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O café com bolo marca e empobrece a comida de rua em São Paulo

Qualidade duvidosa, exploração de mão de obra e violência urbana são características do café da manhã de rua de boa parte dos paulistanos.

8 dez 2022 - 13h02
(atualizado às 13h06)
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Foto: Reprodução/Getty Images

O café com bolo virou um ícone da comida de rua na cidade de São Paulo. Para azar dos paulistanos.

Se a gastronomia de calçada é atrativo turístico em várias partes do mundo, aqui ela se torna cada vez mais marca registrada da pobreza e da violência que desfilam pelo cenário urbano.

O ceviche é onipresente em Lima. O choripan e a empanada dividem o sucesso em Buenos Aires. Tem falafel em carrinhos de rua na França e nos países árabes, arancini em Roma, wurst na Alemanha e na Áustria, sem falar do cachorro quente e do pretzel que disputam preferências nas metrópoles americanas. No México sobram variedades de massas à base de milho recheadas com o que se possa imaginar.

Ainda existem barracas de pastel, carrinhos de pipoca, espetinho na brasa, pernil desfiado na chapa, sanduíche de linguiça e até pizza de R$ 10 na porta dos estádios, mas a marca mais recente e visível da comida de rua paulistana tornou-se o café com bolo.

O café é serviço adoçado, acondicionado em garrafa térmica, não poucas vezes requentado e com aquele odor característico de pó torrado demais e batizado com milho, cevada e outras substâncias menos identificáveis.

Muito açúcar, pouco ovo e produção clandestina

Mas mesmo esse café, difícil de engolir, ainda pode ser melhor do que o bolo, que em geral tem muito açúcar, escassez de leite e ovos na massa, excesso de fermento e variável tempo de forno. Tão variável que pode levá-lo do embatumado quase cru ao ressecado de crosta amarga.

Tem algum que se salva? Tem. Mas é preciso procurar com critério. Nos lugares por onde passam muitos pedestres, perto de estações do metrô, pontos de ônibus, hospitais e escolas, é quase nula a chance de encontrar uma legítima boleira que prepara receitas em casa, corta em quadradinhos e leva para a rua numa caixa plástica, cedinho, com a garrafa de café recém-coado numa sacola, uma banqueta e uma mesinha dobráveis.

Essas, legítimas empreendedoras domésticas, estão confinadas em calçadas de pouco movimento, empurradas por uma verdadeira máfia que, com o tempo, foi tomando conta do negócio e hoje controla o café com bolo do mesmo modo que são controlados os camelôs, os vendedores de balas dos semáforos e, pode acreditar, até os pontos de mendicância.

Excetuadas as poucas boleiras de verdade, que até têm seu apelo castiço e podem representar uma experiência original de café da manhã, o que há nas ruas é uma indústria de exploração de mão de obra impiedosa e violenta que vende comida ruim e age com a estratégia de traficantes de droga.

As ações de fiscalização não são muito comuns nem esperadas numa cidade empobrecida e povoada de desempregados dispostos a trabalhar por trocados. Para piorar o quadro, quando uma blitz acontece, acaba levanto junto, ou até principalmente, as inocentes e verdadeiras boleiras.

Elas não têm nem a agilidade nem a malícia da concorrência para dobrar os tabuleiros e escondê-los, junto com a mercadoria, em vãos e buracos urbanos previamente mapeados pelos grandes controladores do negócio.

O desavisado, turista de verdade ou paulistano de classe média dado a explorações de cunho social, para na barraquinha imaginando viver uma experiência cultural gastronômica e na prática tem mesmo é um breve contato com um universo paralelo de pobreza e ilusionismo.

Controle rígido da mercadoria e do desperdício

Os bolos vendidos pela maioria, de formas clássicas, redondos, com furo no meio, aparência apetitosa e sabores decepcionantes embora variados, são comprados em fábricas clandestinas, que ninguém visita para cobrar impostos e muito menos para checar as condições de higiene ou as relações de trabalho.

A distribuição aos pontos de venda ocorre de madrugada e é feita por picapes e furgões que levam mesinhas, produtos e acessórios para os locais onde os vendedores os esperam para receber também o avental, a maquininha de cartões e, nem sempre, um guarda-sol.

Até 9 horas, 10 no máximo, a diária está encerrada. O sol não pega tanto de manhã. E, quando o tempo está ruim, mais de metade dos pontos de café com bolo não funciona. Não é fácil comer bolo e tomar café com guarda-chuva na mão.

Um dia pelo outro, o vendedor leva para casa entre até 50 reais, seja por pagamento fixo ou comissão, conforme o acerto com o "dono" do ponto. Alguns têm direito a duas fatias de bolo e um copo de café com leite, bônus bancado pelo patrão.

Há casos de famílias que controlam vários pontos próximos um dos outro – marido numa mesinha, esposa na outra, um filho aqui, um cunhado lá. No final, compõe-se uma renda familiar razoável, principalmente para pessoas que estão inscritas em todos os programas possíveis de benefício social.

Cada fatia custa de R$ 2,50 a R$ 4,00, dependendo da região da cidade e do sabor do bolo. Saem muito o de mandioca e o de milho cremoso, que enchem bem o estômago. Também são sucesso o que tem cobertura de chocolate e os de cenoura ou laranja, junto com o rajado, que deveria ter milho e queijo no meio da massa. A clientela não se ilude e consome com consciência de que não há mágica capaz de fazer bolo barato sem artimanhas culinárias, fiscais e trabalhistas.

O café pequeno sair por R$ 1. Com leite, R$ 2,50, o copo plástico cheio. No boteco, o tradicional pão com manteiga acompanhado da média paulistana – café com leite num copo americano – custa pelo menos R$ 8. Tem banca de café com bolo que vende ainda sanduíche e salgados, sempre com preços um terço menores que os dos bares do entorno.

A convivência desses dois ramos comerciais é bastante tumultuada. Não tem café com bolo diante de bar e não é fácil para os vendedores de rua ser aceitos num banheiro de boteco na hora do expediente.

Do lado dos consumidores, a economia parece magra para os que têm o privilégio de tomar um bom café da manhã. Mas é irresistível para quem sacoleja todo dia em duas ou três linhas de transporte e não tem tempo, ou recursos, para abastecer a despensa ou a geladeira com mantimentos que garantam o lanchinho ou a marmita.

Despensa e geladeira podem ser, por sinal, luxos desconhecidos para essa população. E dinheiro para compra de longo prazo – uma semana! – está fora de cogitação. É mais prático, rápido e conveniente, nessas circunstâncias, o café com bolo.

Para esse público, não há surpresa alguma em situações que poderiam chocar gente menos acostumada à agressiva rotina do comércio de rua. Não é incomum, por exemplo, o capanga que controla a atuação dos vendedores ameaçar um ou outro pelo desaparecimento de algumas fatias ou porque um pedaço de bolo caiu no chão. Isso, diante da freguesia, sem constrangimento de nenhuma das partes.

Na cidade mais rica do país, o empobrecimento da comida de rua é mais um contraste num panorama em que sobra desigualdade. Boa parte dos consumidores desses produtos é composta de migrantes vindos de regiões brasileiras nas quais o café da manhã de rua tem tradição e marcas regionais – e até riqueza nutricional.

O X-Caboquinho, sanduíche de queijo e tucumã (fruto de uma palmeira), é oferecido em barracas de Manaus ao lado de pamonha, cuscuz e banana frita. Belém tem tapioca. Em Recife, o café da manhã na rua pode ter bolo de rolo ou de pote. Minas exporta a cultura do pão de queijo. E por aí vai.

Estadão
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