Conheça o kintsugi, a filosofia japonesa do conserto
Pandemia, só dá ela. Pandemia! Pandemia! Pandemia! Não se fala em outra coisa, Não se pensa em outra coisa. Por isso mesmo, em meio à loucura, nossa obrigação, num mundo insano, é ser cada vez mais sensato.
Nesses muitos (e longos!) dias de despedaçamento – isolados, frágeis, angustiados, na solidão e no medo –, quando a sensação geral é que tudo estilhaçou, nossa tarefa é o conserto: recompor, recolocar, reordenar, reformar.
O conserto que almejo é o do kintsugi, a “emenda dourada” do zen. Trata-se da milenar arte oriental de reparar uma peça de cerâmica quebrada com o emprego de um tipo especial de laca (misturada com pó de ouro, daí o nome: liga ou correção de ouro).
O kintsugi, caminho de bom gosto aberto na simplicidade, sutil e elegante, está comprometido com a base do pensamento zen, a aceitação do defeituoso e do imperfeito, do que revela a efemeridade e a fugacidade de tudo. O kintsugi ensina o domínio do espírito sobre a matéria, o primeiro como morada do eterno, a última (refúgio provisório do nosso corpo), como temporária.
Curiosamente nas tradições orientais das cerimônias do chá, os apetrechos de cerâmica consertados pela “emenda dourada” ganham nova grandeza, são mais queridos e reverenciados. Eles se tornam a ilustração palpável da necessidade de aceitação do defeituoso, do imperfeito, das inevitáveis marcas de desgaste (alterações, modificações) vindas do uso das coisas materiais, das correções como simples eventos sempre presentes na vida.
A xícara partida em dezenas de cacos pode ser refeita. Sua recomposição surge como uma alternativa à realidade do seu despedaçamento. Após trabalho de extrema paciência (a resina demora semanas, ou até meses, para endurecer), ela pode novamente ser empregada, está consertada.
É a mesma? Não. O acidente, e posterior kintsugi, refizeram seu valor. Agora ela está no compartimento mais nobre do armário das louças. Evoca a “não importância”, o não-apego, a aceitação do destino e suas mudanças. Simboliza a fluidez de tudo e da própria vida humana.
Assim, como uma xícara emendada à ouro, tenho minhas esperanças que consertaremos os cacos espalhados pela pandemia. As arestas indicarão o desgaste que o tempo provoca. As falhas (são muitas peças para colar!) vão transformar muitas coisas que eram comuns em coisas únicas, insubstituíveis. Curadas as feridas, teremos orgulho das cicatrizes: serão kintsugi.