Ele quis trabalhar até na lua de mel, mas depois largou tudo e foi ensinar felicidade no emprego
Henrique Bueno deixou carreira jurídica e virou especialista em psicologia positiva e felicidade corporativa; segundo o profissional, benefícios como academia e escritórios instagramáveis são importantes, mas não resolvem problema
Há mais de 10 anos, Henrique Bueno, 46, decidiu deixar para trás uma carreira jurídica bem-sucedida em busca de mais propósito. Na época em que fez a transição de carreira, atuava como consultor jurídico da Ambev e era reconhecido pelo trabalho que executava. Mas alguns sinais de alerta começaram a aparecer. Um deles surgiu em sua lua de mel: enquanto a esposa ia ao banheiro, ele aproveitava para ligar o computador e trabalhar.
Embora fosse reconhecido no emprego, não estava mais feliz. "Por dentro, sentia um baita vazio. E, além do vazio, muito estresse e uma conexão absoluta com o trabalho", relembra. Foi então que, por acaso, descobriu a psicologia positiva, e essa descoberta mudou tudo.
Bueno mergulhou nos estudos e decidiu levar o conceito de felicidade para dentro das empresas, em um período em que o assunto ainda enfrentava resistência no mundo corporativo.
Com o tempo, a pauta ganhou força, assim como seu currículo. Hoje, ele é mestre em Psicologia Positiva pela University of East London (UEL), no Reino Unido, especialista em felicidade e felicidade corporativa, e professor do mestrado em Estudos da Felicidade na Centenary University (EUA).
Para quem ainda vê o tema com desconfiança, o especialista faz questão de explicar: felicidade não é um lugar mágico. No trabalho, a transformação precisa começar pelas lideranças, que devem cuidar do próprio bem-estar. Ele também alerta que benefícios como gympass e escritórios "instagramáveis" são importantes, mas não resolvem o problema.
Confira trechos da entrevista:
Como foi a decisão de largar a carreira jurídica para ensinar felicidade corporativa nas empresas?
Foi um processo em duas etapas. A primeira foi decidir que não estava no lugar certo.
Basicamente, passei 10 anos no mundo corporativo e tive uma carreira bem-sucedida. Trabalhava na Ambev, era gerente corporativo do jurídico no Brasil e no Mercosul. Tinha a sensação de que todo mundo achava que eu devia estar ótimo.
Era uma boa carreira, um bom salário, tinha casado com a Manu, que é a mulher da minha vida, e morava perto do trabalho em São Paulo, faz toda a diferença. Parecia que a vida estava resolvida, com a projeção de continuar crescendo na carreira.
Vivi um momento muito complexo nesse sentido, e me fazia uma pergunta: "Não era aqui que eu tinha que chegar para ser feliz? O que está acontecendo que não estou feliz como acho que deveria estar?"
E aí tomei a decisão de sair. Confesso que foi até impulsiva demais. Não foi uma decisão planejada, não tracei uma carreira na sequência. Eu saí porque aquilo não servia mais. Eu estava com 35 anos e pensava: "E agora, o que eu faço?"
Tive que me agarrar a alguns penduricalhos. Recebi uma proposta para trabalhar em outro lugar, ganhando mais e fui. Não deu certo. Depois, fui convidado para ser sócio de um escritório de advocacia. Deu certo, mas também não era para mim. Enquanto sócio do escritório, um dos fundadores estava muito envolvido com estudos ligados ao coaching e à psicologia positiva e me apresentou essa ideia.
Achava que era uma nova ciência com cara de autoajuda. Mas, como estava em transição e achei o assunto interessante, decidi estudar. No Brasil, era algo muito incipiente em 2012, 2013.
Quando comecei a estudar, percebi: "opa, aqui é o meu lugar." Saí do escritório e fiquei full time nessa nova área. Fui fazer uma formação nos Estados Unidos. E, ao longo da formação, me apaixonei pelo conteúdo, mas principalmente pelas mudanças que a prática trouxe para a minha vida.
Fiz mestrado em Londres na University of East London (UEL), sou professor de mestrado em estudos da felicidade na Centenary University (EUA) e não pretendo parar.
Qual foi a maior descoberta durante esse processo de transição de carreira?
A principal descoberta que levei para a vida é que a gente se torna bom naquilo que pratica. Quando deixei o mundo corporativo, passei por uma fase muito longa em que ficou claro que sentia abstinência. Estava acostumado a estar ocupado o tempo inteiro, a ser cobrado o tempo inteiro e a me sentir ansioso.
De repente, deixei esse mundo. Inclusive, saí de São Paulo e fui morar em um sítio no litoral do Paraná, no meio do mato. Percebi que, em um dia bom, estava me sentindo péssimo. Por não estar ocupado, por não estar sendo demandado, por não ter o status que achava que deveria ter. Tive uma crise de identidade, porque tinha me acostumado a correr, a fazer tudo, a estar sempre em ação.
Isso me trouxe uma percepção muito clara de que o caminho que a maioria de nós escolhe para viver a vida é baseado em um manual pronto: preciso crescer, ganhar bem, chegar lá…
A gente corre, fica muito bom nisso, cresce, aprende um novo idioma, é promovido, mas, no final das contas, chega um ponto em que a gente sente um certo vazio. Sente que a vida está passando e a gente não está vivendo. Aprendi isso de uma forma muito forte logo no começo da transição.
Quando mergulhei na psicologia positiva ficou muito claro que saber e não fazer dá no mesmo que não saber. O que muda são as práticas.
Comecei com pequenas práticas, supersimples. Isso até dificulta falar da psicologia positiva, parece autoajuda. Porque felicidade não se trata de chegar a um lugar mágico. Trata-se de viver os altos e baixos da vida e perceber que você tem ação. Você não precisa ficar apenas reagindo a tudo.
Quais foram essas práticas?
Vou contar uma rápida história. Fiz a minha primeira formação, lá nos Estados Unidos, numa instituição fundada pelo professor Tal Ben-Shahar (especialista em felicidade e liderança). Fiz as imersões com ele. Eu estava em um limbo da carreira, pensando: "o que vou fazer da minha vida?"
Durante a formação nos EUA, lembro de ele me falar:
"Rick, quero te propor uma prática da psicologia positiva que é a da gratidão. Todo dia, antes de dormir ou de manhã, em um momento ritualístico durante 30 dias, pare para refletir sobre três coisas que deram certo no seu dia, pelas quais você é grato. Não adianta só pensar e colocar no caderno. Você precisa reviver essa experiência. Pensa nas suas últimas 24 horas: você está lembrando de um abraço que seu filho te deu? Fecha os olhos, sente o abracinho dele, sente o cheiro dele, reviva a experiência. Gratidão, como conceito, é só uma palavra bonita. Gratidão, como experiência, é transformadora."
Na primeira semana fazendo, foi horroroso. Na segunda, continuava esquisito.
Na terceira, aconteceu um fato simples. Estava dirigindo na estrada que pego do meu sítio para o trabalho, em Curitiba. Por alguma razão, olhei para a direita e vi um ipê amarelo. Sempre esteve lá. Mas resolvi olhar para a esquerda e vi a maior região contínua de Mata Atlântica do Brasil, que é onde moro, coberta de amarelo. Naquele instante, veio uma voz na minha mente que disse: "Não esqueça de agradecer que o seu caminho para o trabalho é pela Serra da Graciosa."
É como se a gente passasse a vida inteira fazendo musculação só no braço esquerdo. Nossas conexões neurais que procuram o negativo são super-ativas. A conexão neural que procura as pequenas coisas positivas para a gente saborear e curtir é quase inexistente, como o braço direito com o qual nunca fizemos musculação.
Quando você começa a prática da gratidão, começa a exercitar o braço direito e traz mais equilíbrio. A vida mais feliz não é a vida em que fico fingindo que está tudo bem. Continuo vendo o negativo: o pedágio continua caro e ainda vou me atrasar para a reunião. Mas não dá mais para ver isso e não ver algo bonito que não tinha percebido antes.
Quando começou a trabalhar com psicologia positiva e felicidade corporativa?
Enquanto estudante de psicologia positiva pela primeira vez, lá em 2013 e 2014, comecei a trabalhar com treinamentos para líderes, com foco em comunicação e inteligência emocional.
Por volta de 2015, decidi que o foco seria a felicidade. Comecei a ter grandes embates. Naquela época, as pessoas ouviam esse assunto e achavam que não tinha nada a ver: "Felicidade? Aqui é lugar de trabalhar e entregar resultados."
No início, muita gente queria mudar a denominação do que eu fazia para bem-estar, mas decidi manter felicidade porque digo o seguinte: um empresário, líder ou CEO só não aceita falar de felicidade dentro da organização quando não entende o que felicidade realmente é.
Ele provavelmente vive o mito de achar que felicidade é ficar jogando pingue-pongue, estar sempre bem em um ambiente maravilhoso. Quando pensamos assim, realmente a felicidade não parece caber no trabalho.
Como podemos definir felicidade? O que é felicidade corporativa?
Felicidade é a experiência de duas coisas: emoções positivas, como prazer e sentido. Em outras palavras, uma vida mais feliz é uma vida em que existe um componente emocional: sentir-se bem, sentir alegria e contentamento.
Mas só isso não basta. É o que vemos hoje: o marketing nos leva a acreditar que felicidade tem a ver com pequenos prazeres instantâneos. Só que há um segundo componente, que é o cognitivo: como percebo a vida?
Olho para a vida e percebo que minha história tem sentido, que meu lugar hoje tem valor e que contribuo de alguma forma para o futuro que almejo. Essas duas coisas andam juntas, o que faz da felicidade algo maior do que a alegria. Alegria é uma emoção passageira que vem e vai.
A felicidade pode ser mais constante, mais estável, apesar dos altos e baixos. Posso não estar me sentindo emocionalmente bem, mas ainda assim perceber o sentido da minha vida, mesmo em uma fase difícil, como o luto.
No trabalho, é a mesma coisa, mas está muito conectado a alguns pilares principais:
- Relacionamentos: o principal fator para uma vida mais feliz, tanto no trabalho quanto fora dele. A construção de bons relacionamentos é fundamental para a felicidade.
- Percepção de sentido e contribuição: sentir que o que faço tem relevância, ser apreciado pelo que entrego, receber reconhecimento e valorização.
- Governança e autonomia: ter confiança na liderança e sentir que tenho alguma autonomia. Claro que não significa decidir tudo o tempo inteiro. Prazos e horários existem, mas sentir que tenho algum controle sobre meu trabalho.
Como a felicidade corporativa é incorporada às empresas?
De forma quantitativa e qualitativa, precisamos entender em que momento a empresa está. Como é que as coisas estão? Segundo, precisamos ouvir das pessoas o que elas acreditam que pode fazer bem para elas, em vez de focar apenas na dor e na crise.
Outra coisa muito importante é vencer a ilusão que alguns gestores têm da fórmula mágica: "Ah, vem aqui, faz um workshop de um dia e pronto, agora somos todos felizes." São projetos de mudança cultural que levam muito tempo.
É preciso ensinar o líder e o indivíduo que boa parte do que pode fazê-los mais felizes na vida e no trabalho são escolhas e práticas próprias. Eles precisam se tornar protagonistas desse processo. Quando fazem isso, começam a ser capazes de comunicar essas práticas aos outros.
A mudança ambiental é importante, mas sem uma mudança de consciência e de ações, não adianta. Não adianta fazer um workshop de felicidade e, no dia seguinte, o líder mandar uma mensagem de áudio de sete minutos para a equipe às 23h30 e, na manhã seguinte, às 7h, reclamar que ninguém respondeu na hora.
Hoje, qual é o principal desafio da felicidade corporativa nas empresas?
Depois da pandemia, esse assunto ganhou destaque. Hoje é muito difícil uma empresa desprezar totalmente o tema. É raro isso não fazer parte da agenda da organização. A maior dificuldade é que muita gente, assim como acontece com o ESG, fala sobre felicidade apenas da boca para fora, só para ficar bonito, para aparentar algo que não é.
Acima de tudo, precisa revisar a forma como usa a tecnologia. A tecnologia é maravilhosa, mas quando começa a invadir o horário do jantar, com mensagens às 22h, isso começa a gerar problemas.
Essas revisões estruturais e consistentes são fundamentais. Talvez esse seja um primeiro passo meio utópico para muitas organizações, mas é necessário falar sobre isso.
Muitas vezes, a empresa faz uma ação aqui, outra ali, e acha que está resolvido.
O segundo passo é entender o tamanho do resultado que a empresa pode alcançar se fizer um projeto consistente na área. E o terceiro passo é se preocupar com as pessoas. Claro, não estou dizendo que isso deve ser feito independentemente do lucro. Mas é preciso reconhecer a vantagem que esse cuidado traz. Quem sofre burnout volta para casa incapaz de ser um bom pai ou uma boa mãe.
Precisamos entender o impacto que projetos como esses têm na vida das empresas e das pessoas em geral. Mais do que isso, as gerações mais novas não aceitam mais trabalhar em organizações que não enxerguem essa importância. Quem não abraçar essa causa com força e intenção terá muita dificuldade para se manter no mercado e para atrair talentos.
Quais são os comportamentos que devem ser revisitados pelas lideranças?
No mundo atual, o executivo 100% do tempo ocupado. Quando foi a última vez que você, eu ou qualquer pessoa que a gente conhece parou para ouvir uma música inteira, do começo ao fim? Não enquanto estava dirigindo para algum lugar, mas só para ouvir a música mesmo. Quando foi que a gente se deu uma pausa?
O problema da liderança, por mais clichê que isso possa parecer, é que o que traz resultados para as equipes é o que o líder é, não o que ele fala.
Então, o que faz um líder que começa a engajar as pessoas para a mudança? Quando chega uma mensagem para ele às 19h30, ele não responde.
Como é que a gente começa a walk the talk (faça o que diz)? Como o líder começa a entender o benefício que isso traz para ele? Porque o líder que consegue se dar pausas, consegue respirar melhor e ter uma vida mais leve vai alcançar melhores resultados.
Quando a gente está ocupado o tempo inteiro, a gente é menos criativo, tem menos opções de ação.
Eu não conseguiria ensinar bem psicologia positiva se, para mim, fosse só teoria. Aprendi em duas pós-graduações e tenho conhecimento técnico. Mas consigo ensinar porque apliquei na minha vida. Algumas coisas deram certo, outras nem tanto, mas conheço o resultado da aplicação prática.
Eu vivo o que ensino. O líder, acima de tudo, só vai conseguir impactar a equipe dele se viver aquele conteúdo.
Não ensino a pessoa a ser feliz no trabalho. Estou ensinando a cuidar de si mesma. Ter autocompaixão, autocuidado, cuidar de todos os elementos do bem-estar que fazem parte da vida dela. Quando ela faz isso, vai se comunicar melhor com o filho, com o cônjuge, com o chefe, com os colegas e com os subordinados.
