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A doença confundida com dengue que é mais mortífera do que se imaginava

Nos últimos anos, o avanço da chikungunya nas Américas, e em particular no Brasil, tem suscitado preocupação crescente entre as autoridades sanitárias de diferentes países.

27 fev 2024 - 14h56
(atualizado às 17h30)
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Sintomas muito parecidos com a dengue dificultam diagnóstico, e número de mortes pela chikungunya já está acima da média histórica
Sintomas muito parecidos com a dengue dificultam diagnóstico, e número de mortes pela chikungunya já está acima da média histórica
Foto: Pilar Olivares/Reuters / BBC News Brasil

A epidemia de dengue em curso no Brasil tem chamado muita atenção da imprensa em geral, mas pouco tem se falado sobre a febre chikungunya, que está causando epidemias em várias regiões do país.

Nos últimos anos, o avanço da chikungunya nas Américas, e em particular no Brasil, tem suscitado preocupação crescente entre as autoridades sanitárias de diferentes países.

Os documentos oficiais da Organização Mundial de Saúde (OMS) destacam apenas as "fortes dores nas articulações, que muitas vezes são debilitantes", afirmando que "sintomas graves e mortes por chikungunya são raros e geralmente estão relacionados a outros problemas de saúde coexistentes".

No entanto, um conjunto de estudos feitos nos últimos anos mostram que esses conceitos estão superados e precisam ser revistos, principalmente para adequação das prioridades de investimento em pesquisa e incorporação de vacinas contra arbovírus.

Originalmente, a chikungunya foi reconhecida como uma doença pouco letal. Compilamos estudos realizados na última década em países de diversas regiões do mundo e vimos que o vírus CHIKV, causador da febre chikungunya, leva a uma mortalidade muito maior que o vírus da dengue, inclusive em pacientes jovens e previamente saudáveis.

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A disseminação do vírus

O CHIVK foi isolado pela primeira vez no Distrito de Newala, atual Tanzânia, na África.

Desde sua primeira descrição, os autores relatavam que "era clinicamente indistinguível da dengue, se levarmos em conta a variabilidade inerente dessa doença".

Essa semelhança pode ser um dos motivos para que haja dificuldade de diagnóstico dos casos, em especial quando há circulação simultânea dos dois vírus.

Os primeiros óbitos por chikungunya foram descritos na Índia durante as epidemias de 1963 em Calcutá e em 1964 em Madras (atual Chennai). Mais recentemente um número grande de óbitos pode ser bem documentado durante a epidemia da Ilha da Reunião em 2006, departamento francês ultramarino localizado no Oceano Índico.

Naquela ocasião, o enfrentamento à epidemia envolveu o envio de equipes especializadas da França Metropolitana, o que pode ter favorecido a identificação e melhor diagnóstico dos casos.

Houve relato de 255 óbitos tendo a febre chikungunya como causa básica ou associada, um número extremamente alto para uma população de cerca 785 mil habitantes (taxa de mortalidade = 33,8/100.000 hab.). Alguns relatos detalhados sobre esses óbitos foram publicados em diferentes artigos científicos.

Ainda em 2006, na cidade de Ahmedabad (Índia), houve uma grande epidemia de chikungunya. Porém, nenhum óbito por este vírus foi registrado oficialmente, mesmo a localidade tendo uma população de 1,1 milhão de pessoas. Essa discrepância levou os pesquisadores a analisar o excesso de mortes ocorrido naquela cidade durante a epidemia. O trabalho mostrou que morreram 2.944 pessoas além do que era esperado.

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Mortes demais

Excesso de mortes corresponde a um número de mortes que excede o esperado para um determinado período de tempo e localidade, com base em dados históricos e padrões de mortalidade típicos.

Ou seja, avalia a quantidade a mais de pessoas que morreram num determinado lugar durante uma epidemia ou catástrofes naturais.

Esse conceito tem sido muito usado para avaliar a mortalidade por COVID-19 em países cuja vigilância não teve capacidade para diagnosticar todos os casos da doença.

Com a introdução do chikungunya nas Américas, o mesmo fenômeno pode ser observado. Em várias localidades do Caribe houve mortalidade elevada associada à ocorrência de chikungunya, sem que as vigilâncias epidemiológicas locais conseguissem diagnosticar a maioria destas mortes.

Na República Dominicana, com base em analise de dados oficiais, nosso grupo de pesquisadores identificou um excesso de 4.925 de mortes durante a epidemia de chikungunya em 2014. No entanto, a vigilância epidemiológica local diagnosticou apenas 6 mortes por chikungunya.

Identificamos também em Porto Rico, na América Central, um excesso de 1.310 mortes contra apenas 24 mortes diagnosticadas pela vigilância epidemiológica como provocadas pelo vírus CHIKV.

Na Jamaica, observamos um excesso de 2.499 mortes durante a epidemia de 2014, mas a vigilância local não diagnosticou nenhuma morte por chikungunya.

No Brasil, identificamos um excesso de 6.346 mortes durante as epidemias de chikungunya de 2015 e 2016 em Pernambuco, Bahia e Rio Grande no Norte. Contudo, a vigilância oficial diagnosticou apenas 69 óbitos por chikungunya nestes estados.

Para efeito de comparação, em uma das piores epidemias de dengue já vista nesses estados, em 2011, foram notificadas 95 mortes por dengue. Em meio a esses casos, encontramos evidências das formas graves e fatais em necrópsias realizadas em pacientes que morreram com chikungunya, em estudos de casos controle e também em estudos com dados secundários (obtidos de diversos bancos de dados oficiais e agrupados).

A fim de investigar o impacto dessa doença no organismo, nosso grupo também avaliou pacientes que morreram de chikungunya no Ceará. Nós examinamos o material obtido em necrópsias e constatamos a presença do vírus CHIVK em tecidos de órgãos vitais, como cérebro, coração, pulmões e fígado. Isso mostra que esse vírus afeta vários locais vitais e pode levar o paciente à morte.

Um estudo com dados secundários de 100 milhões de brasileiros publicado recentemente na revista The Lancet Infectious Diseases, também enfatiza aspectos ligados a mortalidade por chikungunya

Outro trabalho feito com dados secundários de 100 milhões de brasileiros para identificar fatores de risco que podem ter contribuído para a morte dos pacientes com chikungunya, publicado recentemente na revista The Lancet Infectious Diseases, destacou que os principais órgãos afetados por esse vírus são o pulmão, cérebro e sistema circulatório.

Mudança para salvar vidas

Diante dessas descobertas, podemos afirmar que é essencial reconhecer a chikungunya como uma ameaça à vida das pessoas e reforçar as medidas adequadas para vigilância, prevenção e tratamento desta doença.

Isso inclui investimentos em pesquisa para conhecer melhor, quantificar as formas graves da doença e desenvolver vacinas eficazes, bem como campanhas de conscientização pública para educar a população sobre os riscos associados à doença.

Os vários estudos mencionados mostram que há uma dificuldade dos órgãos de vigilância em quantificar o poder dessa doença de levar o paciente à morte. Essas dificuldades podem estar relacionadas à falta de recursos, dificuldade de diagnósticos, de notificação da causa de morte e à percepção generalizada de que a febre chikungunya é ainda vista como ameaçadora à vida.

A percepção equivocada sobre a baixa letalidade dessa doença ainda é propagada por organismos oficiais como o ECDC (Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças) e a Organização Mundial da Saúde (OMS). A mudança de paradigma do chikungunya de uma doença não fatal para uma causa de morte excessiva é fundamental para proteger a saúde pública e salvar vidas.

Ainda não existe tratamento específico contra a doença. O cuidado com o paciente é focado no uso de medicamentos para alívio dos sintomas e suporte clínico para as complicações.

O reconhecimento das formas graves e fatais é fundamental inclusive para que a primeira vacina contra chikungunya, aprovada em novembro do ano passado pela agência reguladora dos Estados Unidos, a Food and Drug Administration (FDA), possa ser dada prioritariamente aos grupos de maior disco e incluída no nosso Programa Nacional de Imunizações (PNI).

A vacina foi desenvolvida pelo Instituo Butantan em parceria com a farmacêutica franco-suíça Valneva.

No Brasil, o pedido de aprovação definitivo do imunizante foi enviado pelo Butantan à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 12 de dezembro.

*Andre Ricardo Ribas Freitas é professor de Epidemiologia e Bioestatística da Faculdade São Leopoldo Mandic, em São Paulo.

**Este artigo foi publicado no The Conversation e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons. Clique aqui para ler a versão original.

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