Nenhum médico é capaz de curar a cegueira da mente, diz vidente
Todo sábado nos encontramos. Ele está sempre lá, na esquina de uma das pontas da feira livre, acomodado no banquinho, encostado na parede lateral da padaria. Pequeno e magro, os óculos escuros enormes e a bengalinha ao lado impedem que ele seja chamado pelo seu nome – que é Antônio –, para todos ele é, simples e carinhosamente, o ceguinho.
Segurando uma canequinha de ágata com a mão direita, desenvolveu a habilidade de identificar, pelo puro retinir, o valor das moedas que lhe ofertam. Ele anuncia sua gratidão, detalhando os centavos: “Obrigado por esses vinte e cinco centavos”, “Obrigado por esse Real”. Depois a mão esquerda recolhe a moeda, e com o tato confere o tamanho e o acerto auditivo.
Com as notas, mais raras, o procedimento é outro. Ele percebe a entrega, pede para que o doador informe o numerário, e guarda no bolso, mantendo sempre atualizada e correta a contabilidade, somando à perfeição seu tesouro de papel e do metal que pingou na canequinha.
Há muitos anos ele está por lá. Compõe com o vendedor de pimentas, o consertador de panela de pressão, os verdureiros, os fruteiros e os pasteleiros aquela paisagem colorida característica dos mercados, soma de tipos humanos ímpares que reafirmam nossa crença e otimismo nas pessoas.
No final da jornada, ali pelas 15 horas, enquanto a feira é desmontada, o tradicional desafio da esquina tem vez. Sob supervisão de cinco ou seis dos feirantes mais antigos da rua, ele esvazia os bolsos e anuncia a totalidade dos proventos levantados. Se acerta a soma do dinheiro em papel, cada um dos feirantes lhe bonifica com R$ 5. Quando o acerto inclui as moedas, bem mais complicado, a coisa dobra e ele leva dez. Raramente não ganha nada, sendo presenteado apenas com dois ou três copos de cerveja que todos compartilham para fechar mais uma empreitada de muito trabalho, esforço e comércio.
Semana passada, antes de cantar no ouvido dele o número impresso na nota que, larguei dobradinha na canequinha, acompanhei uma cena interessante, daquelas fortemente metafóricas, cheias de significado simbólico. Frio no ar, Antônio mais encolhido do que de hábito, quase desaparecendo dentro do capote, embaixo do gorro e do abraço do cachecol. No colo, como de costume, o radinho de pilha, chiando fraquinho no AM, leal companhia de tantos anos de escuridão, mas não de silêncio.
Surge um grupo de seis adolescentes, rapazes e moças. Sobem a rua e se instalam ao lado do banquinho. Agitadíssimos, fazendo um escarcéu enorme, barulho de trovejada. Por bastante tempo, mais de meia hora, ficam ali entre pulos, gritos e risos. Antônio, mesmo rodeado por essa balbúrdia, completamente tranquilo, aprumado, atento; com a cabeça lúcida, esclarecida.
Depois soube, perguntando para os taxistas, que naquela tarde não teve para ninguém, ele acertou o desafio na mosca, centavinho por centavinho. Tem razão quem diz que nenhum médico é capaz de curar a cegueira da mente, ou, como sempre inteligente ensina Clarice Lispector: “A pior cegueira é a dos que não sabem que estão cegos”.
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