “Vemos bizarrices em menus como ‘pudim da vovó’ e ‘milanesa da mamãe’ com o simples intuito de surfar na onda e cobrar mais. Acho que esses devem ser ignorados como qualquer outro excesso”, diz Rochadel.

André Mifano, chef do restaurante Donna, entende que este é um movimento comercial, mas vê as possibilidades do mercado com outros olhos. “Acho que existe uma cena complexa em São Paulo, com uma concorrência muito grande, e termos surgem de tempos em tempos para tentar te separar da massa. Algumas pessoas vão se aproveitar de alguns nomes e tá certo. Tá difícil demais. Talvez a palavra da vez seja afetiva. Há uns anos atrás, era molecular. Antes era caseiro, era simples. A indústria sempre encontra uma palavra. O importante é, independente de ser comercial ou não, manter a emoção na cozinha”, diz.

Curiosamente, apesar das diferentes visões sobre o que é gastronomia afetiva, há um consenso absoluto entre todos entrevistados: esse tipo de comida tem futuro em todo Brasil.

"Muitas vezes o rótulo de culinária afetiva é usado para compensar erros técnicos grosseiros. E isso tá ganhando público. Muita gente acredita nisso. Acredita que vai comer, se sentir abraçado e ter a memória revisitada. Tem público pra tudo, tem gente que quer ser enganada. É um cenário cada vez mais promissor", diz Ian, do Crítico Antigourmet. "É um discurso apelativo, é uma promessa muito bonita. Mas não tem nada a ver com o que a gastronomia pretende fazer. Pode ser que cresça, pois ainda há muito espaço para isso".

Checho Gonzales, do Mescla, também não critica a gastronomia afetiva e concorda com Paulo Shin: o afeto está no trato do cliente e isso faz parte do futuro dos restaurantes. "Meus clientes estão cada vez mais carentes de um atendimento personalizado, quando lembramos do nome das pessoas, como antigamente. Virou uma máquina, são restaurantes com 300 lugares, e as pessoas querem esse atendimento próximo. Aqui no Mescla, o salão é a extensão da minha casa. Eu recebo como recebo na minha casa. Esse é o futuro", diz.

Estadão
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