Além das camisas
Passeio pelas ruas e constato, sem sombra de dúvida: muita abundância ao redor, também carência, na verdade há desequilíbrio.
Coisas por todos os lados e cantos. Coisas, coisas, coisas e mais coisas. Repito tanto para soterrar mesmo o querido leitor; soterrar como elas, coisas, nos soterram. Que pena as pessoas gastarem tanto esforço para acumularem coisas.
Quanto objeto, mercadoria, artefato, produto, tudo virando quinquilharia, tralha, ocupando espaço, atravancando a vida. Não seria mais lúcido investir pesado em viver bons momentos? Plenos de conteúdo espiritual? Tesouro indelével na memória, companhia para os dias pela frente, sejam mais ou menos difíceis?
No Livro dos Mortos do Antigo Egito, obra capital da Humanidade, aprendemos que a pergunta apresentada à Alma que se candidata entrar na eternidade é: “Você foi feliz?” Anubis, o deus-chacal que preside o julgamento final, não questiona outras informações, não está preocupado com carros, celulares, roupas, apetrechos de menos importância quando encaramos frontalmente o nervo da questão.
A lição é clara: valorizar a experiência, manter as mãos úmidas pelas águas fluentes, o ouvido atento ao vivo zumbido do vento que passa, dos pássaros que cantam, os olhos imantados pelo desfile das nuvens. Armazenar tesouros vividos, riquezas eternas. Possuir (ou querer possuir) é carregar um peso que, cedo ou tarde, se revela. A escolha é clara: voar leve ou arrastar o passo, lento grande animal esfalfado?
Coloco no papel tais reflexões, sob impacto de uma história que me relatou um senhor elegante e distinto, encantador e perfumado. Roubaram no vestiário do clube, enquanto estava no basquete semanal, uma de suas queridas camisas italianas, algodão fio 120, azul magnífico. Enfurecido voltou para casa com a camiseta suada do jogo.
Dias depois, conversando comigo, ele ainda guardava no coração o peso dos 300 gramas de bom pano, alguns metros de linha de costura, uma dúzia de botões madrepérola. Surpresa fiquei ao saber que ele possuía, entre muitas, passadinha no armário, outra idêntica à camisa perdida. Na última viagem, gostando tanto, comprou dobrada as azuis, cor de preferência, idênticas. “Pode ir desfilando essa outra”, eu mandei. Ele abanou a cabeça, confirmando aceitar o conselho.
Difícil, acredito, foi lidar o comentário que emendei: “Aliás, vai deixando de ser escravo das tuas camisas. Tem coisas mais importantes no mundo e você não vai ficar aqui mais duzentos anos, tempo que calculo necessário para usar até rasgar essa montanha de camisas que você trancou no guarda-roupas!”
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