Envelhecer não é uma derrota: a história de Martha Oliveira
Ela não temeu deixar um cargo público federal para por em prática aquilo que ela acreditava
Perfilar alguém é, para mim, uma das modalidades mais difíceis da escrita. Primeiro, porque tenho que acolher minha incapacidade de ler aquele indivíduo em sua totalidade e, reconhecendo essa verdade, preciso me contentar com o recorte que vou apresentar e me abrir para injustiças que, invariavelmente, vou cometer. O perfil expõe o personagem, mas desvela, em grande medida, quem o escreve. E estou conformada que ao narrar a história da Martha Oliveira, fundadora da Laços Saúde, vou atestar minha incapacidade de transmitir a você a energia que pulsa nessa mulher.
A Martha é inquieta ― e logo você terá elementos para concordar comigo. Mas esse traço não é manifestado em forma de ansiedade, como pode acontecer. Sua fala, cantada num sotaque carioca, vem em um ritmo onde cada palavra sai com clareza e as frases se formam com propriedade, sem pressa ou afobação.
Ela fala, hoje empreendedora, do mesmo jeito que falava quando era diretora na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e, tendo 30 e poucos anos, lidava com um universo majoritariamente masculino e de meia-idade. E do mesmo jeito que, quando diretora da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), entrava na sala de reunião do conselho com seus vestidos estampados e sentava na cabeceira para discutir com homens engravatados. Seu espaço é conquistado de forma natural, sem que ela aparente se importar com isso. Afinal, há muito trabalho a ser feito.
Com vocês, o trabalho a ser feito
A carreira de Martha na Saúde começou com o curso de medicina e a residência em pediatria. Mas a clínica tomou pouco espaço em sua trajetória e logo ela se tornou, como diz seu filho, "médica de papel".
"Fui fazer residência em saúde coletiva, que tem uma abordagem multidisciplinar", contou Martha para mim e para a Silvia Paladino em entrevista ao Vale do Suplício (**), podcast sobre bastidores do empreendedorismo.
Amigos e família não entenderam a decisão ― e essa seria a primeira de tantas outras vezes que isso aconteceria. "Eles falaram: 'pronto. desistiu da medicina'", conta. "Essa coisa de estudar populações já era algo meu. Porque se eu ajudar de um em um, não vou ter perna para tudo o que eu acredito e tudo o que eu quero." Um concurso público para trabalhar na Agência Nacional de Saúde Suplementar veio logo na sequência. Em menos de um ano foi convidada a se mudar para Brasília para ser assessora parlamentar e chefe de gabinete. Ela chorava, achando que não daria conta. Hoje, com um sorriso largo, agradece o desafio.
"Tive a oportunidade de me expor a situações que me fizeram crescer muito, conhecer um outro mundo, conhecer as coisas de outra forma."
O sistema de saúde suplementar brasileiro é extremamente regulado e, entra ano, sai ano, o número de beneficiários gira em torno de 50 milhões de pessoas. Agoniada, como mesmo se descreve, Martha não esperava fazer nada menos do que uma revolução quando assumiu como diretora.
"As políticas públicas dependem de coisas que, às vezes, estão muito fora do seu alcance. Quando sentei na cadeira de diretora, falei 'opa, agora vai!' Quando eu saí, vi que fiz 40% das coisas que queria ter feito. E ralei muito para conseguir esses 40%. Tem muitas coisas ali envolvidas. Não é no seu tempo. É no tempo que dá para ser. No tempo de todo um contexto nacional".
E com a visão global que adquiriu à frente do órgão público, identificou gargalos que sequer conhecia. "Tem um mundo de oportunidades lá e a gente fica remando aqui, paradinho. Não. Eu quero um barco a motor."
E aos 40 anos pediu demissão do cargo que ocupava como servidora pública federal. Adivinha a opinião da família?
Da Anahp para a Laços Saúde
O barco de Martha aportou por quatro anos na Anahp, associação de hospitais privados de maior prestígio do Brasil, antes de seguir rumo ao empreendedorismo. A ideia era ancorar, assim que os ventos estivessem favoráveis, em um destino específico.
"Quando estava na ANS, ao mesmo tempo em que tentava organizar o setor para que ele fosse melhor, via espaços gigantes que não eram atendidos. E um deles era o do envelhecimento." Muito estudo de referências internacionais e um doutorado em envelhecimento populacional formaram as bases do que hoje é a Laços Saúde, criada em 2020, depois de um novo (inexplicável para alguns) pedido de demissão.
Era hora de começar do zero, cutucando com vara curta um leão que todos gostariam de deixar adormecido. "Nós trouxemos o método holandês Burtzog para o Brasil. É um método muito diferente de acompanhamento e cuidado ao idoso, que vem para gerar autonomia e reduzir os custos. Ele se baseia em acompanhamento, coordenação do cuidado, assistência e visitas domiciliares - tudo com ajuda da tecnologia", conta. A proposta é dissociar envelhecimento de doença, crença hoje instaurada principalmente nas sociedades ocidentais.
"Hoje, vemos o envelhecimento como derrota. O envelhecimento é uma conquista. A gente conquistou envelhecer, a gente conquistou ganhar expectativa de vida. Precisamos entender que é um caminho natural, e pensar em como envelhecer da melhor forma possível", diz Martha Oliveira.
A desconfortável discussão sobre o envelhecimento invariavelmente puxa outras desconfortáveis discussões sobre finitude, conduta médica, políticas públicas e cultura social e familiar. Mas Martha não teme incomodar. "A terminalidade é um assunto que vem à tona e precisa vir à tona. A coisa da boa morte, cuidado paliativo de fim de vida… estamos totalmente despreparados para isso. Um idoso de 97 anos que infarta, ele precisa ser intubado? Qual a vontade dele?". Com a medicina formando médicos que bradam "no meu plantão ninguém morre", a vida é esticada sem que haja maturidade para a aceitação do fim. "A gente morria antes de doença aguda, diarreia, parto. Era outra história. Aí tudo bem gritar 'no meu plantão ninguém morre'. Mas a história agora é outra".
Essa outra história é a irrefreável CONQUISTA (em letras garrafais, para mostrar que aprendi) do envelhecimento populacional. Até 2050, o mundo terá dois bilhões de idosos. Faça as contas: daqui a 27 anos, quantos anos você terá? Na conversa com a Martha, a Sil nos lembrou que essa população idosa do futuro, da qual tanto falamos descompromissadamente, somos nós (caso você, claro, tenha ao menos 35 anos). E aí? Que tipo de saúde, sociedade e fim de vida queremos construir para nossa velhice? "Envelhecimento traz esses temas. Querendo ou não, a gente precisa discutir", alerta Martha, como se falássemos sobre a programação do fim de semana.
(*) Adriele Marchesini é jornalista especializada em TI, negócios e Saúde com quase 20 anos de experiência. Depois de passar por redações de veículos como Estadão, Infomoney, ITWeb e CRN Brasil, cofundou as agências essense e Lightkeeper, as quais já ajudaram mais de 80 empresas na construção de conteúdo narrativo multiplataforma para negócios. É coâncora do podcast Vale do Suplício.
(**) Criado pelas jornalistas Adriele Marchesini e Silvia Noara Paladino, o podcast Vale do Suplício nasceu como uma contracultura aos empreendedores de palco - os típicos CEOs de MEI, escritores de textões no LinkedIn - para contar a história de empreendedores que falam pouco, mas fazem muito. Ouça no Spotify.