Iran Giusti fala sobre a Casa 1 e desafios de manter espaço
A Casa funciona como um ponto de cultura e acolhimento à população LGBT+ em situação de vulnerabilidade no centro de São Paulo
Mais de 5 anos já se passaram desde que o jornalista Iran Giusti abriu as portas da sua casa para acolher pessoas LGBT+ que foram expulsas de casa por conta da orientação sexual ou identidade de gênero. A iniciativa, que começou através do aluguel do seu sofá no Airbnb em 2015, foi o pontapé para que ele resolvesse abrir a Casa 1 – espaço de cultura e acolhimento à população LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade social.
Durante o período de um ano, Giusti acolheu pessoas de realidades, orientações e identidades diferentes, enquanto planejava uma campanha de financiamento coletivo para tirar o projeto do papel. Em janeiro de 2017, depois de arrecadar um total de 88 mil reais, o jornalista paulista finalmente inaugurou a casa que viria a se tornar a principal referência cultural e social para a população LGBT+ na cidade.
Assim, o que começou como um centro de acolhida tímido e inocente, como ele mesmo diz, já abrigou cerca de 380 jovens que recebem moradia, alimentação, transporte e assistência social – suporte que ajuda essas pessoas a terem autonomia para retomarem suas vidas. E, em quatro anos, o serviço de assistência da Casa 1 já realizou mais de 40 mil atendimentos.
Hoje, além do abrigo temporário, a Casa 1 também conta com um trabalho multidisciplinar através da Clínica Social, que foi inaugurada em 2019 e conta com 10 salas de atendimento individual, onde atendem cerca de 120 pacientes por mês e sediam 40 plantões de escuta. Com cerca de 60 profissionais, a clínica oferece atendimento psicoterápico continuado, atendimento psiquiátrico, nutricionista e terapias complementares, tudo isso de forma gratuita ou com um valor social.
E não para por aí! A Casa 1 também é um espaço cultural que recebe eventos, cursos e oficinas, além da Biblioteca Comunitária Caio Fernando Abreu, cujo acervo conta com mais de 3.879 títulos que abordam desde literatura LGBTQIA+ até feminista, negra e indígena.
Mas, manter um espaço tão importante para a população vulnerável e tão representativa como a Casa 1 não é fácil. Em 2019, a Casa quase foi fechada por dificuldades financeiras. E Giusti afirma: "é um processo muito complexo [manter a Casa 1], porque ter um projeto no país é uma coisa muito complicada, ter um projeto social é mais complicado e ter um projeto social que tem uma perspectiva de trabalhar e movimentar as estruturas, é muito mais difícil".
Em entrevista exclusiva ao Alto Astral, o fundador da Casa 1 fala sobre o espaço, as dificuldades e desafios para mantê-lo funcionando, as adaptações exigidas pela pandemia de covid-19, além da importância de debatermos as realidades enfrentadas pela população LGBT+. Confira:
AA: A Casa 1 funciona como uma casa de acolhimento para pessoas LGBT em situação de vulnerabilidade, além de contar com uma clínica social e um centro cultural. Como surgiu a ideia de criar esse espaço multidisciplinar?
IG: Eu sou jornalista e já trabalhava com diversidade, e sempre articulei com uma série de outros projetos nessa pauta. Mas eu sentia uma necessidade também de trabalhar num campo individual, eu Iran, pessoa física. Na época, eu morava em um quarto e sala, aqui na região central de São Paulo, e anunciei o meu sofá no Airbnb. Acabei recebendo muitas pessoas LGBTs na minha casa - talvez pelo local da cidade e também pelo fato do anúncio ter dito que eu morava com o meu então namorado. Foi uma coisa bem bacana que rolou e eu percebi que gostava de receber pessoas na minha casa e, principalmente, pessoas LGBTs com realidades distintas. E aí veio a ideia de abrir esse espaço para pessoas LGBTs que tinham sido expulsas de casa.
Eu fiz uma postagem no Facebook, a ideia era conversar com as pessoas da minha rede, só que acabou viralizando e eu recebi mais de 50 pedidos em dois dias, uma coisa bem assustadora. Depois que eu recebi as pessoas na minha casa eu notei que tinha que ser uma coisa maior... E aí veio a ideia do financiamento coletivo. Eu comecei a receber as pessoas em 2015. Em 2016, a gente conseguiu arrecadar os 88 mil reais necessários para alugar a casa durante doze meses. E, assim, surgiu a Casa 1, de um jeito muito inocente, meio mal engendrado que, no final, foi e é uma coisa muito maior, que a gente foi descobrindo na raça.
AA: Qual a importância de ter um espaço como a Casa 1 em São Paulo? Pensando na ausência de espaços destinados à população LGBT+, tanto espaços de acolhimento como espaços culturais que valorizem os saberes, as produções, as discussões do movimento.
IG: São Paulo é um dos poucos estados que têm um serviço de assistência social efetivo mesmo, a gente tem centros de acolhida públicos. Mas, a gente tem 9998 vagas para acolhida pública e quase 45 mil pessoas em situação de rua. Isso em um censo que foi feito pela Secretaria de Direitos Humanos e Assistência Social pré-pandemia. Hoje, deve estar uma coisa (sic.) muito maior de população de rua. Então, mesmo que funcione, ainda é ineficaz.
E a mesma coisa quando falamos de aparelhos culturais. O último levantamento da Rede Nossa São Paulo apontou que temos uma concentração grande de pontos de cultura na região central da cidade. E a gente foi entendendo, ao longo desses 4 anos de Casa 1, que mesmo esses espaços existindo, eles não são espaços de acesso para a população. Há catracas, há bilheteria, há porta de vidro, tem segurança rondando, tudo isso são ferramentas e dispositivos para afastar essas pessoas desses espaços. Então a Casa 1 tem uma política de porta aberta, agora, com a pandemia, obviamente não. Mas a gente tem uma prática de porta aberta e atendimento universal.
A mesma coisa com os serviços de assistência social, temos uma rede bastante significativa e relativamente qualificada, mas que ainda está caminhando. E, assim como o SUS, essa rede vem sendo desmembrada e destruída pelo poder público ao longo dos últimos anos. Então quando a gente pensa nesses espaços destinados ao atendimento LGBT, temos poucos serviços que atendem essa população. E arrisco dizer ainda que os serviços que atendem a população LGBT vêm da iniciativa dos próprios funcionários e funcionárias desses serviços. Por exemplo, a gente deu muita formação para equipe de serviço público, que é uma busca deles. Não é um posicionamento institucional, não é uma política institucional, pública. E isso é um problema.
E isso também tem a ver com a própria movimentação do movimento civil, do movimento LGBT organizado. Não estou dizendo que a culpa é nossa, mas temos uma questão que a gente celebra muitos direitos que não foram totalmente conquistados. O Brasil, por exemplo, não tem nenhuma lei federal em relação à comunidade LGBT. Todas as nossas grandes medidas, como doação de sangue e atendimento igualitário, são medidas do judiciário e não do legislativo. A gente nunca legislou sobre a pauta LGBT, a gente nunca produziu dados na esfera federal sobre a população LGBT para entender quais são as demandas e como saná-las. Então, quando esses direitos são conquistados pelo judiciário e não pelo legislativo, acaba se tornando uma medida impositiva sem um debate público, sem uma conscientização coletiva, sem um processo de entendimento como uma boa prática para a nação. Acaba sendo uma medida imposta, que precisa ser imposta, mas que dificulta muito mais a aplicação. Nós temos aí, por exemplo, dois anos da criminalização da LGBTfobia sem efetivamente nenhum processo de LGBTfobia.
AA: No âmbito político, nós estamos enfrentando, nos últimos anos, um governo contrário à pauta LGBT e aos direitos da população. Como você vê esse momento?
IG: A Casa 1 abriu junto com a eleição do João Dória na prefeitura da cidade de São Paulo, e daí foi ladeira abaixo. A gente teve Bruno Covas na prefeitura depois, Dória no governo do Estado e Bolsonaro na presidência. Obviamente, a esfera federal é muito desastrosa e Bolsonaro é uma figura muito danosa para a sociedade, e não só para o movimento LGBT. Mas, em termos de articulação de projetos, a esfera municipal e estadual auxiliam pouco. Inclusive, agora nós temos o Ricardo Nunes na prefeitura, um fundamentalista religioso da igreja católica na gestão da cidade. Então, quando a gente pensa em esfera federal, também não teve uma movimentação política ativa nos governos anteriores. Os governos Dilma e Lula também pouco fizeram pelas pautas identitárias. Obviamente, a gente não pode fazer um grau de comparação, Bolsonaro é infinitamente pior. Mas, quando falamos "a gente diminuiu os avanços? começamos a ter retrocessos?"... Olha, não teve isso de retroceder porque no âmbito federal a gente tinha pouco avanço já. Claro, algumas áreas viraram um terreno de luta e disputa, em especial a educação e os direitos humanos. A Damares estabelece políticas extremamente complicadas e danosas para a comunidade LGBT, assim como o Weintraub no campo da educação. É muito complexo. Mas, podemos falar "a gente tinha algo muito bom e que ficou ruim com esse governo"? Não, a gente tinha algo ruim que ficou péssimo.
AA: Ao longo desses anos de existência, a Casa 1 já passou por maus bocados, inclusive correu o risco de fechar em 2019 por questões financeiras. Quais são os desafios de manter esse espaço?
IG: O terceiro setor e as ONGs no Brasil são vistos muito como uma ferramenta para lavar dinheiro, desvio de verba pública. E com isso foram criadas muitas tentativas e ferramentas de burocratização dos processos para tentar resguardar essa prática. O problema é isso, quem quer roubar e lavar dinheiro vai fazer toda essa parte burocrática com muita facilidade para poder ter esse fim. A gente, que está trabalhando realmente, fazendo um trabalho de base, de ponta, acaba ficando soterrado com essas burocracias. Então é muito complexo, essa situação de você cuidar da saúde financeira, saúde jurídica, de opinião pública, todos esses processos são muito complexos.
Ao mesmo tempo, nós temos uma equipe de profissionais extremamente qualificados, a gente tem um processo de transparência gigantesco. E que eu não consigo remunerar. Porque, de novo, no país não existe uma cultura de terceiro setor. Então, hoje, nós temos um quadro de funcionários que, eu estimo, 70% ganha metade ou um terço do que ganhava no mercado de trabalho fora daqui, foram pessoas que fizeram uma escolha e optaram por fazer algo que acreditam.
Só que tinha que ser as duas coisas. A gente tinha que fazer o que acredita e permitir que essas pessoas recebam adequadamente, ainda mais quando a gente pensa em um projeto sobre diversidade onde a gente quer que as pessoas LGBTs, negras, tenham oportunidades. E a gente quer ser um espaço com uma equipe diversa, mas a gente acaba esbarrando nessa questão. Como é que eu vou ter pessoas qualificadas fazendo o trabalho e que estão precisando ali pagar as contas? Então acabamos encontrando alguns desafios.
A parte boa é que a gente tem um apoio da sociedade civil muito grande. Hoje, 70% da Casa é financiada por doação de pessoa física, as marcas e empresas são coisa de 30% da nossa arrecadação anual. Então são as pessoas que mantêm a Casa 1. E isso é muito bonito.
AA: A pandemia de Covid-19 evidenciou ainda mais as desigualdades sociais tendo impacto direto no aumento da pobreza, da fome, da população de rua, etc. Isso se refletiu na Casa 1, houve um aumento de demanda do centro de acolhida?
IG: Com toda certeza. Na verdade, a gente sempre atendeu a população vulnerável. Mas o que aumentou foi a população de risco, que é um grau mais vulnerável. Passado o auxílio emergencial, a gente teve um aumento expressivo de busca por acolhida de pessoas nessa situação. Porque o auxílio emergencial foi um fator muito determinante para essa população.
E aí a gente tem uma série de pesquisas, como a do VOTELGBT, que sai agora no dia 28, que tem alguns dados bastante alarmantes. A busca por serviços de saúde mental aumentou, a alimentação básica também teve um aumento muito grande. Hoje a gente está distribuindo de 500 a 600 cestas mensalmente, sendo que dessas cerca de 200 são pessoas LGBTs, então aumentou bastante.
AA: Em relação às atividades culturais e à Clínica Social, como vocês se adaptaram?
IG: A Clínica Social, imediatamente na semana seguinte ao decreto do distanciamento social, passou a ser online. A gente inclusive teve uma ampliação dos atendimentos. Nós temos um plantão de escuta, quando ele era presencial, atendia cerca de 3,4 pessoas por semana. No online, chegou a atender 10 durante a pandemia, porque ampliou e começamos a atender o Brasil inteiro.
O Centro Cultural teve suas atividades suspensas durante 4 meses, porque ficamos bastante focados no serviço de assistência social, como entrega de cestas básicas, produtos de higiene e máscaras. A partir do quarto mês começamos a ter programação online.
Já a casa de acolhida foi realmente mais complexa. Os moradores que já estavam antes da pandemia acabaram ficando por mais tempo, a gente é uma casa de passagem que tem 4 meses de duração, aproximadamente. E esses moradores ficaram quase até o final do ano. Agora em junho estamos ampliando as vagas, que antes eram 5, para 6 acolhidos. Mas é isso, precisa de um espaçamento muito grande entre as camas, nos espaços. Acordos muito bem feitos com quem mora, por mais que tenha um processo de autonomia de sair para buscar trabalho, tem um acordo de o máximo de preservação de saúde, levando em conta que o que cada um faz afeta diretamente os outros moradores que estão ali.
AA: E como é que você se sente olhando para essa trajetória da Casa 1, vendo como começou lá no início e agora que ela está super estruturada e resistindo?
IG: Desde a primeira semana eu penso em desistir e ainda penso em desistir todos os dias. Claro, eu tenho uma satisfação e um orgulho, a Casa 1 hoje está em uma outra estrutura. São 3 espaços, com equipe de 27 pessoas contratadas e uma centena de voluntários e voluntárias. É um processo que é muito gratificante e muito potente. Hoje em dia eu ainda consigo visualizar, 4 anos depois, a potência desse projeto. A forma como ele se desdobrou também, muitas casas abriram pelo Brasil, o abrigamento virou uma pauta da comunidade LGBT e isso surge muito da luta.
E aí quando eu vejo isso, eu sinto muito orgulho. Mas, por outro lado, é um exercício de vida mesmo. É um processo muito complexo porque ter um projeto no país é uma coisa muito complicada, ter um projeto social é mais complicado, e ter um projeto social que tem uma perspectiva de trabalhar e movimentar as estruturas é muito mais difícil.
AA: Quais são os planos da Casa 1 para o futuro?
IG: O plano 1 é sobreviver. Para pensarmos em qualquer coisa, nós precisamos existir. Eu preciso pagar a equipe, as contas, o aluguel, preciso comprar comida para os moradores. Então o nosso principal ponto é continuar existindo.
O segundo ponto é a gente conseguir retomar o que tínhamos conseguido antes da pandemia, que é fazer um bom fluxo de caixa. A gente conseguiu resistir à pandemia porque tínhamos essa grana, a gente não precisou demitir ninguém, nem entregar o imóvel. Mas, depois de quase 2 anos de pandemia, esse fundo se foi. Ele foi usado para o que precisava, mas a gente precisa reconstituir esse fundo.
E aí tem as ampliações, nós queremos atender mais gente, atender mais efetivamente as pessoas, queremos cada vez mais profissionais qualificados para poder fazer o atendimento dessa população. A gente brinca que é um grande Banco Imobiliário, a nossa ideia é conquistar mais territórios. O nosso objetivo a longo prazo é fazer com que esses serviços sejam possíveis em outros espaços da cidade. A gente quer que a Casa esteja em todos os espaços, que ela amplie sua atuação para que as pessoas conheçam para poder promover mudanças.
Crime no Recife alerta para a necessidade de acolhimento e conscientização
A Casa 1 muda a vida de diversos jovens em situação de vulnerabilidade na cidade de São Paulo. No entanto, nem todos têm a mesma oportunidade de serem acolhidos nos locais onde vivem. Na última quinta-feira (24), uma mulher transsexual, de 40 anos, em situação de rua foi queimada viva em Recife, Pernambuco.
O crime de extrema violência aconteceu após a meia noite, de quarta para quinta-feira, no Cais de Santa Rita, centro da capital do estado, e foi motivado por transfobia. A vítima, uma mulher negra e trans, identificada como Roberta, teve 40% de seu corpo queimado após um adolescente atingi-la com uma substância inflamável e, na sequência, atear fogo contra ela.
A Polícia Militar já apreendeu o suspeito do crime e o encaminhou à Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente (GPCA).
Segundo informações do jornal Brasil de Fato, Roberta sofreu outras violências no hospital onde recebeu atendimento médico. De acordo com o relato da co-deputada estadual Robeyoncé Lima, primeira advogada travesti, negra e nordestina a conseguir o nome social na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e responsável por acompanhar o caso, a vítima foi encaminhada para a ala masculina e seu nome social não foi respeitado.
No Brasil, a cada 20 horas, uma pessoa da comunidade LGBT+ morre simplesmente por ser LGBT+, conforme dados do relatório de 2018 do Grupo Gay da Bahia, instituição que dedicada a levantar dados sobre a população LGBTQIA+ no país. Após a vilência sofrida por Roberta, diversas personalidades e organizações em prol da comunidade LGBT+ têm se manifestado chamando atenção para o caso e para a importância da discussão de pautas que abordem a diversidade.
"Transfobia e homofobia é crime! Semana passada, uma mulher trans foi queimada viva em Recife, e a gente não pode deixar que isso vire corriqueiro, que isso se naturalize", afirmou Pabllo Vittar durante o programa Encontro com Fátima Bernardes.