No meio da brincadeira havia uma tela
Não serei hipócrita a ponto de dizer que minhas filhas quase nunca brincam com dispositivos móveis e muito menos negarei o alívio que senti quando soube que o nosso iPad, comprado em outras vidas (há alguns anos, mas a gente sabe que a contagem tecnológica do tempo é bem diferente), voltou a pegar a rede da nossa casa. Sim, porque soube do ressuscitamento do aparelho quando estava pronta para dar aquela corridinha no domingo e nada melhor pra aliviar a culpa de uma mulher do que ver o marido distraído com uma programação televisiva e as filhas felizes na telinha.
Foi mais um final de semana num dilema entre o que devo, o que quero, o que é certo e o que é real.
A verdade é que Elisa e Manu AINDA (tem gente que se espanta) amam brincar de boneca, especialmente quando podem ensinar as técnicas maternais aos seus fãs imaginários do canal "Gêmeas Gênias" que criaram de mentirinha no YouTube.
Elas trocam as fraldas de seus bebês, preparam o leite, dão mamadeira, penteiam os cabelos e explicam tim tim por tim para o celular devidamente apoiado no espelho da penteadeira ou para o IPAD na mesa de estudos. Claro, no final tem sempre aquele simpático pedido de like.;)
Depois de achar que o mundo tá perdido, que não se fazem mais crianças como antigamente, de que eu sou a mãe mais preguiçosa do universo porque deixo e não interfiro sugerindo jogos de tabuleiro, me transporto imediatamente para a minha infância quando eu dava aulas para uma turma de alunos invisíveis na escada do edifício Fenix, lá em Santa Tereza.
Peraí, o mundo mudou, a infância se transformou e será que minhas meninas não estão desenvolvendo habilidades parecidas com as minhas só que de um jeito diferente?
Ao invés de olharem para o infinito dão aquela espiadinha na tela? Acho que é até mais complexo, não? Elas estão sendo criativas, treinando a coordenação motora, aprendendo a dividir (tem de revezar o aparelho de vez em quando), ampliando o seu vocabulário, criando narrativas…
Só que ao invés de olharem para uma escada e imaginarem alunos, estão dando aquela espiadinha na câmera do celular.
E ainda depois de gravar videos, editam o material, criam vinhetas (ai que amorrrr) fazem locuções (que nem a mãe) e, de quebra, aprendem uma lição super valiosa para a geração nativa digital: o conceito de privacidade.
Será que a brincadeira só tem graça se a gente posta? Quem vai ver a nossa intimidade? Precisa mesmo dividir este momento com quem a gente nem conhece?
Tudo é uma questão de equilíbrio, de ponto de vista e de uma certa abertura da gente…
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